Dois ultrarromânticos portugueses em Angola


Quanto ao primeiro, de seu nome completo Ernesto Frederico Pereira Marecos (16.6.1836-1879), nasceu numa família culta e literata, sendo o prefácio do seu livro inaugural dedicado a um tio escritor, Firmo Augusto Pereira Marecos (Marecos, 1865). O seu pai, José Frederico Pereira Marecos, era também poeta conhecido, além de funcionário público e bacharel em Direito. Sendo um "prestimoso técnico da arte gráfica", José Frederico visitou as mais importantes tipografias europeias e chegou a Administrador da Imprensa Nacional em Lisboa, para a qual contratou, segundo J. V. Ribeiro, o "distinto artista alemão (Inácio Lauer), educado na Imprensa Nacional de Viena" e empregado na "fundição dos tipos"

O nome de família (Marecos) indicia provavelmente a origem na freguesia homónima do concelho de Penafiel, ao norte de Portugal. O topónimo é de origem germânica, embora o lugar fosse habitado já de muito antes.

Segundo Branca de Gonta Colaço, Ernesto Marecos nasceu em Lisboa (o que se confirma pela sua matrícula na Universidade de Coimbra (Marecos, 2018 pp. 10-11)) em 1836 e foi funcionário colonial, administrativo, em Angola e Moçambique. Segundo Inocêncio Francisco da Silva, nascido em Lisboa a 16.6.1836, foi para a ilha do Ibo (Cabo Delgado, Moçambique) em 1869, nomeado diretor da alfândega. Sabemos também que viveu na Índia. Segundo Aparecida Ribeiro, foi transferido para Nova Goa, Pangim, em 1875 e, pelo que sei (Soares, 2001), ali terá permanecido até 1878, ou 1879. 

Entretanto surge colaboração sua, junto com a de Júlio César Machado, João de Lemos e outros, no primeiro ano do Almanach investigador útil e recreativo para 1877, publicado em Lisboa (impresso na tipografia Universal) em 1876. Certo é que subscreve o último poema de Folhas sem flores (na verdade poema-dedicatória, «Ao fechar o livro») de "Lisboa, 11 de novembro de 1878". O trecho que introduz a "Parte Segunda" do livro, por sua vez, assinou-o também em Lisboa, a "26 de outubro de 1878". A vivência na Índia realizou-lhe o mito romântico do amor, pois narra (lirica e subjetivamente) que foi lá acometido por uma violenta paixão traída, à maneira dos filmes indianos de hoje, paixão que o arrebatou quase até à morte (segundo afirma), fornecendo-lhe os motivos centrais de Folhas sem flores, as de mais dorida e vívida intimidade, sua melhor obra na minha opinião. Os poemas que nos contam essa paixão foram datados em Goa, de 11.2.1877 a 20.3.1878, sendo o último («Último adeus»), localizado sem data "No mar.-". Segundo algumas fontes, em 1879 terá partido para Moçambique, vindo aí cumprir o destino a que escapou Camões: morrer. 

Mas a sua história como funcionário colonial começa antes de 1869, justamente em Luanda. 
Segundo as investigações de Francisco Topa, terá chegado a Angola no primeiro semestre de 1856, depois de interromper o curso em Coimbra (estando no 3º ano) por motivos indefinidos (a julgar por Maria Aparecida Ribeiro, políticos). Exercendo uma atividade profissional oscilante enquanto funcionário público, anunciando-se como advogado, a sua atuação cultural é que parece ter sido intensa e consequente, quer no que diz respeito à literatura, quer no que respeita ao Teatro (também como ator) e ao jornalismo, ‘literário’ em sentido lato (Marecos, 2018 p. 15)

Deve ter ido embora de Luanda no segundo semestre de 1857, possivelmente em consequência de um conturbado processo movido pelo conflituoso juiz Luís José Mendes Afonso, que, segundo o governador Adrião Acácio da Silveira Pinto, andava com as mãos sujas de dinheiro. O processo relacionado com a sua partida pode ser relativo à ausência de Marecos, "não obstante ter sido devidamente avisado", em sessão da Relação, que por tal motivo o suspendia de exercer como advogado junto da Relação. Foi entendimento do juiz e da Relação que, suspenso por esses motivos, também devia ser impedido de exercer a função de "curador dos presos pobres e dos escravos e libertos", para que fora nomeado em dezembro do ano anterior. Acho que residia no interesse pela função o motivo mais fundo que levava à suspensão do advogado. O lugar era demasiado importante e a atuação de Marecos talvez não conviesse a certos interesses locais, aos quais o juiz se associava, pensa-se. O governador entendia, como também Carlos Botelho de Vasconcelos (Procurador da Coroa e Fazenda em Luanda), que uma suspensão não implicava a outra, tanto mais que a segunda competia ao governo geral e não podia ser impedida pela Relação. Por esse motivo ordenou que Ernesto Marecos não fosse impedido de exercer o cargo de "curador dos presos pobres e dos escravos e libertos". O caso chegou até ao ministro Sá da Bandeira, que despachou favoravelmente ao governador e ao poeta. No conjunto se dispendeu somente o mês de maio de 1857 para resolver o processo. Leitores interessados podem confirmar tudo nos Boletins oficiais do governo-geral desse mês ou, caso encontrem, na obra O outro lado da escravatura: Repressão e abolição do serviço forçado de carregadores e do tráfico de escravos, da autoria de Filipe Martins Barbosa de Mascarenhas (Luanda: autor, 2012, pp. 83-92). Sublinhe-se que este foi período crucial na abolição do tráfico e na vigilância do trabalho forçado que o substituía, o que em parte explica também a celeridade no processo. Todavia, será necessário consultar ainda os números seguintes do Boletim oficial para encontrar a destituição de Ernesto Marecos do importante cargo referido.

