Como citar (norma Chicago):
Soares, Francisco. “Alguma circulação bibliográfica até
1850.” Kicola: livros e leitores em Angola no século XIX. Editado por
FS. FS. 2020-2026. https://kicola.xn--svisto-bxa.com/p/alguma-circulacao-bibliografica-ate.html
(acedido em 27 de jul de 2022).
A circulação de livros não pode ser facilmente investigada nos anos em que não havia imprensa escrita em Angola.
Não pesquisei referências muito recuadas à presença de professores em Angola, para além dos que eram sacerdotes também, aos quais me referi na Notícia da literatura angolana. Sei que houve mestre-escola em 1732, porque há, com data de 28.4.1732, um “DESPACHO do Conselho Ultramarino
ordenando que se remetesse a queixa do mestre-escola, padre João Teixeira de
Carvalho, ao sindicante que ia tirar residência ao governador Paulo Caetano
de Albuquerque, e se deferisse os requerimentos do mestre-escola,
devolvendo-lhe os bens e restituindo-o de perdas e danos.”
O esforço do famoso governador-geral
D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, em prol do ensino e das artes, bem
como a chegada de bibliografia particular, abriram certamente caminhos. Foram caminhos trilhados por protagonistas diferentes uns dos outros: estudantes angolanos que frequentaram estabelecimentos de ensino médio e superior em Portugal e no Brasil; altos e menos altos funcionários
coloniais (lembremo-nos de Ernesto Marecos); emigrados ou degredados políticos (que não viriam com os livros mas com a memória deles), incluindo revolucionários italianos (Pacheco, 1995), inconfidentes, vítimas do Marquês de Pombal e da repressão miguelista, ou já da anterior perseguição à maçonaria e ao liberalismo; comerciantes e militares brasileiros; famílias ou pessoas que se ausentavam por alguns anos (como Manuel Patrício
Correia de Castro e Joaquim António de Carvalho e Menezes); visitas
prolongadas de negociantes, viajantes, investigadores e aventureiros europeus ou americanos,
altas patentes do Exército e da Marinha (recordemo-nos da presença entre nós de Elias Alexandre da Silva Correia e de serem tais patentes, décadas depois, um dos veículos de prestígio do posterior Almanach de Lembranças), bem como
juristas (lembre-se o caso de Cândido Furtado), visitas que podiam durar anos ou continuar até à morte (caso, entre muitos outros, do brasileiro Francisco Pereira Dutra). Essas idas e vindas alargaram o círculo de leituras local, ainda localmente estimulado pelas tentativas de criação de escolas específicas e 'modernas'. Mas não me é fácil perceber o
alcance, o perfil mais preciso dessas migrações bibliográficas no que diz
respeito à comunidade de receção. Faço, portanto, um breve e grosseiro traçado
de quanto pude perceber além de referências brasileiras que depois citarei,
relativas aos anos entre 1827 e 1849.
Um primeiro momento, em que degredados políticos terão levado para
Angola, pelo menos, a memória de livros e de ideias, embora retrógradas algumas delas, deu-se
em 1756. Nesse ano foi desmontada uma conspiração para combater o Marquês de
Pombal e vários dos conspiradores condenados a degredo na colónia.
Destacavam-se, pelo protagonismo, Francisco Xavier Teixeira de Mendonça
(advogado) e Martinho Velho Oldemberg ("chimerico negociante" segundo o Marquês, filho de um mercador alemão, Martinho escrevera um libelo contra Pombal), mas eram mais. Ambos vieram
a falecer em Angola. Domingos Plácido da Silva, juiz e avô do ministro brasileiro (n. em Luanda) Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara, veio também como degredado político para Angola nesta época. De matiz um pouco diferente foi a presença de José de Seabra, outro degredado político mas servidor do Marquês durante três anos. Esse, porém, seguiu para as "Pedras Negras [Pungo-a-Ndongo], naquele tempo o mais inóspito presídio de Angola" - de onde regressaria para Portugal mais tarde. Na capital da colónia se manteve em funcionamento, por algum tempo ainda, o colégio dos jesuítas (ordenara-se a abolição "dos métodos de ensino dos padres jesuítas" em 1765 e os seus bens haviam sido "postos em praça" a 6.9.1762), o que vinha reforçar o leque de leituras avivado pelos exilados e mantinha a diferença face aos novos discursos, iluministas, maçónicos, eventualmente republicanos também.
A Universidade de Coimbra continuava a formar naturais de Angola no século XVIII e no princípio do seguinte. Um caso interessante e dos mais recuados foi o de Francisco Caetano Espinosa, nascido em Luanda. O apelido suscita curiosidade e ela aumenta com a filiação: "pais incógnitos". Tornou-se bacharel em Leis a 16.3.1732, com primeira matrícula a 10.1.1728. Um bastardo? Filho de judeus? de gente do povo? um rejeitado pelos pais, como muitos 'Carmelos' e outros apelidos portugueses? Ou os pais se esconderam por outro motivo? "Pais incógnitos" daria título para um romance e o romance adensa-se com o documento reproduzido no vol. II dos Arquivos de Angola, de 1936. Aí se menciona Jorge Ferrer de Espinosa, "curandeiro de medicina nesta cidade", que em 1715 foi nomeado para substituir o "Físico Mór", que se podia ausentar da colónia "desde que fosse ainda vivo o curandeiro Jorge Ferrer de Espinosa". Não sei se veio de novo para Angola o Espinosa doutor por Coimbra. Sei que os "pais incógnitos" deviam ter algum peso na cidade de Luanda para assegurarem tal formação ao filho.
Outro caso interessante, bem no começo do século XVIII, foi o do padre Francisco Curado, matriculado a 1.10.1698 em Cânones e com Formatura a 13.2.1705. Interessante foi o seu nascimento. O pai chamava-se Brás Curado e o padre Francisco terá nascido no "Porto de Luanda" (claro que a palavra "porto" só a tomo em sentido estrito por brincadeira, como se nascesse no cais; importa, sim, a nomeação da cidade pelo porto que nela estava).
Cerca de vinte anos anterior a Espinosa, quase contemporâneo de Curado, foi o bacharelado em Artes António Velho da Costa, natural de Luanda, sem filiação mencionada (12.4.1709; Licenciado a 25.5.1709; Mestre a 2.6.1709). Em 1.10.1735 matricula-se em Direito ("Leis") Joaquim Martins de Aguiar, filho de António Martins nascido em Luanda; seria talvez um boémio, ou sofreria quebras de renda, pois apenas completou formatura dez anos mais tarde (30.7.1744). Já a meio do século, matricula-se em Cânones, a 1.10.1756, António da Silva do Amaral, nascido em Luanda, de pai homónimo (coincidência ou não, o apelido Amaral se repetirá nas mais diversas fontes até hoje, sempre relacionado com filhos e filhas da terra). Atingiu o grau de Doutor em 29.6.1761 e não sei se regressou a Angola, ou se apenas foi dando notícias dela em Portugal. Outro estudante nascido em Luanda se matriculou nesse ano, mas em Leis: António Alexandre Ribeiro Pereira Bacelar, cuja última matrícula foi a 1.10.1759 e que não sei se concluiu (não se indica a filiação dele). O padre Joaquim da Cunha e Vasconcelos matriculou-se em Cânones a 1.10.1763, completando a formatura a 16.5.1769. António Nogueira da Rocha, filho de José Nogueira da Rocha e natural de Luanda, matriculou-se em Filosofia a 31.10.1790, estudou Matemática também, Direito e Leis, concluindo a formatura a 6.6.1800. Após a formação regressou, fazendo parte da "Primeira Junta ou Governo Provisório" (dezº 1821 - fevº 1822), enquanto Secretário e representante da Magistratura. Reabilitou como herdeiros seus irmãos e ele próprio, pois era filhos 'naturais'.
Aluno regular, formado em Direito e também natural de Luanda, foi o conhecido Eusébio de Queirós Coutinho da Silva, ligado à tentativa de levar Angola a acolher-se ao protetorado brasileiro, em vez de continuar portuguesa; matriculou-se em 29.10.1798 e concluiu a formatura a 7.6.1803, voltando para Angola, onde se casou e gerou o conhecido ministro brasileiro Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara, familiar - como os pais - da mãe de José da Silva Maia Ferreira. A 31.10.1800 matriculou-se em Direito António José de Lima, cuja filiação não consta da ficha, mas que era natural de Luanda; não sei se terminou o curso, mas aparecem referências a esse nome em documentos angolanos posteriores (não como advogado).
A par das leituras trazidas por esses torna-viagens, as novidades entraram com o governo (1764-1772) do árcade D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (1726-1780), que veio animar, quando não refundar, atividades artísticas e de ensino que teriam preparado parte da população colonizada e colonial para um nível de vida melhor. Em carta de 31 de Outubro de 1770, ao "Juiz Presidente, Vereadores e Procuradores do Senado da Câmara desta Cidade [Luanda] S.e [sobre] a necessidade de haverem duas Escolas de Ler, Escrever, e Contar, huma na Praya, outra em Syma", pede que se pague a dois Mestres que ensinem tais matérias. Facto importante a reter, esses Mestres “não importa que sejam Escravos”… Pelos vistos, havia escravos com escolaridade e valiam mais por isso, pelo que devemos alterar a visão primária que temos hoje do escravo, que não era, necessariamente, um selvagem brutalizado e ignorante, mesmo quando o focamos a partir da cultura escrita e europeia.
