Conclusão

Por inédito que pareça, cabe mais ao leitor concluir do que a mim. Este volume surgiu para facultar um quadro, o mais vivo possível, das nossas leituras ao longo do século XIX, com as respetivas articulações, incluindo as respetivas intertextualizações e biografias e redes sociais. Uma vez esboçado o quadro, o leitor o completa com suas próprias informações e conclui.

As deduções que tirei, depois de eu próprio ter uma noção mais completa das nossas leituras ao longo do século XIX, inseri-as ao longo do texto, nas inúmeras revisões e transformações que lhe introduzi. O que fica por fazer aqui é antes um resumo no qual destaco alguns aspetos gerais.

O que se terá passado, desde o final do século XVIII até ao final do seguinte, no que à literatura e leitura diz respeito? Uma lenta sedimentação de vários extratos culturais e uma vagarosa consolidação de exercícios de leitura. Esses exercícios eram, durante as primeiras décadas, isolados ou pouco partilhados. É provável que circulassem comentários a alguns autores, comentários eu suponho que breves, ligeiros, de fácil digestão. Seriam mais raros os diálogos aprofundando uma leitura de uma obra, possivelmente protagonizados por religiosos, ou nos restritos círculos maçónicos.

Conforme o mercado livreiro local se foi abrindo e alargando, conforme também vieram chegando estrangeiros ou estranhos com novos livros, outras culturas, artes, ideias e crenças diferentes, o nosso pequeno meio urbano se foi dinamizando. Aos poucos se terá criado uma pequena comunidade de receção, de leitura, de comentário. Será fácil ao meu leitor imaginá-la: pessoas que falam sobre livros e trocam livros, convivem (também) motivadas por isso. Não suponha, porém, que houvesse consenso generalizado. Nestas margens menos vigiadas do império português conviviam judeus, maçons, ateus, autonomistas, até republicanos, a par de monárquicos, católicos e lusistas. Era, portanto, uma sociedade letrada reduzida, mas diversa e contraditória.

Essa comunidade, que se atualizava também recebendo livros por rotas alternativas às de Lisboa, criava condições para que surgissem criadores (ou melhor: as suas obras) e assim aconteceu, principalmente a partir de 1849 ou 1850. Desde então, acompanhando as mudanças e dinamizações proporcionadas pela abertura dos portos ao comércio internacional (que no Brasil ocorrera desde 24.1.1808, mas entre nós apenas a partir de 1844), tanto quanto pela instauração de tipografias, assistimos à eclosão de jornais e à circulação de ideias que iriam caraterizar o último terço de oitocentos. A proliferação de periódicos facilitava a publicação e discussão de poesia, contos, crónicas, apontamentos, pequenas narrativas, panfletos, polémicas. Uma série de textos curtos apareceu, testemunhando a existência de um sistema embrionário mas em fase decisiva de configuração, com seus escribas de pena afiada, que certamente não surgiriam do nada.

Ao contrário do que supúnhamos, as fontes a que recorremos indicam leituras atualizadas. Isso me leva a pensar que as opções estéticas conservadoras se fizeram por opção, não por ignorância, nem por ausência de bibliografia contemporânea. Mesmo assim, o forte índice de intertextualização contemporânea mostra-nos que os nossos tentames líricos articulavam-se com o seu tempo intensamente.

Outra prova das atualizações estéticas está em pequenos textos de receção, tanto quanto em breves e despretensiosas alusões a movimentos, ou escolas, ou poetas da época. O Jornal de Loanda, Alfredo Troni, Ladislau Batalha e outros terão desempenhado um papel importante nessa renovação. Mas mesmo metatextos poéticos o fizeram, em vários periódicos – e também disso dei conta.

Nota importante é que, por força das políticas da Inglaterra e de Portugal, mais do que por desenvolvimento de forças produtivas locais (isso foi sempre sonegado), as ligações Angola-Brasil iam sendo cortadas ao longo do século e, por isso, as rotas de importação de livros se deslocaram lentamente para o hemisfério norte, sobretudo para a Europa, de onde nos vinham títulos em inglês e francês (e em português, claro). O incremento do comércio marítimo e a expansão económica dos EUA, por seu turno, permitiriam mais tarde (sobretudo a partir do fim do século) reintegrar os ‘americanos’ nessas rotas, mais que o Brasil. Isso teve consequências quando aquela pequena comunidade literária sofreu a primeira crise identitária e se bipartiu entre ‘europeus’ e ‘africanos’ definitivamente.

Todos estes processos eram detetáveis nos mais variados portos coloniais, como se pode ver estudando comparativamente o que se passava na Ásia distante no mesmo período. Nesses mercados detetamos o mesmo predomínio da bibliografia europeia e norte-americana, as bipartições e tensões identitárias, autonomistas e colonialistas, a proliferação de periódicos dando voz a uns e outros, a dominante e continuada opção por critérios estéticos ‘práticos’, ou seja, privilegiando a capacidade de comunicação de conteúdos imediatos eficazes sobre a potencialidade estética e sugestiva, de mais demorada absorção.

Ou seja: estávamos globalizados, a par das outras colónias. Os anteriores esforços, de atualização e busca de bibliografia divergente via Rio de Janeiro e Recife, foram largamente superados por este crescimento múltiplo dos mercados e portos administrados por europeus ou seus descendentes (as exceções eram raras), que tinham o controlo do comércio marítimo. Dentro da colónia, a situação era asfixiante e os filhos da terra iriam confrontar-se ainda com o pior período de discriminação, despromoção e repressão. Mas isso já não conseguia impedir a circulação dos livros e a entrada de ‘africanos’, enquanto marítimos, nas novas rotas mundiais assegurava uma terceira via, difícil de controlar, para a introdução de bibliografia nova, inconveniente, escondida. Abria-se o século XX.

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