A ser assim, a sua presença entre nós, de forma continuada, reduziu-se a cerca de ano e meio. Sabe-se, porém, que passou mais vezes por Angola, passagens cujo desconhecimento em pormenor nos leva a desconsiderá-las, mas isso pode constituir um erro, do qual agora me dou conta.

Por exemplo, em 1862 Ernesto Marecos chegou a fazer uma viagem a Quilengues (Marecos, 2018 p. 32), cuja colonização continuada começara no tempo do governador Sousa Coutinho (1764-1772) e constituía o único presídio e ponto de apoio mais sólido (a cerca de 220 quilómetros de Benguela) numa das duas rotas para o reino do Bié – itinerário fundamental das caravanas de escravos e comércio de longa distância. No entanto, as primeiras tentativas de ocupação de Quilengues datam do século anterior e foram romanceadas em O que a África não disse, de Basílio Tchindombe (Tchindombe, 2008), autor que se baseou também em pesquisas históricas. O presídio, sendo nesses anos (1862) um dos dois pontos obrigatórios de passagem e de proteção para os sertanejos, era pouco frequentado por portugueses e, tal como Caconda, por esse e outros factos, a sua continuidade originou uma pequena comunidade intermédia, resultante sobretudo da presença de militares negros, brancos e mestiços (é de uma dessas comunidades que descende o ensaísta, poeta e ficcionista Luís Kandjimbo, sendo um dos seus antepassados uma das testemunhas que assinou o inventário de órfãos do investigador português José de Anchieta, segundo o próprio me disse e coincide com uma das assinaturas de testemunhas no Inventário de Órfãos do cientista, Manuel Rodrigues da Costa, filho de José Rodrigues da Costa, que não deixou livros ao morrer). Estas comunidades intermédias de suporte e fronteira (sem linha definida) substituíam, ou representavam, os interesses dos comerciantes de Benguela e, muitas vezes, os das autoridades tradicionais também. Sendo assim, os portugueses instalados em Benguela e zonas próximas não viajavam muito por estas duas rotas do interior, instáveis em face das constantes disputas pelos interesses em jogo. Isto mostra que Ernesto Marecos conheceu qualquer coisa de uma Angola mais profunda e antes ainda da publicação de Juca, a matumbolla.


Nessa altura, aliás, ou foi várias vezes a Angola, ou se demorou por lá. Nos arquivos do tribunal de Benguela encontrei um documento em que ele assina como advogado de Leonardo Africano Ferreira. Era este um respeitado médico dado como “africano”, de família santomense fixada na cidade, cujo irmão era advogado e professor (Henrique dos Santos e Silva) igualmente reconhecido e respeitado na cidade. O “dr. Africano” é uma das personagens do extrato social superior da pequena sociedade benguelense referida nas Aventuras policiais do repórter Zimbro, de Augusto Bastos. Aí se mencionam as informações que acabo de dar, bem como o rumor de que teria morrido envenenado. Leonardo Africano Ferreira era então “cirurgião-médico civil residente” em Benguela e o documento vem datado de “Benguella, 31 de Dezembro de 1860”[4].

Depois de 1862, há um poema que teria sido escrito num regresso a Portugal em abril de 1863. O que pode significar a sua presença, quer a continuada, quer as outras, no que diz respeito à poesia?

Marecos frequentava o círculo do ultrarromântico Tomás Ribeiro (seu contemporâneo em Coimbra (Marecos, 2018 p. 10)), ainda conhecido mais tarde pelo santomense Caetano da Costa Alegre. Também ficcionista, mas acima de tudo poeta lírico, possui uma extensa bibliografia (iniciada nesses anos 60 do século passado, após a sua permanência em Angola), tendo sido colaborador em O bardo (1852-1855, segundo Inocêncio – portanto antes da vivência angolana. Note-se que só um poema, na segunda edição, vem datado de fevereiro de 1855 e dois de janeiro, pelo que podemos datar as composições aí reunidas até fevereiro de 1855).