Não só, mas também a própria imagem que temos do “indígena”. Passando
alguns dias em Ambaca, em 1854, Livingstone fez uma
anotação interessante sobre a reprodução do saber escrito: “o número de
indivíduos que no distrito sabem ler e escrever é realmente extraordinário:
foi obra dos Jesuítas, e dos Capuchinhos, que a principio os ensinaram. Depois
que foram expulsos os Jesuítas pelo Marquês de Pombal, os indígenas continuaram
a servir-se de professores particulares.” (Amado, 1861 p. 12) Interessante seria
que pudéssemos estudar quem foram esses professores, previsivelmente
ambaquistas - e de que ainda Arlindo Barbeitos, em pleno século XX, diz ter recebido lições quando menino. Também eles intermediaram o comércio poético (e retórico) entre a escrita e a oralidade.
Para além de promover o teatro, a música e as escolas, fundou o governador uma Aula de «Geometria e fortificação» em Luanda (começou a funcionar em 1765, tendo Francisco Inocêncio chegado a Angola em Junho de 1764). Essa Aula era também chamada de «Matemática» e dão-lhe equivalência ao Ensino Médio hoje. A sua importância fica assinalada pelo facto mencionado por Catarina Madeira Santos, a integração de descendentes de antigas famílias de Luanda ("Velasco Galiano, Matoso, Andrade Câmara, Monteiro de Morais, Teixeira de Mendonça") e descendentes de 'brasileiros' integrados na "vida local". Segundo a pesquisadora, a Aula de Geometria "funcionou como polo de vulgarização de leituras e de ideias" - o que era inevitável.
Ao governador Inocêncio se deve, também, a criação da Aula régia de Latim, à qual
estavam anexos estudos de Filosofia e de Retórica, facto sobremodo importante
para quem deseja pesquisar o ambiente literário e cultural de Luanda, nesses
tempos e nos que imediatamente se lhe seguiram. Sabe-se também que procurou que
houvesse médicos e cirurgiões. Em 1770, por exemplo, tínhamos um médico e um cirurgião na cidade de Benguela, segundo sabemos por carta enviada pelo governador D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho ao capitão-mor desse 'reino', José Vieira de Araújo, datada de 28.8.1770. Os médicos e cirurgiões podem ser intermediários culturais e divulgadores das artes literárias e das ciências humanas, tanto mais que são tomados, à partida, por homens sábios. Além deles, há todo um leque de profissões de promitentes leitores, intermediários e divulgadores culturais e literários: juízes, escrivães, engenheiros (sobretudo engenheiros militares). Em Massangano, por exemplo, nesse tempo, havia um escrivão e pretensões a que houvesse dois. Foi o governador que, dirigindo correspondência ao capitão-mor de Massangano, lhe lembrou "que as dependências dessa Vila nem permitem que haja dois" (carta datada de setembro de 1770).
O derradeiro ano de governo de Sousa Coutinho foi o de 1772, mas de alguma forma preparou a chegada à então colónia de mais árcades e
iluministas.
Ao findar o seu governo tinham nascido, ou estavam prestes a nascer, na
colónia, filhos da terra que se ilustraram, deixando-nos bibliotecas bem
recheadas ao falecerem. Alguns deles foram os nossos primeiros jornalistas –
colaborando, precisamente, em jornais brasileiros (Pacheco, 2000
pp. 30-31), além de um português.
No seu conjunto formaram a nossa primeira comunidade de leitores-escritores a
funcionar interrelacionados (ainda quando se opunham), criando um embrião de sistema literário que iria desenvolver-se no século seguinte, findo o qual tínhamos uma comunidade literária relativamente complexa, diversificada e combativa.
Alguns leitores especializados encontraram-se também em Angola marcados pelo Iluminismo (em sentido lato). Foi o caso do naturalista e letrado Joaquim José da Silva (1755-1813), que realizou pesquisas ao mesmo tempo em que desempenhava funções diversas na administração colonial (incluindo espionagem). Recolheu e classificou "peixes, conchas, minerais, objetos gentílicos, pássaros", que enviou para Lisboa. Realizou pesquisas e viagens entre 1783 e 1808. Explorou quase todo o território onde podia chegar a penetração portuguesa, desde Cabinda ao Cabo Negro. Da mais longa das viagens, a partir de Benguela, nos deixou uma crónica onde revela também algum talento para as Belas Letras: Extrato da viagem, que fez ao sertão de Benguela no ano de 1785 por ordem do Governador e Capitão General do Reino de Angola, o Bacharel Joaquim José da Silva, enviado á aquele Reino como Naturalista, e depois Secretario do Governo. De Loanda para Benguela. De uma das viagens de Benguela para o sul (foram duas) temos também o relato feito pelo sertanejo Gregório José Mendes - uma personalidade com poder nesse lugar e tempo, cujo relato já tinha referido na minha Notícia da literatura angolana. Gregório José Mendes seguiu por terra, ao passo que pelo litoral e por mar seguiu paralela exploração, sob orientação de Luís Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado, um dos cartógrafos mais salientes do século XVIII português e começos do seguinte, que fez carreira em Angola, onde serviu inicialmente sob as as ordens de D. Francisco Inocêncio e onde se casou com a filha do físico-mor Eusébio Catela de Lemos (Ana Maria Joaquina, que por esse casamento originou o ramo Catela de Lemos Pinheiro, depois Pinheiro Falcão, do qual saíram intelectuais e professores e professoras angolenses no século XIX).
Outro dado complementar foi o da legislação condenando a dez anos de degredo para Angola os "vendedores de livros defesos", como um Elogio de Descartes. O Elogio foi condenado porque os portugueses não estariam preparados ainda para verem, na sua língua, exibido esse espírito de dúvida sistemática e independência de espírito. Contradizendo a aparência de racionalismo e de modernização científica da política do Marquês, esses eventuais degredados iriam engrossar, na colónia, a memória e notícia de livros que, por outro lado, condiziam com a mentalidade cultural orientadora da ação do governador Sousa Coutinho sobre as lagunas de Luanda...
Apesar de os sucessores no governo geral não terem o empenho cultural e a estatura política e pedagógica de
Sousa Coutinho, por necessidades até militares a aula de Geometria foi
funcionando, mesmo que intermitentemente. A partir de 11.9.1791 (estando no governo geral o Conde da Lapa), começou a funcionar a aula de «Medicina e Anatomia». Esta aula foi de certo modo antecipada pelo trabalho Produtos medicinais de que usam os habitantes da África Ocidental, principalmente os de Angola e seus sertões (1784). O autor, Álvaro de Carvalho e Matoso, descendia de famílias antigas de Angola (incluindo a de José da Silva Maia Ferreira) e a sua obra trazia às "enfermidades de Angola", tanto quanto aos europeus ou brasileiros que o lessem, uma resposta local.
A lição de
sapiência inaugural, de 1791, foi proferida, com fasto e brio, pelo Diretor e Lente principal,
o médico brasileiro José Pinto de Azeredo, nomeado por D.ª Maria I a 24.4.1789 (ainda na
vigência do antecessor do Conde, o Visconde da Lapa). Segundo os Arquivos de Angola (Iª série, vol. IV, n. 41-48, p. 150) uma segunda "Patente" lhe é passada a 12.5.1789 e refere explicitamente a missão de "abrir Escola de Medicina; para os que se quiserem empregar no exercício e prática dela". Embora formando poucos alunos, o seu funcionamento contribuiu
decerto para alargar a comunidade leitora da colónia.
A comprová-lo está a publicação, em 1799 (já sob o governo de Miguel
António de Melo [1797-1802]), pelo Diretor, do livro Ensaios sobre algumas enfermidades de Angola, que foi o terceiro livro do género produzido no que é
hoje o nosso país. Note-se que José Pinto de Azeredo era fruto do Iluminismo, tendo estudado "medicina em Edimburgo entre 1786 e 1788, com passagem em Leiden (1788)". O ambiente no qual se formou foi o do começo do experimentalismo em Medicina. Somando estes dados às leituras e contactos (eventualmente maçónicos) que a Escócia lhe proporcionava, em ambiente mais livre e rico do que o português ou o brasileiro, temos nele uma figura da maior importância para a recriação de uma comunidade letrada e globalizada no fim do século XVIII. Note-se, ainda, que as suas observações sobre usos, costumes e ambiente, na cidade e em torno dela, constituem também fonte histórica para estudarmos a sociedade da época e, certamente, no tempo, contribuíram para se refletir em Angola sobre as tarefas necessárias ao desenvolvimento e ao bem-estar. A crítica da medicina tradicional em nome da científica deve ter contribuído para uma mudança de mentalidades que, em parte (e apenas em parte), se continuaria operando até muito próximo da independência e levaria à rutura com as tradições mas, simultaneamente, ao reconhecimento da medicina tradicional em vários casos em que as novas receitas não surtiam qualquer efeito. No conjunto, as observações do médico brasileiro preparavam as preocupações e propostas de Joaquim António de Carvalho e Menezes no programa político exposto nos seus dois livros, a que depois me vou referir. Um dos aspetos a destacar no seu programa é, precisamente, o da preocupação com o que chamaríamos hoje a saúde ambiental.