Podemos resumir esta colaboração para termos ideia do que ela nos traz. Ela se resume a cinco poemas. O primeiro chama-se «No Album / DA EX.mª SNR.ª D. M. C. C. C. e V.”, nascida “nas florestas” e “rainha das festas” em Coimbra em “Junho de 1854” (AAVV, 1857 pp. II, 58-60). O poema vem tutelado por uma citação de V. Hugo, uma sintomática estrofe que termina assim: “Tu vois Dieu sourire / Mais je vois l'homme pleurer !”.

Na segunda colaboração (AAVV, 1857 pp. II, 65-67), Marecos localiza-se em Lisboa, em setembro do mesmo ano. O título coincide com a dedicatória: “Ao meu amigo F. X. de Novaes”. A epígrafe, porém, desta vez é do clássico Virgílio: “Tacitum vivit sub pectore vulnus.” Na verdade, o verso virgiliano começa por “Et” (sentido geral: “e silenciosa a ferida vive no peito”), mas isso aqui não tem qualquer interesse. Ele encontra-se na Eneida, canto VI, v. 67, o que também não constitui novidade neste panorama de leituras, sobretudo de estudantes de Direito. Mais importante é o contexto imediato em que surge a citação: Virgílio refere-se à paixão de Dido, que então começara a senti-la e tinha, naquela passagem, o sentido de apontar a desvantagem de se esconder o sofrimento, ou o sentimento. No poema, refere-se ao sofrimento do poeta do qual ninguém desconfia, pensando que é feliz.

O terceiro poema, «Verdades» (AAVV, 1857 pp. II, 82-89), vem datado de 26 de julho de 1854 (antecede, portanto, em dois meses o segundo), localizando-se o poeta já em Lisboa. É uma composição longa, subdividida em cinco secções. O quarto segue-se a um poema de Bulhão Pato e chama-se «Borboleta negra» (AAVV, 1857 pp. II, 102-104). Não tem epígrafe alguma e também não localiza o poeta. Vem datado de “Julho 14 — 1854.” Teria sido escrito em Coimbra e revisto em Lisboa? A quinta colaboração tem por título «Rosa das três folhas», também não recorre à epígrafe e localiza o poeta em “Coimbra — Maio 1854.” (AAVV, 1857 pp. II, 119-120) Trata-se de outra composição destinada a um álbum de amigo, de acordo com a prática típica da época e dessa escola literária. Os cinco poemas foram, portanto, escritos entre maio e setembro de 1854 (latu sensu um Verão), em parte no período de férias, estando o poeta em Coimbra e em Lisboa, conforme as datas, que indicam um movimento da capital universitária para a capital política.

Nestes poemas e de forma geral, ainda que várias vezes o autor recorra aos clichés da época, há uma aproximação dos ritmos e da sintaxe à linguagem quotidiana, que vamos notar igualmente em Faustino Xavier de Novaes e que notaremos no poeta-comerciante-aventureiro Francisco Gomes de Amorim. No nosso pequeno meio, no Dondo, Eduardo Neves acompanhou (certo, com atraso, mas ele nasceu em 1854) a tendência, destacando-se por isso.

Recorde-se que O bardo foi um periódico do ultrarromantismo tardio (mas incluindo nomes anteriores, como por exemplo Bulhão Pato), comandado por Faustino Xavier de Novaes, de quem Marecos se diz amigo nas Primeiras inspirações – um livro huguiano (Marecos, 1865 pp. 111-113). A lírica e, sobretudo, a sátira do “redactor” do periódico (na parte I em colaboração com A. Pinheiro Caldas) mostravam essa tendência para o distanciamento face à linguagem empolada e artificial dos ultrarromânticos anteriores, aliás ironizada algumas vezes, e parece-me que essa tendência tinha companheiros em O bardo, incluindo mais velhos como Bulhão Pato, cuja lírica se timbrava pela mesma aproximação da linguagem poética à linguagem natural, espontânea, do quotidiano (culto e erudito, compreende-se). Ernesto Marecos estava, portanto, bem dentro do espírito do periódico.

Sintomático, também sob este ponto de vista, que tenha Camilo Castelo Branco prefaciado as infelizes e sentidas líricas de Folhas sem flores (um título de ressonâncias huguianas e garrettianas (Marecos, 1878)). Quando se começou a ler Camilo com mais atenção percebeu-se que ele fazia o mesmo nas suas narrativas: ele usava um português castiço e próximo do quotidiano, ironizava as frases enfatuadas de algumas personagens e o protótipo da leitora e do leitor ultrarromânticos.

Por sua vez o próprio autor prefaciou, com outra carta, as Aparições (ainda ultrarromânticas (Azevedo, 1867)) da fase inicial da obra em verso do português Guilherme de Azevedo (1839-1882), colaborador do Almanach de lembranças e, mais tarde, um dos nomes da geração de 70 (chegando a partilhar com Guerra Junqueiro o pseudónimo Gil Vaz), que terá sofrido alguma influência de Baudelaire.

A constelação literária por que se orientava era, portanto, ela toda, ultrarromântica nesse tempo, mas a caminho do futuro. No interior de tal escola, Fidelino de Figueiredo refere-se-lhe como um dos poetas da fase decadente, exemplificando com o livro A morta (Marecos, 1867). Albino Forjaz de Sampaio, ao dá-lo como colaborador da segunda série (creio que se refere à parte II) de O Bardo, afirma o mesmo que Fidelino. Sem dúvida, mas o aligeiramento e o realismo da linguagem são já sinal da superação do sentimentalismo forçado, dos defeitos da escola à qual pertenciam.

A bibliografia de Ernesto Marecos é, como disse, longa. Por isso respigarei aqui apenas os exemplos interessantes para a formação da nossa literatura. Não é provável que a décima intitulada «A Vida», que saiu no número do Almanach de lembranças para 1856, fosse a primeira colaboração enviada de Angola para o anuário, hipoteticamente aquela que abriria as portas às dos autores seguintes. Trata-se de um excerto (sem que o Almanach o diga) de uma composição mais longa e homónima, datada de 1854 e publicada nas Primeiras inspirações (Marecos, 1865). Muito provavelmente, nesse ano estava ainda a composição por acabar e teve a ante-estreia, quiçá para ver o que dela se dizia.

Três das Primeiras inspirações foram escritas em Luanda, a saber: «Flor da Africa / A Ex.ª Sr.ª D. Candida M. Gamboa», composta em 1856; «Um Conselho / A Ixmª Sr.ª Adelaide Gamboa» e «A Loanda», escrita na capital da colónia em 1857 e republicada mais tarde, segundo Manuel Ferreira e Gerald Moser, no nº 41 (3.8.1886) d'O futuro de Angola (p. 1). No mesmo passo indicam ainda os autores que de Marecos se imprimiram os versos «O povo livre» no Boletim oficial. Uma leitura passo a passo da produção de Marecos relacionada com Angola deve, no entanto, ser feita, completando esta, através da edição de Francisco Topa que tenho vindo a citar. O investigador e professor portuense refere mais um poema escrito em Luanda, mas não vê nele marcas locais.

A reposição pública de «A Loanda» no jornalismo da terra, em 1886, demonstra que o lastro do seu nome perdurou na cidade e na colónia. Portanto, quando saiu Juca, a matumbolla, certamente que o livro teria chegado a Luanda e o leram lá, apesar de não conhecermos mais nenhuma referência a tal mito, tirando a do seu amigo e colonial A. de Sarmento, que foi a sua fonte, como bem mostrou Francisco Topa. Sabemos, porém, que o mito existe e vem mesmo ressurgindo nas redes sociais a partir de colaboradores angolanos, entre eles diversos jovens. 

A estória teria sido ouvida a um oficial do exército português natural do Encoge, portanto o mito corria por ali certamente na época, tornando-se ainda mais estranho que não haja qualquer outra referência a Juca na época e por muitos anos.  “Matumbôla” e “maiombóla” constam, no entanto, no Ensaio de dicionário kimbundu – portuguez de Cordeiro da Matta (Matta, 1893 p. 88).

O livro existia no Arquivo Histórico Nacional de Luanda quando lá pesquisei, mas era um exemplar que tinha pertencido à Diamang, pelo que não sei se teria circulado por ali antes de 1917. O livro, aliás, penso que foi integrado mais tarde; a sua presença ali não deve ser anterior à viagem de José Redinha a Portugal em 1945, ano em que o museu (criado em 1936 e cujos primeiros objetos foram recolhidos em 1938) começou a ser construído, compreendendo já um espaço para a sua biblioteca (Bevilacqua, 2016 pp. 138-140)). O que é estranho é que Marecos, tendo passado por Luanda (e, talvez, Benguela) várias vezes, indo ou vindo de ou para Moçambique ou Nova Goa, não tenha deixado ali um exemplar e, mais, que esse exemplar não fosse comentado localmente. Pode ser que ainda surja qualquer estudo que nos revele uma leitura local e mais ou menos contemporânea.