A presença deste clínico e investigador em Luanda se prolongou, com intermitências, de 1789 (quando foi nomeado físico-mor, para tratar os militares e os doentes do Hospital da cidade) a 1797, quando se retirou - desta vez para Lisboa. O seu interesse pelas doenças de Angola se inseria no interesse geral pelo avanço de uma ciência ao mesmo tempo experimental e aplicada. Segundo Jean Luiz Neves Abreu,
Em 1790 publicou um artigo no Jornal Enciclopédico, intitulado Exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro, no qual analisava as condições do ar [...] e colocava em prática vários conhecimentos de química. Em Lisboa, escreveu vários manuscritos que não foram impressos, a exemplo de Isagoge Pathologica do Corpo Humano (1802), Curtas Reflexões sobre Algumas Enfermidades Endêmicas do Rio de Janeiro no Fim do Século Passado (manuscrito posterior a 1800); Coleção de Observações Clínicas (posterior a 1803).
Também a aula de Latim se alargou para a de Latim, Grego, Retórica e Filosofia, juntando-se-lhe a de Matemática, tudo estatuído por carta régia de 19-08-1799. Li um “OFÍCIO
do bispo de Angola, D. Luís [de Brito Homem], ao [secretário de estado da
Marinha e Ultramar] D. Rodrigo de Sousa Coutinho, sobre o provimento do deão da
catedral, Manuel Dantas Lima, na propriedade da Cadeira de Gramática Latina da
capital.” Isto é importante para o nosso objetivo porque Manuel Patrício Correia de Castro, o cónego-deputado às Cortes constituintes de 1820-1822, foi desde novo acompanhado pelo deão Manuel Dantas Lima, que o enviou para estudar no seminário do Rio de Janeiro, onde foi ordenado sacerdote e de onde saiu para chegar, em 1822, a Lisboa, depois de rebater os argumentos dos dois colegas eleitos que apelaram à união de Angola com o Brasil a título de protetorado brasileiro. Foi, aliás, Manuel Dantas Lima que nomeou, por Ofício, Manuel Patrício Correia de Castro a 5.10.1812, em Luanda (e em latim).
Desconheço os nomes dos professores das outras disciplinas, ou se chegaram a funcionar cabalmente, mas sabe-se da existência de um Mestre de “latinidades”, que trabalhou até cerca de 1811, estando no governo José de Oliveira Barbosa, um general brasileiro (nascido no Rio de Janeiro e que chegou, depois de 1822, a Ministro da Guerra no Brasil, onde se começavam a instalar dois dos ramos da família paterna e materna de Maia Ferreira).
Ainda em 1791 se abriu uma Aula de Geometria ou de Matemática, simultaneamente assegurando, a primeira dama da colónia, uma Escola de Meninas onde se aprendia a ler, escrever e contar. Estas meninas haviam de, em parte, sustentar o apetite por novelas também sentido na colónia, como se vê pelos primeiros inventários orfanológicos. Iniciou-se, com elas, uma fatia própria do mercado bibliográfico em Angola: a feminina.
É de referir a nomeação do Provedor da Fazenda Real, acumulando
por vezes com a função de Juiz de Fora, o “pardo” António da Silva Lisboa,
“natural deste continente” e que foi acusado de corromper-se. Possivelmente é o mesmo que exerceu o cargo de Juiz de Fora em Benguela e que terá protegido um dos inconfidentes mineiros (apesar de ser ele mencionado como brasileiro em outras fontes). O que interessa aqui é, porém, a definição de uma comunidade de
leitura, pequena mas incluindo filhos da terra, pardos, brancos e negros. Estas menções 'raciais', a que sou geralmente avesso, as ponho aqui (e em outras passagens) porque elas apontam personagens históricas inseridas em redes familiares locais que se estendiam do porto de Luanda a localidades do interior da colónia. As redes de antepassados e descendentes podem nos dar uma imagem do alcance potencial da bibliografia registada para estes anos. A
disseminação da escrita – e, portanto, o quadro de leitores potenciais –
passava, fortemente, por eles e por eles interagia na oralidade. Repare-se, também, que o apelido Silva Lisboa virá ainda a estas linhas a propósito de um rico espólio bibliográfico de outro "pardo", que viveu na mesma época, tendo o seu inventário orfanológico sido consultado pelo historiador Carlos Pacheco. Recorde-se, ainda, que estas famílias antigas da colónia, por suas ramificações e por seus interesses, iniciaram, precisamente no fim do século XVIII, a valorização definida do fator filho da terra, que vinha fermentando muito lentamente desde o século anterior, a partir da valorização da experiência local (primeiro dos antigos 'conquistadores', depois das 'famílias antigas desta terra').
Entrara, entretanto, em cena a repressão à Inconfidência mineira
(1789), de que falo a seguir, pois o novo Mestre, segundo Martins dos Santos, é o degredado e Joaquim Manuel
de Sequeira Bramão – cuja descendência foi continuada até aos nossos dias, como
se pode comprovar, por exemplo, visitando as campas do Campo da Igualdade no bairro da Camunda, em
Benguela. A sua presença mostra que os Inconfidentes foram rentabilizados numa
terra com escassez de recursos humanos e rica em dificuldades de toda a ordem.
Reconheceu-se a este revolucionário que tinha habilitações para lecionar, além
de Latim, Francês, Inglês, Matemática “e até Filosofia Racional e Moral”. Entretanto, na lista de livros apreendidos aos Inconfidentes, o seu nome nem aparece. Ter-nos-á valido a sua memória sem papel, a fonte mais intensa das nossas convicções e opções políticas e literárias. Sem
deixar de ser vigiado, ele chegou a ter entre os seus alunos um dos filhos do governador,
o que atesta o reconhecimento que alcançou.
Posto isto, o principal processo a considerar então, no finalzinho do
século XVIII, é o das consequências em Angola da conspiração mineira, que
derivam do envio de degredados para a colónia em 1792. Isto não é despiciendo, no âmbito dos nossos estudos sobre os livros que se leram em Angola no século XIX e sua contribuição para formar uma literatura local. É que justamente por estes anos nasceram os protagonistas de uma primeira geração produtiva na cultura urbana escrita: Manuel Patrício Correia de Castro, Joaquim António de Carvalho e Menezes, o já citado António Nogueira da Rocha (mais velho que os outros), o cónego António Francisco das Necessidades (este ligeiramente mais novo), e Eusébio de Queirós Coutinho Matoso, educado já no Brasil, para onde os pais foram viver, levando-o com três anos de idade.
Do influxo trazido por Inconfidentes destaca-se, em primeiro
lugar, o do poeta brasileiro Inácio José de Alvarenga Peixoto, enviado para o Dande, barra do rio homónimo, junto a Luanda, com vales de terras férteis em torno. Ele esteve no meio
de nós apenas o último ano de vida, mas alguma sobra terá ficado de um ano
de convivência quotidiana com dois ou três amigos, interessados leitores.
Alvarenga Peixoto nasceu no Rio de Janeiro, segundo a maioria dos estudiosos em
1744. Estudou no Colégio dos Jesuítas no Rio de Janeiro e graduou-se em Leis pela
Universidade de Coimbra em 1767. Nessa Universidade conviveu com o conhecido
Basílio da Gama (1740-1795), autor de O
Uraguay (Gama, 1769), obra de
motivação americana, que emparceirava na sua produção com um curioso poema
de motivação angolana chamado Quitúbia
(Gama, 1791).
A amizade entre ambos foi soldada por versos dos dois, estendendo-se a Tomás
António Gonzaga (1744-1810) e Cláudio Manuel da Costa (1726-1789). O conjunto perfaz a parte significativa do arco neoclássico brasileiro e parte culturalmente
significativa da Inconfidência mineira. Varnhagen considera Inácio José “dotado
de grande génio poético” e lamenta que tenha morrido tão cedo (Varnhagen,
1847 p. 24).
Essas amizades produtivas levam-nos a pensar na memória literária do degredado
que, de certo, uma vez posta em Angola, atualizava e aguçava o meio. Recorde-se que ele escreveu ainda aí poesia, que hoje se conhece.
O meio, porém, quando se refere, é com discreta brevidade. O autor não viveu lá
tempo suficiente para sabermos até onde iria desenvolver-se a sua interação com
as comunidades locais.
Na direção oposta (que é neste momento a que nos interessa, porque o nosso
foco se dirige para os poetas e leitores angolanos), no mínimo seu nome e
alguns dos poemas terão sido copiados e (ou) falados ao longo de muitos anos
ainda em Angola. O nome do poeta não evocava só memórias políticas, lembrava
também referências literárias, mais inocentes aparentemente e que, portanto,
podiam passar com relativa liberdade. Acredito que daí nos ficaram sinais cujo
alcance, porém, desconheço.
Devemos ainda considerar os cânones da época, orquestrados de maneira a
preservar espaço próprio para o quotidiano do autor entre as espécies
admitidas, através de episódicas dedicatórias e nomeação de contextos
motivadores específicos. A disseminação desse tipo de práticas sociais, a que
os poemas estavam anexos, é de mais fácil repercussão porque pode parecer
inocente. Mas a condição lastimável em que foi para Angola ainda ligou mais
poesia e biografia, apelando o poeta explicitamente a isso em vários sonetos
que se tornam mais expressivos se imaginarmos um exilado com saudades da
família, como os seus contemporâneos angolenses imaginariam.