A inspiração dos versos enredados pela referência africana pode, porém, aquilatar-se a partir do que ele diz de Dª Cândida M. Gambôa: “[...] em terra alheia / Floriste, d'encantos cheia, / Nestes desertos d'areia, / Aos ardores d'este sol!”. Se a adjetivação telúrica vem na linha direta da de José da Silva Maia Ferreira, a frouxidão semântica e o desleixo na cesura do segundo verso alertam-nos para uma influência que, nesse particular aspeto, não beneficiou muito a literatura dos novecentistas angolenses.

Folhas sem flores recria, como já anotei, a vivência do poeta na Índia. Por isso também, o título ganha um cunho biográfico, particular, em que as folhas sem flores fazem a analogia de um amor que não deu fruto. O seu verso, já em muitas passagens ágil e adaptado à linguagem corrente como o do amigo Faustino Xavier de Novais, anima-se mais, ganha vivacidade, calor humano que pode ser chamado a perdoar o facilitismo técnico – traço oposto ao da tendencial atomização das normas genológicas, numa dualidade que separa os poetas ingénuos, ou meramente impulsivos, dos autênticos poetas de filiação romântica.

Mas o seu livro mais importante para a literatura angolana, a posteriori, foi sem dúvida Juca, a matumbolla, título surgido em Lisboa em 1865, quando o poeta aí trabalhava, no Ministério das Finanças (era amanuense na direção geral de Contabilidade (Marecos, 2018 p. 15)). Inicia essa figura mítica da adolescência uma curta série dedicada às tradições, que se continua em O tesouro de Fafnirlegenda extraída das tradições germânicas acerca da morte de Attila (Marecos, 1866), e Savitri : lenda indiana (Lisboa, 1867 – que lembra Sacuntala, trad. que Schlegel fez do drama de Kalidasa). Juca, A Matumbolla, ao mesmo tempo que demonstra a curiosidade étnica do seu autor, abre aos poetas locais uma precedência a explorar em favor dos anseios regionalistas, o que Manuel Ferreira reconhece nas Literaturas africanas de expressão portuguesa, embora colocando ao mesmo nível João Cândido Furtado, Ernesto Marecos e Eduardo Neves, que nem biograficamente nem literariamente se pode confundir com os outros dois.

A importância de Marecos para a fixação do Ultrarromantismo em Angola dever-se-á, também, a mais fatores. O primeiro é o próprio facto de ele reconhecer dignidade poética às lendas locais, e mesmo com os preconceitos que revela nos textos em prosa republicados por Francisco Topa e nas notas ao poema Juca, a matumbola. O preconceito era o do que se concebia como civilizado opondo-se, ou distanciando-se, do que ele concebia como selvagem. A dignidade poética reconhecida à lenda local não teve consequência direta, na medida em que o registo dessa lenda passou apenas por outro colonial, A. de Sarmento, num texto em que Marecos se baseou (Marecos, 2018). A crença relativa a maiombolas é generalizada em Angola hoje, mas a lenda, ou mito, específico de Juca e Giolo só se registou no relato e no livro-poema. Nem Topa, nem eu próprio, nem mais ninguém que tenha lido encontrou versões diferentes. Em princípio, Sarmento, como disse, ouviu a estória de um narrador filho da terra, numa reprodução oral e, portanto, o registo saiu da oralidade. Possivelmente nesse tempo (meio do século XIX) a lenda circulava ainda naquelas paragens e, entretanto, se apagou. Mas a circulação dela a partir do registo não saiu, também, desse estreito circuito colonial. A presença e a lírica de Marecos foram reconhecidas pela imprensa local, mas esta narrativa não teve qualquer consequência na altura (o que não equivale a não ter significado para o conjunto da nossa literatura). O distanciamento com que foi poetizada e narrada, esse sim, encontra paralelo nos nossos poetas e narradores e, desde logo, no próprio Maia Ferreira. Qualquer deles, em provável articulação com um contexto menos favorável aos autores africanos, havia de sublinhar por escrito, até relativamente tarde (década de 1930), a sua diferença face aos ‘indígenas’.

O benefício trazido por Marecos dever-se-á mais aos contactos e à bibliografia que terá proporcionado ao pequeno escol intelectual da Luanda desse tempo, tanto mais que manteve participação ativa no meio teatral. A julgar por um texto de Vieira de Castro transcrito por Francisco Topa, uma das leituras que a presença de Marecos podia reforçar seria a de André Chénier (1762-1794), cuja influência sofrera e que já Maia Ferreira aproveitara nas Espontaneidades, poucos anos antes. Como se vê por este nosso levantamento, Chénier consta das nossas fontes, aparecendo num espólio de 1856 de Benguela, de um médico amigo de Maia Ferreira. Outro nome a reter será, logicamente, o de Soares de Passos (1826-1860), que em 1856 publicou as suas Poesias, mas cujo nome não consta das fontes consultadas por mim.

Finalmente, a publicação de A Aurora (junto com Alfredo de Sarmento - que lhe contou a estória de Juca - e Francisco Teixeira da Silva, dados os três como "fundadores" do periódico) terá contribuído, igualmente, para disseminar no meio algumas sugestões literárias. Esta informação tiro de um ofício que, em nome do governador-geral, Manuel Alves de Castro Francina ("Secretário Geral, interino" do governo) envia para os promotores do periódico. Eles haviam pedido que o mesmo fosse impresso nas oficinas do Boletim oficial e a resposta é sintomática das dificuldades atravessadas por essa oficina tipográfica. Aliás, alguns documentos anteriores e posteriores, no mesmo Arquivos de Angola publicados, evidenciam tais dificuldades. Isso reforça a minha suspeição de que o livro Espontaneidades da minha alma, de Maia Ferreira, tenha mesmo sido impresso (ou tenha acabado de imprimir-se) no começo de 1850 e não em 1849, por falhas no aprovisionamento da tipografia. Por isso o poeta pôde incluir no livro poemas datados já desse ano (1850). Em 14 de junho de 1856, pelo ofício n.º 447, o governador Coelho do Amaral pede para Lisboa dois prelos, pois estavam "bastante arruinados" os que a Imprensa possuía em Luanda. Ponto importante, refere-se que esses prelos venham de entre "aqueles de que a Imprensa Nacional de Lisboa não faz uso". Isso facilitaria, certamente, ou apressaria, a vinda dos prelos e é de pensar que os dois arruinados haviam sido escolhidos entre outros que não estavam em uso em Lisboa quando vieram. Quer dizer, os prelos que seguiam para a colónia já saíam de Lisboa velhos e não tinham uso na capital...

É um facto que, até hoje, não tivemos acesso ao periódico. É possível que tenham saído muito poucos números, dadas as dificuldades de impressão. Uma condição posta pelo governador, segundo o ofício de Francina, era que ele tivesse acesso antecipado às colaborações e as aprovasse (alegava-se que não era censura, mas para não ficar envolvido o nome do governo com textos polémicos). Isso atrasaria mais ainda a publicação. Se efetivamente saiu (como parece indicar o anúncio publicado no Boletim oficial de 7.6.1856 e referido por Francisco Topa), a impressão foi muito rápida, pois o ofício de Francina vem datado de 2 de maio do mesmo ano. Neste ponto, para avaliarmos o impacto possível e previsível de uma primeira publicação privada na colónia, precisamos de mais dados. 


O segundo caso, da introdução do romantismo de terceira geração no nosso meio, vem da biografia de João Cândido Furtado de Mendonça d'Antas. Por um dos seus poemas percebemos que era “Filho do Minho, solteiro, / Sui Juris, mas sem dinheiro / Por ser irmão de morgado...”; não é ele diretamente que o diz, mas um amigo (“S.N.”) que, com dois quintetos, inicia a composição de Furtado d'Antas que estamos a reler (AAVV, 1862 p. 182). Nasceu na Quinta da Preguiça, “solar de antiquíssimo vínculo pertencente a seus paes, e que fica situado a pequena distância de Viana do Castelo, na margem direita do rio Lima, o antigo Lethes” – assevera o Almanach na biografia que dele nos deu. Na verdade, os Furtado parecem ter o seu genarca num fidalgo do século XIII da Península Ibérica. Os Furtado de Mendonça, por sua vez, estiveram amplamente relacionados com a extensão de Portugal a Angola, Brasil e outras colónias, incluindo a Madeira e os Açores, ilha e arquipélago de onde saíram também Furtado de Mendonça para o Brasil e colónia de Sacramento. Muitos anos depois…

…pela notícia do Almanach citada, ficamos a saber igualmente que, “orphão de pae e mãe (o pai se chamava Amaro José da Silva Dantas, natural de Santa Marta, Viana do Castelo) cursou a Universidade de Coimbra, de 1849 a 1854, e, obtida a sua formatura em Direito, fixou residencia em Viana do Castelo, onde exerceu o cargo de administrador do concelho, e fundou, com um grupo de amigos, o jornal Aurora do Lima, o primeiro que se publicou, e ainda hoje se publica, n'aquella cidade. // Pouco depois encetou o Dr. Furtado d'Antas a sua carreira judicial pelo ultramar
[5], e por longos annos desempenhou em Luanda os cargos de Delegado do Procurador da Coroa e Fazenda, Auditor do exército, Juiz de Direito, e Juiz da Relação”. 

Pelo Boletim oficial 803 (1861.02.23), p. 2, vemos que foi nomeado, por concurso (ficou em primeiro lugar) e por proposta do Conselho Ultramarino de 18.12.1860, “delegado do procurador da coroa e fazenda da comarca de Luanda”. A nomeação real dada no “Paço”, data de 2.1.1861.  Pelo Boletim oficial 813 (1861.5.4), p. 9, sabemos que desembarcou em Luanda, a 27 de abril, vindo de Lisboa no Dª Antónia (vapor português), este “delegado do procurador régio com sua esposa”.