Alvarenga Peixoto (também mais tarde o ultrarromantismo angolano) publicava poesias em que a nomeação e sugestão das circunstâncias motivadoras
era imprescindível, como por exemplo o soneto ao aniversário da filha. Logo
abaixo do título, ele dá-nos o quadro para o qual o poema se destinava, para
que o leitor se coloque na posição da aniversariante, ou de qualquer modo a
imagine. Por essa indicação, o dado circunstancial torna-se imprescindível à leitura
do poema, dramatizada sumariamente. Não quero dizer que os assuntos, como
também entre muitos ultrarromânticos, não fossem tratados com seriedade, mesmo
com alguma gravidade que, interligada a linguagem que nos parece arcaica
hoje, soa por vezes forçada. Mas o que importa por agora é a necessidade da
sumária descrição ou narração da circunstância motivadora explícita. A circunstância
fica, assim, a pairar no ambiente de leitura, particularizando a produção do
significado e sobrealimentando emotivamente o poema. Foi desse recurso que o ultrarromantismo lusógrafo abusou.
A rentabilização da circunstância (não necessariamente política, mas
uma prática de marcada socialização e de projeção autobiográfica ao mesmo
tempo), promovida por árcades como Alvarenga Peixoto, prolonga-se na “poesia
ramo-de-flores-para-os-amigos”, de que falava Mário António a propósito de José
da Silva Maia Ferreira e do ultrarromantismo angolano. Mas não é traço único de
continuidade, na linha de vagas e vagarosas demarcações que separa a segunda
metade do século XVIII da primeira metade do século XIX na Europa e fora dela,
por exemplo em Angola.
Algo do léxico, também do ritmo, também da sintaxe, aproxima as poesias de Alvarenga Peixoto e a de Maia Ferreira, ainda cozida com palavras de um
sabor hoje muito recuado. É bom relermos, a propósito, os versos iniciais das
«Liras» dedicadas à esposa-poetisa (Bárbara Heliodora) pelo mártir mineiro:
Bárbara bela,
Do norte estrela,
Que o meu destino
Sabes guiar
De ti ausente,
Triste, somente,
As horas passo
A suspirar.
Por entre as penhas
De incultas brenhas,
Cansa-me a vista
De te buscar;
Porém não vejo
Mais que o desejo
Sem esperança
De te encontrar.
Não estranharia tais versos a suspirar em Maia Ferreira, mesmo entre as “incultas brenhas” nossas onde
Sonhava vê-la
...
Tão casta e pura,
Como revela
Brilhante estrela
Em noite escura.
Tanto quanto não estranho que Maia Ferreira oponha humildemente à Guanabara o seu Uangara natal, evocando o rico país do ouro que se vendia em Tombuctu e encontrando uma rima toponímica não europeia entre África e Brasil.
Com Alvarenga Peixoto vieram mais degredados políticos. Penso que a maioria pessoas com formação técnica e leituras de âmbito filosófico, histórico e literário.
Foi destinado a Cambambe o sargento-mor Luís Vaz de Toledo Piza (que morreu em 1795). Não tenho conhecimento de livros que possuísse quando da sua prisão, nem se foi familiar do vigário Carlos Correia de Toledo e Melo.
Para “Massagena” (Massangano (Maia, 1891 p. 231)) o Dr. José Álvares Maciel, que nos merece menção mais desenvolvida. Filho do capitão-mór de Vila Rica (Maia, 1891 pp. 228-229) formara-se "em filosofia, tendo estudos especiais sobre mineralogia, artes e manufaturas”. Além de naturalista - formado em Filosofia Natural - foi liberal e maçom, tendo estudado em Coimbra e França e desempenhado um papel importante na idealização da Inconfidência. Desembarcou no meio de nós a 20.6.1792. Depois de cumprida a pena tornou-se "representante comercial dos negociantes de Luanda" e montou uma pequena siderurgia em Zenza do Itombe, zona rica em minas de carvão e casas velhas das margens. A sua atuação foi das mais consequentes em Angola e revela preocupações políticas interessantes, que nos trariam vantagens embora sofressem de alguma ingenuidade perante as manhas dos comerciantes. Sempre foi dado como “químico”, formado por Coimbra com diploma passado em 1785. Não teve livros apreendidos, nem bens, por se encontrar sob poder paternal.
Documento (Ofício do Governador ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar), de 30.7.1799, reporta a “nomeação de José Álvares Maciel (engenheiro e político brasileiro) para encarregado dos Fornos em Calumbo” (fundição de metais; cf. AHU-Angola, cx. 92, doc. 54). A 22.9.1799 o mesmo Secretário escrevia ao mesmo Governador e falava da “reativação da fábrica de ferro, sob orientação do naturalista e degredado [Álvaro Maciel]” (AHU-Angola, cx. 93, doc. 44).
É mais interessante para nós o documento que surge a 1.11.1799, no arquivo (AHU-Angola, cx. 93-A, doc. 1), redigido pelo próprio Maciel. É mais importante pelo que as suas propostas revelam da mentalidade que trouxe para ali, não só desenvolvimentistas as propostas, ainda conciliadoras, visando eventualmente criar uma dinâmica integral, em que se incluiriam os artesãos africanos, dando-lhes a ganhar:
OFÍCIO (cópia) do encarregado da Fundição de Ferro, nomeado, José Álvares Maciel, ao [governador e Capitão general de Angola], Miguel António de Melo, sobre o estado em que se encontrava a produção do ferro na região de Calumbo, propondo a região da Trombeta situada na província da Ilamba, por ser o local onde: habitavam os ferreiros, existia lenha, água e ar sadio; sugeria aproveitar a abundância do ferro da região, introduzir pequenas inovações ao método de exploração do ferro que não afastasse os naturais, tais como a construção de pequenos fornos com areia de Massangano, malhões, ensinar a fazer carvão; solicitando pedras de cadilho, folhas de madeiras e outros instrumentos e apetrechos, comprar e pagar de imediato a produção aos ferreiros, estabelecimento de uma aldeia de ferreiros e respetivo regulamento, isenção dos dízimos, propor para diretor da fábrica o juiz privativo das pequenas querelas e contendas entre os pretos.
Acho que será fácil a qualquer leitor, hoje, compreender o alcance social e político deste conjunto de propostas, tão sucinta e objetivamente lançadas.
A 7.11.1799 ainda se fez outro Ofício relacionado com este inconfidente (AHU-Angola, cx. 93-A, doc. 14-A)
OFÍCIO do nomeado encarregado da Fundição de Ferro, José Álvares Maciel, ao [secretário de estado da Marinha e do Ultramar de Angola], Rodrigo de Sousa Coutinho, dando conta do estado e das possibilidades para o prosseguimento da exploração da Fábrica de Ferro de Nova Oeiras, referindo a memória descritiva feita em 1797; propondo a execução imediata de ações com os meios existentes dado a abundância de ferro existente e resolução das dificuldades e dúvidas que ainda persistiam.
Recorde-se, como escrevi atrás, que ele montou uma pequena siderurgia em Zenza do Itombe. A localização pode ser significativa nesse tempo e depois. A zona de Zenza do Itombe era rica em minas de carvão e tornara-se, com ou sem ferros, um dos berços onde se instalara, progedira e se mantivera toda uma sociedade das margens entre o sistema colonial implantado a partir de Luanda e a resiliência de poderes locais. Dali se registaria o nascimento de alguns membros importantes de famílias que, mais tarde, haviam de ter peso e significado político e social, ainda no século XIX, mas sobretudo no combate pela independência e na política posterior. A zona seria abrangida, quase um século depois, pela rede ferroviária que se começara a instalar a partir de Luanda em 1887: de Zenza do Itombe havia de partir um ramal para o importante porto fluvial do Dondo - de onde seguiam muitas mercadorias para Luanda e onde assistimos ao surgimento, no final do século XIX precisamente, de uma pequena comunidade literária. Segundo algumas fontes, o inconfidente falecera por volta de 1804 ou 1805, mas, segundo outras, ele expirou doente em Massangano em 1802. A sua atuação como divulgador e mediador cultural e literário deve ter sido importante para as famílias nesse tempo instaladas nas casas velhas das margens, então ainda em formação, e das quais emergiria, cerca de meio século passado, o estro bilingue de Cordeiro da Matta.
Para a Muxima foi destinado o contratador e tenente-coronel Domingos de Abreu Vieira (falecido em 1794), homem riquíssimo. Ainda não consegui qualquer informação sobre os livros que teria quando foi preso.
O tenente-coronel (Maia, 1891 p. 230), do regimento de dragões (em Vila Rica, a mais alta patente militar envolvida na sedição, comandante da Cavalaria Paga), Francisco de Paula Freire de Andrada (ou de Andrade, cunhado de José Álvares Maciel), enviaram-no para a Pedra do Encoge. Sobreviveu, progrediu na colónia e foi sepultado na Igreja
da Conceição de Luanda em 1809. Nascido no Rio de Janeiro, o seu pai, Conde da Bobadela, governara a capitania mineira (1752-1758). Junto com o cunhado, foi um dos idealizadores do movimento e a sua casa serviu de sede para a preparação dos acontecimentos. Aliás, era na sua casa que os Inconfidentes se reuniam, geralmente, para a boémia literária e política; a sua biblioteca era de referência entre eles, sendo por exemplo usada por Alvarenga Peixoto. Em fonte já citada se diz que ele foi condenado ao "degredo para Moçambique, onde aportou em 1792." Teria tentado voltar ao Brasil sem conseguir autorização, que lhe foi dada, segundo a mesma fonte, em 1808, "ano em que faleceu". Os dados, como se vê, não coincidem com os que temos a partir de Angola e de que talvez tenha beneficiado Luís de Queirós Matoso Maia, o irmão médico, e historiador, do poeta José da Silva Maia Ferreira. No entanto, não conheço os onze códices originais dos sequestros de bens que estão guardados no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que Luís de Queirós deve ter consultado, nem sei de todas as fontes a que teve acesso. O que está disponibilizado em linha (Autos da Devassa da Inconfidência...) menciona "oitenta e quatro volumes de livros", sem títulos.