Ainda no mesmo ano, pelo Boletim oficial 839 (1861.11.2), p. 2, enquanto delegado do procurador da coroa e fazenda e claviculário (do cofre de órfãos “desta comarca”), devia comparecer à abertura do cofre, para verificação, neste mesmo dia. No ano seguinte, pelo Boletim oficial 876 (1862.7.19), p. 206, ficamos a saber que, depois da suspensão e partida para Lisboa do famigerado juiz Luís José Mendes Afonso, fora nomeado “juiz de direito substituto da comarca de Luanda”, a 30.4.1862, e agora (port. prov. 107, 16.7.1862) se ordena que tome posse do lugar, apresentando a “carta régia” dentro de, no máximo, 6 meses. Porém, como se confirma no Boletim oficial 878 (1862.8.2), na p. 220, por limitações legais, atendendo ao que lhe expôs o próprio Furtado d'Antas, passa Luís António de Figueiredo, juiz da 1ª vara, “a funcionar na relação de Luanda”, sendo substituído “pelo juiz substituto” João Cândido Furtado de Mendonça d’Antas (portaria prov. 120, 1.8.1862). As reviravoltas não ficaram por aí; nesse ano ainda, conforme o Boletim oficial 886 (1862.9.27), pp. 278-279, percebemos que, por ofício de 22.9.1862, comunicara oficialmente (ao juiz de Direito) que seguia para "Mossâmedes". Partiu, “com sua esposa”, como se pode ver na p. 279, no vapor D. Pedro, “para os portos do sul”, a 23.9.1862. Cerca de três meses depois, (Boletim oficial 897, de 13.12.1862, p. 361) vinha de Moçâmedes, com a esposa, no vapor português D. Estefânia. Desconheço o motivo da viagem. 

Saltando cerca de ano e meio, pelo Boletim Oficial de 4.2.1865 (pp. 28-29) ficamos a saber que ele se encontrava em Luanda em 17 de janeiro desse ano e a 4 de fevereiro assinava ainda uns Autos, segundo o mesmo Boletim, de 11.2.1865. O Rei concedeu licença ao bacharel Furtado, com publicação no Boletim Oficial a 21.1.1865, quando era o Juiz de Direito da comarca de Luanda, para ir a Portugal tratar da saúde[6]. No entanto, em 26 de Junho de 1865, ainda (ou já?) assinava um despacho como juiz sindicante em Luanda. 

Mas não só. Embora nunca tenha lido nada sobre isso nos estudiosos anteriores, é bastante provável que o bacharel Furtado tenha tido um filho em Angola, pois o Boletim Oficial n.º 21, de 20.5.1865 (p. 92), dá notícia de que foi batizado, em maio de 1865 (o tal ano em que viajou para Portugal), um filho “do juiz de direito, o sr. Dr. João Cândido Furtado d’Antas”[7]. No mesmo Boletim, mas nos números do final do século XIX, aparece repetidamente um militar chamado Francisco Cândido Furtado d’Antas, residente em Angola, que foi chefe do Concelho da Barra do Dande e presidente da respetiva Comissão Municipal[8]. Seria o seu filho? Entretanto, cerca de duas gerações depois, em Luanda nasceu João Furtado d'Antas, que veio a ser presidente da direção da Liga Nacional Africana, com foto reproduzida no número de agosto de 1937 da revista Angola. 

Regressando a Portugal, João Cândido Furtado de Mendonça d'Antas foi Juiz em Portalegre, Santarém e Barcelos. “Em 1889 foi promovido à Relação dos Açores, e em seguida nomeado Presidente da mesma Relação, d'onde, em 1891, foi, a pedido seu, transferido para a Relação do Porto”, segundo a mesma nota biográfica do Almanach de lembranças

Cândido Furtado começou a colaborar no Almanach ainda antes da ida para Angola, situando-se no Porto. Para descortinarmos o meio literário que o formou convém recordar que também foi colaborador na gazeta A grinalda, recolha de “poesias inéditas” portuense onde chegou a colaborar Camilo Castelo Branco (Silva, 2008). Os poemas de Cândido Furtado em A grinalda nunca vieram de Angola: surgem depois do seu regresso a Portugal, ou foram colaborações enviadas antes da partida para Luanda, por exemplo «No álbum do meu amigo J. M. Nogueira Lima» (AAVV, 1862, pp. 44-46).