Também de Francisco António de Oliveira Lopes, homem rico e poderoso, coronel e fazendeiro (que teria a característica de falar muito rápido), cuja mulher foi considerada a heroína dos Inconfidentes, se diz que foi degredado para Moçambique, embarcando a 25.5.1792, junto com Tomás António Gonzaga. Não sei o que se passou nessa viagem, ou entre a condenação e o destino final, mas a verdade é que, dos três, apenas o poeta de Marília foi mesmo para Moçambique. Oliveira Lopes, segundo outra página posta em rede, foi degredado para "o Bié" - o que se combina com a sepultura na igreja do Pópulo em Benguela. Este facto se vê corroborado em uma página de genealogia posta em rede, na qual se acrescenta que, em Benguela, o "Juiz de Fora brasileiro, Desembargador Antonio da Silva Lisboa", protegera o coronel inconfidente. Foi sepultado, como disse, na igreja do Pópulo, de Benguela, em 1800.
Martins dos Santos, em obra já citada, fala
ainda no inconfidente Joaquim Manuel de Sequeira Bramão, cujo apelido aponta para importantes e antigas linhagens portuguesas, que se mantiveram social e politicamente bem colocadas no fim do século XVIII e no princípio do século XIX. Importante para nós é que ele foi, como atrás mencionei,
professor de várias disciplinas em Luanda. Não sei, porém, se o nome estará certo. A dúvida me vem de não deparar com nenhuma outra referência ao seu nome em rede.
Parte significativa dos mineiros não se
adaptou, portanto, ao clima febril angolano e durou poucos anos aqui. Porém,
quer esses quer os que sobreviveram, acompanharam-nos o tempo suficiente para
deixar frutos e vincar referências bibliográficas atualizadas. Algumas delas podem ser encontradas nos Autos da Devassa da Inconfidência [...] já mencionados. Entre esses títulos encontram-se livros e autores que ressurgirão mais tarde nesta obra. São referências previsíveis: os poetas Anacreonte, Catulo, Horácio (incluindo a Arte poética em tradução de Cândido Lusitano), Virgílio, Ovídio, Petrónio, Tasso (Jerusalem libertada, em italiano), Sá de Miranda, os Lusíadas (com "notas de Faria"), Diogo Bernardes, Corneille e Racine, Milton com o Paraíso Perdido (em francês), As aventuras de Telémaco, Voltaire; Demóstenes, Cícero (De Officiis), Séneca, Quintiliano, Cândido Lusitano ("Máximas sobre arte oratória"); o historiador romano Quintus Curtius, Cornélio Nepos, Suetónio (o historiador dos Doze Césares), João de Barros e Diogo do Couto; Condillac, Montesquieu (O espírito das Leis; Considerações sobre a causa da grandeza dos romanos e sua decadência), o bispo Bossuet (teórico do absolutismo), Vernei. Das que não me lembro de ter visto mais tarde, saliento as Mélanges de la littérature orientale, o Gradus ad Parnasum (que certamente circularia por Angola), uma Nouvelle histoire poétique, o Teatro crítico de Feijoo e os Secrets des Arts.
Outro apontamento histórico-biográfico sobre esta época prévia: em
Outubro de 1799 nomeou-se Físico-mor e lente da aula de Medicina o Dr. José Maria Bomtempo. Destaco o seu nome por ter sido ele irmão do conhecido
compositor português João Domingos Bomtempo (1771-1842, o compositor oficioso do constitucionalismo português) e porque se integrava na mesma escola médica e filosófica de José Pinto de Azeredo, seu ilustre predecessor. Não foi só em Angola que exerceu magistério, medicina e pesquisa, pois se tornou
Tal como o antecessor, Bomtempo escreveu e publicou na sua área de atuação, nomeadamente "Compêndios de matéria médica (1814), Compêndios de medicina prática (1815) e Memória sobre algumas enfermidades do Rio de Janeiro (1825)".
A ligação ao Rio de Janeiro e ao Brasil não se limitou à presença de D. João VI em território americano. O nosso médico optou por ficar no novo país, adquiriu a cidadania brasileira e faleceu na capital a 2.1.1843. Terá, portanto, servido ainda alguns anos de ponte com famílias angolanas ricas e que pudessem, até, enviar os filhos a estudar na "Academia Médico-Cirúrgica, à qual presidiu até ser jubilado, em 1820", data em que foram adotados os novos Estatutos que elaborou.
De facto, as lições de Medicina também foram recebidas por alguns angolanos no Rio
de Janeiro, pelo menos uma dezena deles nesta época, ou seja, anos antes da
chegada ao Recife, para estudar, dos primos de Maia Ferreira. Um pouco antes, em 1812, uma Ordem Régia determinava que viessem dois alunos de Angola (e dois de São Tomé) "para estudar cirurgia e medicina na Escola Anatómica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro".
Para além das aulas citadas atrás, funcionavam outras de aprender a escrever, ler e
contar, tanto para meninas quanto para rapazes. Foram nomeados uma professora
para as meninas e um professor para os rapazes (Fr. João do Monte Carmelo) em
1795. Sabe-se que houve nova professora entre 1807 e 1810, apoiada pela esposa do governador geral (na altura António de Saldanha da Gama), D.ª Antónia Basília de Brito (Castelbranco, 1932 p. 52). Ainda se sabe, também, de uma mestra de meninas, creio que de uma escola privada, em Luanda, em 1816. Quanto a Frei João do Monte Carmelo, foi nomeado a 8.2.1795, pelo governador-geral Manuel de Almeida e Vasconcelos. Dava aulas no convento dos carmelitas, junto à igreja, cuja construção começara em 1660. Ávila de Azevedo, em Politica de ensino em Angola (Lisboa: JIU-CEPS, 1958, p. 121), afirma que o governador Saldanha da Gama terá criado as “primeiras
escolas elementares em Luanda e Benguela”. No final do século
XVIII, como no princípio do seguinte, sabemos que estes impulsos educativos
abrangiam também crianças e jovens da família real congolesa, que chegavam a
privar com o governador, jantando com ele. Isto não me interessa para legitimar ou denunciar as estratégias do poder colonial (obviamente existiam, sem qualquer inocência), mas porque tais personagens históricas intermediaram discursos e símbolos culturais preciosos entre os dois reinos.
Os impulsos educativos continuaram na primeira metade do século XIX, como vimos em parte. Podemos recordar alguns exemplos e quase todos ligados ao degredo por motivos políticos.
Um deles, acusado de jacobino, vem referido na Demonstração Geographica e Política do Território Português na Guiné Inferior, que abrange o Reino de Angola, Benguela, e suas dependências do nosso Joaquim António de Carvalho e Menezes. A julgar pelo que nos conta, o "bacharel em Matemáticas Manoel José da Cunha e Souza Alcoforado" não teve comportamento honesto na colónia. Porém, para o que perseguimos aqui (a circulação de referências bibliográficas), a presença dele foi, sem dúvida, importante. Recorde-se que o degredado "foi o primeiro lente proprietário do primeiro ano matemático" da Academia Real de Marinha e Comércio da Cidade do Porto. Calcula-se que tenha morrido em Angola.
Em 1817 foi descoberta uma conspiração maçónica, nacionalista e liberal, prontamente combatida com a morte de alguns dos mais proeminentes nomes, por enforcamento, incluído o grão-mestre Gomes Freire de Andrade, nascido em Viena de Áustria (1757-1817), enforcado por ordem de Beresford. Alguns dos conspiradores, homens da famílias nobres e muito bem formados, enfrentaram o degredo em vez da forca. Entre eles estavam Francisco António de Sousa, destinado a Angola por toda a vida, e Francisco de Paula Leite, condenado para Angola por cinco anos.
O mesmo destino conheceram revolucionários liberais, agora condenados por D. Miguel, uns à forca, outros ao degredo. Havia entre eles artífices e militares de alto gabarito. Por sentença de 9.4.1829, Francisco António de Abreu e Lima, fidalgo da Casa Real, foi degredado para o presídio das Pedras Negras, aqui referido já; Vitorino José da Silva Teixeira de Queiroz, capitão de milícias de Penafiel, após assistir ao enforcamento dos companheiros, foi degredado para Angola; Manuel José Peixoto, cirurgião de Oliveira de Azeméis, condenado ao degredo em Benguela; Inácio José da Rocha, sapateiro que exercia em Lanhela, "termo de Caminha", depois de açoitado pelas ruas do Porto, foi condenado a degredo perpétuo, em Benguela também; José das Neves Mascarenhas e Melo, bacharel em Direito, seguiu para Angola por dez anos, proibido de exercer a magistratura para o resto da vida. Segundo o padre Ruela Pombo, outro degredado importante e letrado foi o "físico-mór" Francisco José Maria de Lima e Quina. Terá sido "hóspede das prisões em Lisboa [onde ficou a mulher], como político liberal, antes de seguir para Luanda", cidade na qual faleceu a 29.4.1827. Não sei se teria sido degredado também José de Melo, "doutor físico" enviado para Pungo-a-Ndongo, mas não sei também em que data. Estranhei ver ali um médico naquele tempo e daí pensar que fosse um degredado. Soube da morte dele a 2.11.2836, conforme livro de óbitos da igreja de Nª Srª do Rosário daquela localidade.
Estes degredados, como os outros, reencontravam-se na colónia, conviviam muitos deles no quotidiano e conversavam com as pessoas dali. Claro que, sobretudo no começo, deviam vigiá-los, mas não tanto quanto em Portugal e, com o tempo e a posição que recuperava a maioria dos degredados, o policiamento abrandava. Alguns destes homens, tendo sobrevivido, voltaram a Portugal em razão das vitórias liberais, mas o tempo que se demoraram na colónia, bem como os contactos que mantiveram de lá, dariam azo à troca de informações bibliográficas, políticas, literárias e económicas. Eram, portanto, intermediários culturais ativos, quer enquanto lá residiram, quer depois de regressarem ao seu país. Outros ficavam pela colónia, lá procriavam e morriam.
Juntando-se tantos degredados políticos, o ambiente ficava explosivo e qualquer rastilho atearia revoltas. A 17.2.1821 o governador Továr pressentia o fim, escrevendo para o conde dos Arcos uma carta em que se confessava doente e impotente. Refere os degredados napolitanos (muitos integrados no exército, não podendo ser usados para combater as novas ideias que eles próprios veiculavam; outros que chegavam naquele momento; eram duzentos já residentes e chegaram mais 200 na fragata União). Refere também a "maruja vinda de Lisboa" com passagem pelo Brasil (de onde traziam a notícia da adesão de várias províncias nordestinas ao liberalismo). Todos (e sobretudo os napolitanos) tinham notícias das revoluções europeias e traziam-nas para ali, graças à cega política portuguesa do degredo que, cerca de duzentos anos mais tarde, Salazar repetiria recriando um caldo revolucionário - este já anticolonial.
Outra via, que já referi, seguia a rota contrária, dos angolenses que partiam para estudar. Alguns deles regressavam. Muitos, mesmo não regressando, mantinham contacto com familiares e amigos, atualizando a pequena elite local. Outros mantinham filhos e família no Brasil estando embora a negociar e viver em Angola. Vários casos destes (incluindo estudantes) foram já referidos por Roquinaldo Ferreira, e por mim na Notícia da literatura angolana. Entre 1833 e 1857, segundo Francisco Castelbranco, foram enviados para a “Metrópole” 108 “nativos”, entre os quais 20 angolenses, para estudos especializados. Desses 20, três regressaram médicos, um formou-se em Direito e os restantes voltaram pouco depois, sem terem concluído estudos (Castelbranco, 1932 p. 52). Quanto a médicos, sabe-se que cinco alunos nascidos em Angola se matricularam na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa (1837-1889), desconhecendo-se quantos completaram a formação e, desses, quantos regressaram. Em pesquisa recente, Idalina Maria Almeida de Freitas afirma que foram 19 os estudantes oriundos de Angola, regressando com o curso feito apenas quatro: Carlos Augusto dos Santos, Inocêncio de Sant’Anna, José Joaquim Geraldo do Amaral e Leonardo Africano Ferreira. Os alunos tinham os estudos pagos, em alguns casos (como o de Africano, filho de um antigo negociante de escravos) desde a primária, tendo este concreto estudante custado ao reino "o montante de 1:542$287, iniciando-se os recebimentos em agosto de 1841, assegurados desde os estudos primários até a formação superior no curso da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, quando, conforme decreto de 4 de novembro de 1850, foi nomeado cirurgião-mor do distrito de Benguela."
Apesar da separação do “império do Brasil”, a 7 de Junho de 1846
desembarcaram em Luanda, oriundos de Pernambuco, vários portugueses e brasileiros - e não só nesse ano. Entre eles encontrava-se o “Bacharel em Medicina e
Matemática” (Univ. Coimbra) António d’Almeida Vasconcelos Castelo Branco, que
tinha servido em cargos administrativos em Portugal (Governador Geral, 1846 pp. 594-595)
e disse que se vinha restabelecer de doença grave; e o Bacharel em Leis António Tavares da Silva Castelo Branco, que consta ter sido Juiz de Fora de D. Miguel, que se propõe advogar aqui.
O Dr. António de Almeida Vasconcelos Castelo Branco terá nascido em Viseu. Seria filho de Manuel Joaquim da Costa Bulhões e Maria Leonor de Vasconcelos. Entre outros cargos, deve ter sido nomeado, em 3.10.1836, "Administrador Geral" do distrito de Castelo Branco, segundo O Ecco (o periódico fala só em António de Almeida Vasconcelos).
António Tavares da Silva Castelo Branco instalou-se realmente em Luanda, onde assinava como sub-delegado em 1849.
Em 22.8.1846 foi nomeado professor primário de Luanda José dos Santos e
Silva (Governo Geral de Angola, 1846 p.
737).
A sua presença na colónia devia-se à fuga de São Tomé, onde foi perseguido por
moradores porque dava sinais de ser muito zeloso enquanto Escrivão da Receita
da Alfândega, lugar para que fora nomeado pela Rainha (Dec.º 12.7.1845). O novo
professor fizera (Governo Geral, 1846 p. 1)
os seus exames em Lisboa, onde por muitos anos exercitou o mesmo magistério, dirigiu, e bem administrou um estabelecimento de educação pública.
Ainda em 1846, por anúncio publicado no Boletim oficial, ficamos a saber da abertura da sua “aula”, na qual (anónimo, 1846 pp. 1-2)
se ensinará Doutrina Cristã, ler, escrever, e as 4 espécies de contas, Aritmética, Gramática Portuguesa e sua análise, Ortografia, princípios gerais de Geografia e História.
Fica-se também a saber que a “aula” seria gratuita para os pobres… desde que se apresentassem com decência (Governo Geral, 1846 p. 1).A presença de Santos e Silva foi produtiva (vamos encontrar o mesmo apelido na segunda metade do século XIX, no chamado "doutor Africano" e seu irmão, Henrique Santos e Silva, advogado, em Benguela - ambos descendentes de um comerciante e negreiro português, estabelecido em Luanda mas com ligações em São Tomé e no Recife) . Ele compilou, para os seus alunos, e ofereceu ao Governo geral, três compêndios, que os alunos copiaram: um de “Aritmética, outro de Ortografia e um terceiro de Versificação Portuguesa.” Segundo o autor (Governo Geral da Província de Angola, 1847 p. 1)
o Compêndio d’Arithmetica, não sendo tão extenso, nem tão complicado como Bezut,
seria útil
pela facilidade com que os discípulos o compreendem […] e persuado-me que sabendo-o bem, estão aptos a qualquer destino.
Quanto ao de ortografia, pela simplicidade das suas regras, e por abranger as principais, póde também servir para a Aula das meninas, que estudando-o, e copiando um livro clássico, não errarão muito quando escreverem.
O de Versificação Portuguesa [mais importante para a literatura, como é óbvio], aproveita a natural inclinação da mocidade, cultiva a memória, e serve para analyse de verso.
Finalmente o professor embarcou para Lisboa, “por algum tempo”, a 6.3.1848 (Governo Geral da Província de Angola, 1848 p. 3).
Um documento do dia anterior ao da nomeação de Santos e Silva refere o nome do professor de gramática latina: António da Conceição Carvalho Rego (Junta da Fazenda de Angola, 1846 p. 733), nome que se repete várias vezes no Boletim oficial da época.
Talvez não fosse parente de outra personagem que faz sentido nomear aqui. Trata-se de Ricardo da Silva Rego. Elsa Cochat Sequeira, sua trineta, publicou em 2002 o título Luanda antiga : histórias do tempo do Caprandanda (edição da autora, sl). Aí diz que era homem muito rico, e menciona a esposa, D.ª Ana Maria Escobar da Silva Rego. Ela estaria, de alguma forma (por família?) relacionada com a criação de Niterói, segundo a autora (que talvez se referisse a quando Niterói passou a Vila, no princípio do século XIX). Havia, também ali, tráfico de escravos. Não sei se relacionado com isso ou, como afirma Elsa Cochat, por morte da esposa, Ricardo da Silva Rego resolve ir morar em Luanda, cidade onde aportou "por volta de 1840" (op. cit., p. 2). Veio "em três grandes navios [com a família, incluindo filha e genro], transportando os seus pertences, os móveis de suas casas, os escravos naturais de Angola, animais e muito dinheiro" (id., ib.). Instalou-se na antiga residência dos jesuítas na Xicala, que recuperou olhando para Luanda até falecer, em 1859 (op. cit., p. 3). Naturalmente que, embalando até os móveis, Ricardo da Silva Rego deve ter carregado a sua biblioteca, ou boa parte dela, refrescando e alargando a bibliografia disponível entre nós.
No Seminário de Luanda (o novo, não o dos padres jesuítas), cujo Decreto de criação é de 1853, houve em certa altura (antes de 1863) oito alunos de “sciencias ecclesiásticas” (segundo um relatório de Mendes Leal),
quatro de Filosofia, onze de Francês, nove de música e dez de cantochão, tendo a Instrução Primária cerca de cem alunos
(Castelbranco, 1932 pp. 54-55).
Todos estes esforços criavam suficiente ambiência nativa de leitura
para que houvesse público local a consumir produção literária local e
estrangeira. Outro comprovativo – e estímulo – seria o do funcionamento, em
Luanda, de dois Teatros, em Agosto de 1846: o “da sociedade UNIÃO” e o “da
sociedade PROVIDÊNCIA” (Governo Geral, 1846 p. 2). Vale a pena
espreitar as representações que promoveram nesses anos, para termos ideia do
estado em que se encontrava a cultura urbana da colónia pouco antes de Maia
Ferreira publicar as Espontaneidades
e numa época em que se tinha já instalado em Luanda, viajando várias vezes para
o Rio.
O grupo mais ativo foi o da sociedade Providência. Vejamos.
Em Outubro, o teatro Providência realizou um “recital” do qual constavam duas “peças”: O fugitivo da Bastilha (com os atores Domingos José Pereira e Domingos José Pinto Calheiros) e a “Farça” O Galucho ou Amor e Gloria (com os atores Domingos José Pereira e Francisco Joaquim José de Sousa). O fugitivo da Bastilha não seria de Mendes Leal, como se terá escrito, mas a tradução de um original em francês (desconhecido, 1842). Para a peça foi também requerido exame censório no Brasil, “para encenação no Teatro São Francisco. Rio de Janeiro, 1844”, estando envolvido o nome de Martins Pena como um dos examinadores designados. O galucho ou Amor e Gloria foi também examinado no Rio de Janeiro, em 1852 (seis anos depois de Luanda). O autor era Antoine-François Varner (1789-1854) e a peça teve uma versão portuguesa, feita para o Teatro D. Maria II, em que a estória se desenrolava em “Estremoz”. Não estávamos, portanto, ‘fora do tom’, nem fora do tempo... Apenas em cenário exógeno.
A sociedade Providência foi particularmente ativa no segundo semestre
desse ano e um anónimo comentador ia fazendo a crítica teatral das peças e das
representações no Boletim oficial.
“Na noite de 31 de Dezembro” de 1846, representou “o Drama” Nódoa de sangue e O Velho Perseguido. O crítico do Boletim oficial aponta que, “a pezar de ser dos de segunda ordem,
tem a acção bem combinada e dirigida, scenas d’alguma força, e lingoagem
própria e bem vertida” (anónimo, 1847 pp. 1-2). Nódoa de sangue
fez parte de uma série de peças
de autores famosos ao tempo (e alguns ainda hoje, como Victor Hugo e Alexandre
Dumas [pai]), que o Archivo theatral
(1838-1845) imprimiu em folhetos. No Brasil foi a exame censório em 1855, com o
título Nódoas de sangue. Registada, a peça passou a pertencer a João d’Aboim, justamente o amigo de Maia Ferreira, que veio a publicar esse
“drama em 3 actos” em 1860 (Aboim, 1860).
A farsa O velho perseguido sofreu também exame de Martins Pena para representação no Rio de Janeiro em 1845. Foi depois examinada, por outros, em 1847, 1850 e 1854. Devia ser bastante popular, mas o comentarista do Boletim oficial não ficou entusiasmado, considerando (anónimo, 1847 pp. 1-2)
a revolução por que tem passado a cena, a diferença do gosto das épocas d'hoje e d'então, o preferir-se antes um enredo engraçado, como os das engenhosas composições de Scribe [autor muito popular ao tempo, também publicado em folheto pelo Archivo Teatral], a equívocos pouco decentes, foram as causas que frustraram os desejos d'agradar, e aliás a boa execução dos Atores.
O número seguinte reporta uma nova sessão na Sociedade Providência: o
“Drama original” Os dois renegados e
a farsa O aviso à Gazeta. O
comentarista elogia muito o autor do drama, o “Sr. Leal” e a sua peça, em que
realça a “linguagem amena”, os “lances verdadeiramente dramáticos” e na qual
espelha “sua alma toda poeta na primavera da sua vida rica d’amor e entusiasmo” (anónimo, 1847 p. 1). De facto, a peça
era famosa na época e tornou-se marco do romantismo português, pois foi
considerada o seu primeiro drama histórico, a esse título premiada pelo
Conservatório Nacional em 1839, ano da sua estreia no Teatro dos Condes, em Lisboa. Introduzindo
a peça, o dramaturgo expõe a sua ideia de teatro e confessa o magistério de
Victor Hugo, Alexandre Dumas pai (ambos constantes das nossas fontes) e
Delavigne.
Os dois renegados teve também grande sucesso no Rio de Janeiro, considerando-se “o
drama histórico de Mendes Leal mais encenado na Corte brasileira”
entre 1840 e 1850. A primeira representação teve lugar a 2.12.1840 e a
popularidade alcançada justificou a publicação local pelos irmãos Laemmert (Leal, 1847), ou seja, no mesmo
ano em cujo início se representou em Luanda.
Quanto à farsa, era da autoria de Ricardo José Fortuna e chamava-se O aviso da Gazeta (Fortuna, 1843). Também no Rio de Janeiro ela foi examinada, para representação, com requerimento feito em 1849 e exame em 1850. Pelas datas se vê, mais uma vez, que não estávamos desfasados em relação ao que se passava em Lisboa e no Rio de Janeiro.
Ainda no ano de 1847, mas em Setembro, a sociedade Providência
representou o “Drama Dois Primos e farça O Judas em Sábado de Aleluia” (Governo Geral de Angola, 1847 pp. 2-3). Para o drama não
deparei com referências ainda, mas a farsa (“comédia em um acto”) é conhecida,
ligando-nos uma vez mais ao Brasil: é considerada uma das melhores comédias de
Martins Pena, tendo-se representado em 1844 e publicado em 1846, ou seja, no
ano anterior ao da sua representação na capital da colónia. Por acaso, pouco
depois (a 20 de Outubro) partiria para o Rio de Janeiro “J. da Silva Maia
Ferreira”, passageiro da “barca portuguesa Favorita” (Governo Geral
de Angola, 1847 p. 4).
A Sociedade União, por sua vez, representou, a 13.2.1847 o “Drama Cigano e o Frenesim de Mulheres – farsa” (Governo Geral da Província de Angola, 1847 pp. 1-2; Abrantes, 2005 p. 71).
Em 1848 fundara-se, entretanto, a associação Prazer Dramático. O elenco era constituído, sobretudo, por “mancebos […] da classe de commercio” (como foi Cordeiro da Mata, durante anos). Foi muito comum esta ligação entre a classe do comércio, principalmente caixeiros, e o teatro, também no Brasil, o que se confirma lendo os jornais da época, do Rio de Janeiro.
Os recursos de que dispunha a Prazer Dramático não dariam para grandiosidades, o que se compensava pelo esmero. O teatro era pequeno, mas muito bem arranjado: “com muito gosto e simplicidade ornado e disposto (honrando muito o curioso architecto e pintor)” – cujo nome, infelizmente, não conhecemos. Além de leitores – o que nos interessa aqui – não percamos de vista, aliás, que a representação teatral pressupunha também a participação de pintores para compor os cenários. E há uma tradição de pintura em Angola que vem do século XVII, de quando se pintaram as igrejas da Muxima e de Massangano através de padres filhos da terra…
As sessões eram, como nas outras Sociedades, constituídas por um Drama e
uma Comédia ou Farsa. O drama escolhido para iniciar as representações era
muito conhecido nesse tempo: A engeitada,
em dois Atos. O autor assina a publicação da peça com iniciais: J. M. B. M. O
exemplar disponibilizado
no google, da Univ. de Indiana, tem
uma anotação a lápis azul, no começo, nomeando “José Maria Bras Martins” (M., 1845). Estreou-se em
Lisboa a 17.5.1845, na “Sociedade Thaliense”, e a intriga se passa mesmo nessa
década e nesse lugar. Uma vez mais, não estávamos desfasados em relação ao que
se representava na capital do Império.
O comentarista do Boletim oficial elogia a escolha das peças e a representação (o “conservar-se em carácter”, o “possuir-se” pela personagem ou o estar “muito em caracter”), com única exceção, feita a um dos atores, que não revelou “entusiasmo dramático” (Governo geral da Província de Angola, 1848 p. 3). Para a farsa não deparei com nenhuma referência até agora.
A entrada em cena de um novo teatro deve ter impulsionado as obras no
da Sociedade Providência, muito elogiadas no Boletim oficial, a propósito de nova representação. O novo drama
era também conhecido: D. Afonso III,
em 5 actos. A farsa era igualmente conhecida: O aprendiz de ladrão. Os cenários e a roupa foram elogiados (a
roupa “acomodada à época”), bem como a escolha das peças. E ressalta-se a
atuação do ator Gamboa, no drama, porque “preencheu completamente o seu papel”,
reprovando-se, mais uma vez, um outro ator que revelou pouca “força de
caracter” (Governo geral da Província de
Angola, 1848 p. 2). Ora, o apelido Gamboa nos aparece constantemente ao longo do século XIX e também ligado à poesia, por via das suas musas luandenses...
O autor da peça foi Henrique Guilherme de Sousa e o título completo era Afonso III ou o valido d'El-Rei : drama em 5 actos (Sousa, 1840). Nela o comentarista oficioso realçava os “combates do sentimento” e as “lutas da alma”. A peça estreou-se no teatro de S. João, no Porto, a 21.1.1840. A farsa sofreu exame censório, sendo aprovada para representação, no Rio de Janeiro, em 1853. Em Luanda, o comentador oficioso elogiou bastante um jovem ator que “deu a conhecer um genio decidido para o Teatro”, conseguindo “vivacidade” e “prontidão”.
Nesta guerra de teatros, a Providência ganharia largamente, pelo menos a julgar pela frequência com que levava peças à cena e pelos elogios do Boletim oficial. Mas o governador parecia privilegiar a nova Prazer Dramático, pois ia lá assistir às representações. No entanto, a julgar pelos comentários no Boletim oficial, também faria o mesmo, sempre que pudesse, na Sociedade Providência, tanto ele quanto as “Senhoras” de Luanda. Isso mesmo se confirma a propósito da exibição do drama em quatro atos Joana de Flandres e da farsa Pagar o mal que não se fez. A representação do drama é, já de si, muito significativa, porque esse é o título de uma ópera do compositor (contemporâneo) brasileiro António Carlos Gomes (1836-1896), que a compôs em 1863, com libreto de Salvador de Mendonça. Deve ter havido uma novela, ou peça de teatro, anterior, com esse título, contando a história de Joana a Louca, da qual partiu a ideia da ópera.
A concorrência entre sociedades dramáticas continuava e, a 28 de Maio
de 1848, a Prazer Dramático reincidia com o drama Os salteadores e duas “engraçadas Farças” (Governo geral
da Província de Angola, 1848 p. 3): O noivo caçador e O Primo d’Embofia. A aposta era alta e, provavelmente, arriscada: Os salteadores, uma peça de Schiller (de 1780) considerada uma obra prima na época, apela à revolta contra a tirania social e
foi a primeira das três que lhe valeram a atribuição de cidadania francesa,
segundo Teófilo Braga. Tratava-se, portanto, ao mesmo tempo de um marco do romantismo
e de um marco da luta pela liberdade.
Quanto às farsas, O noivo caçador
tinha por autor C. A. da Silva, mas nada mais consegui saber até agora, se não
que aparece em coleções dramáticas do século XIX. O Primo dembofia, ou estapafúrdio logrado foi uma comédia escrita
por José António Coimbra e fazia
parte dos livros do Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro,
tendo-se publicado em Lisboa em 1847 (Coimbra, 1847), ou seja, no ano
anterior ao da sua representação em Luanda.
A Sociedade Providência respondia em Agosto, representando o drama em
cinco Atos O captivo de Fez e a
farsa, em um Ato, O galego lorpa e os
tolineiros. O comentarista oficioso destaca o cenário “pelas bem pintadas
vistas” (Governo geral da Província de
Angola, 1848 p. 4).
O drama histórico, desconsiderado mais tarde por Machado de Assis, foi muito conhecido no seu tempo e teve autoria de António Joaquim
da Silva Abranches (Abranches, 1841), recebendo prémio do
“Conservatório
Real de Lisboa, em 22 de Dezembro de 1840 e representado pela primeira vez no
Teatro normal da rua dos Condes, em 23 de Janeiro de 1841”.
Que sentido teria representar ali O
captivo de Fez? Nós hoje estranhamos muito que Maia Ferreira, no poema «A
minha Terra», dissesse que, se tivesse estro para tanto, cantaria uma série de
heróis ‘africanos’, que mais não eram do que portugueses que lutaram no
continente africano. Mas o ambiente cultural em que imprimiu o livro era este
(repare-se na quase total coincidência das datas) e, face a estas
representações de carácter histórico (emparceirando com o romance histórico do romantismo
lusitano), percebemos melhor a funcionalização desses heróis para o contexto
local.
Quanto à farsa, o Novo entremez
intitulado o gallego lorpa e os tolineiros era
assinado por Manuel Rodrigues Maia, tendo-se publicado em Lisboa em 1808 (Maia, 1808).
Pelo mesmo Boletim ficamos a
saber que, por essa altura, fora também representado “a bordo do brigue de
guerra francês le Mercure, um vaudeville em 5 actos – Le Tourlourou de M.M.
Warin e Desverges”. A peça foi representada pela primeira vez no Teatro du
Vaudeville a 21.9.1837 e publicada no ano seguinte (Desvergers,
et al., 1838).
A autoria incluía Paul de Kock, nome que vimos nas nossas fontes e era,
portanto, tripartida.
O teatro, muito em voga nessa época em toda a Europa, combinava melhor
com as tradições locais do que a poesia europeia, tão vinculada a cânones
‘racialmente’ consignados. Isso pode ter ajudado a que o teatro se mantivesse,
entre nós, tão popular.
Retornando à circulação bibliográfica, é de recordar aqui a atuação, no
Brasil, de livreiros e editores com ligações comerciais a Portugal mas também a
Angola. Exemplo já levantado por pesquisadoras brasileiras é o de João Roberto Bourgeois,
que estaria no Rio de Janeiro “pelo menos desde 1782”. Aí se tornou “um
negociante de grande importância, cujas ligações, entre 1809 e 1811,
compreendiam as praças de Lisboa, Porto, Luanda e Londres, e, no Brasil, São
Paulo, Santos e Porto Alegre.” (Neves, et al., 2018 pp. 84-85)
Por volta de 1812 (deve ter sido um pouco antes) terá feito “estudos eclesiásticos” no Rio de Janeiro o futuro cónego Manuel Patrício Correia de Castro, “às expensas de Dom Manuel de Antas de Lima, Vigário Geral” (Araújo, 2012 p. 81) e seu padrinho. Não foi somente mais um angolense que estudou no Brasil, foi um dos nossos primeiros autores a publicar, um dos maiores vultos da cultura urbana de Angola na primeira metade do século XIX e um bibliófilo notável: ao morrer, a sua biblioteca pessoal era constituída 416 volumes. Ele foi, também, nomeado professor de Latim em Luanda, já depois de vir do Brasil e antes de ir assumir o cargo de Deputado às Cortes Constituintes em Lisboa. Falaremos dele várias vezes ao longo deste percurso, mas aqui chamamo-lo para lembrar a presença decisiva da relação entre Angola e Brasil na nossa cultura urbana, presença também familiar ao cónego, pois era primo direito de José Maria Matoso de Andrade Câmara, da família materna de Maia Ferreira, bem como do ministro brasileiro Eusébio de Queirós Coutinho Matoso Câmara (n. 1812).
Antes de 1822 dá-se um derradeiro envio de degredados, os derrotados da
revolução pernambucana de 1817, cuja migração ligará mais ainda Luanda,
Benguela e a zona de Recife-Olinda.
Apesar de não serem geralmente referidos, estes degredados foram tanto
ou mais importantes para Angola do que os da Inconfidência, procedendo muitos
deles (como acontecia com os da Inconfidência) das mais poderosas e ilustradas
famílias (neste caso, pernambucanas). Entre outros motivos, porque estavam mais
atualizados bibliograficamente e já tinham planos políticos mais definidos e
mais avançados: proclamaram a república e a independência (uma República
Federal Independente), decretaram a liberdade de imprensa, económica e
religiosa, fizeram uma Constituição à semelhança da dos EUA, reuniram maçons
das muitas lojas pernambucanas com religiosos católicos (fazia parte do governo
provisório, por exemplo, o padre João Ribeiro Pessoa, que foi Mestre de desenho
no Colégio de Olinda). A revolução foi recebida com entusiasmo em Londres, pelo
Correio brasiliense, que também se
lia muito em Angola (Pacheco, 2000 p. 34), vendo-se nela o
início de um processo irreversível de libertação. Só não propuseram o fim
imediato da escravatura (o que iria afastar os proprietários de terras,
fundamentais para o sucesso militar da revolução). Sugeriam, sim, uma evolução
“lenta, regular, e legal” para a sua extinção, equilibrando as relações entre
os valores da igualdade entre os homens e da salvaguarda da propriedade
individual (Governo Provisório de Pernambuco,
1817).
Trouxeram, no conjunto, um novo e decisivo impulso político no sentido
da liberdade e, naturalmente, esse impulso viria acompanhado por uma
literatura. Essa literatura, a julgar pelo manual de retórica de Frei Caneca
(herói e mártir da revolução), estava ainda sob o domínio da retórica
neoclássica, mas colocava-a sob comando revolucionário – viragem comparável ao
que já tinha acontecido com a Revolução Francesa.
Por esse e por outros motivos (Pernambuco e Angola, 1956), é de perguntar
ainda pelo que ficou, em termos de obras e das nossas fontes, dos legados
clássico (greco-latino) e neoclássico (sendo que vinham geralmente juntos nessa
época).
Ficou muito. Pelo que ficou não é de estranhar que sejam também muitos
“os estudos que nos mostram […] o romantismo dos clássicos e o classicismo dos
românticos” – pelo menos de alguns (Cunha, 1979
p. 45). O que digo a
seguir contribui para se perceber isso mesmo, tendo como base principal o Diário de Pernambuco publicado entre
1825 e 1850, minha data limite para a pesquisa no Recife. Explicito igualmente
os outros motivos que me levaram a isso.
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