Cito essa colaboração porque os paratextos do poema são significativos. Em primeiro lugar, o título assinala e sublinha a amizade com o proprietário e redator da revista. Quando Cândido Furtado reedita o poema no
Almanach de lembranças, o título muda para «Na última folha de um álbum: sentença» (Furtado, 1864 p. 283). Por um lado, a mudança explica melhor o conteúdo; por outro, elide o nome do dedicado, que talvez em Angola não fosse muito conhecido. Parecem-me ainda importantes a localização e a data: “Porto, 24 de Março de 1859.” Ou seja: cerca de dois anos antes da partida para Luanda e na cidade onde se publicava a revista, na qual residia o seu proprietário, portanto sugerindo essa relação de amizade e convívio que esse tipo de paratexto parece servir. É significativa, também, uma nota (que também desaparece na republicação no Almanach) indicativa de que a passagem “atendendo ao depoimento / que se encontra a folhas dez” se refere a um poema do mesmo álbum (chamado «O túmulo do Imperador» e subscrito por Guilhermino Augusto de Barros [9]). Isso reforça a ficção enunciativa, por sua vez indicativa da intimidade com o dono do álbum e da publicação.

Segundo João Gaspar Simões, nessas antologias se acentuou a sátira à “poesia lamecha e sentimentalona”, compondo-se com “um acento menos piegas” do que na lírica ultrarromântica anterior. Ou seja: o periódico se inscrevia na mesma linha epigonal e renovadora de O bardo, no qual Ernesto Marecos havia colaborado. A grinalda incluiu poetas como Francisco Joaquim Bingre (1763-1856), que vinha do Neoclassicismo para o Romantismo, e Guerra Junqueiro (que foi do Ultrarromantismo para o Realismo), João de Deus, Guilherme e Alexandre Braga – nomes que na altura prenunciavam já a mudança de paradigma para o Realismo, se não mesmo o Parnasianismo formal. Os próprios ultrarromânticos que dela participaram, os que o foram por inteiro, manifestavam aquela distância que veio caraterizar a lírica e a sátira de Novaes, bem como os poemas de Eduardo Neves entre nós. Tal facto conecta-se com a familiaridade entre a ironia intitulada «Um martyr» (de Cândido Furtado) e outras de Francisco Xavier de Novaes. O traço epigonal que ele também representa resume-se no título à sombra do qual Furtado d'Antas pensava reunir os seus versos: Pranto & risos, que Pedro Félix Machado irá transformar em Sorrisos e desalentos, ao mesmo tempo ultrapassando outro título romântico idêntico, Sorrisos e prantos, volume I (“poesias”) da Obra (“Poesias e Theatro”) de L. C. Furtado Coelho (Coelho, 1855). Esta, por sua vez, ainda que frágil esteticamente, é sintomática a vários títulos, incluindo o período de produção (1847-1855), semelhanças com Maia Ferreira, a composição em poema da lenda popular O judeu errante (republicado em 1858 em O Guaíba (Póvoas, 2017 pp. 206-208)), as epígrafes românticas (Hugo, Lamartine, etc.) e, finalmente, pela família: é que Furtado Coelho, que partiu para o Brasil a seguir à publicação do livro (1856), pertencia à mesma família que Furtado d’Antas e se tornou famoso em terras do Império brasileiro (principalmente como ator e ligado ao Realismo), começando a destacar-se a sua atuação dramática no Rio Grande, cidade no extremo sul do Rio Grande do Sul, onde outros Furtados de Mendonça se haviam casado na primeira metade do século XVII (oriundos estes, provavelmente, dos Açores).

Ainda significativa das influências que dão o recorte do gosto literário de Cândido Furtado é a sua imitação d'«A Lua de Londres», que Furtado Coelho igualmente glosara sob o título «A lua de Portugal» em 1847 (Coelho, 1855 pp. 100-113), data que pode ter sido recuada para se antecipar à de João de Lemos, pois o poema mais antigo do livro data de 1848 – com epígrafe de V. Hugo, explora uma estrutura muito glosada, popularizada pelo mesmo Hugo e a que me referi a propósito de Maia Ferreira – e do ano seguinte há só dois poemas; tendo nascido em 1831, não parece provável que Furtado Coelho, um poeta com muitas fragilidades, aos dezassete anos escrevesse um poema longo e estruturado, quando os outros de 1848 são pouco mais do que frágeis imitações. Talvez ele tivesse tido só a ideia e um leve borrão do que veio a ser o poema e lhe colocasse essa data providencial. Sabemos da influência tutelar de «A lua de Londres», poema saudosista e patriótico do já conhecido João de Lemos. Segundo Fidelino de Figueiredo, o talassa ultrarromântico “foi repetidas vezes imitado, sobretudo na sua muito conhecida poesia, Lua de Londres”. A escola realista, que achincalhou a ‘pieguice’ da sua lírica, tentaria jogar a lua na lama, mas a verdade é que ela continuou sendo cantada nas ruas e declamada nos salões.

Outra influência decisiva, para a literatura dos angolenses, e que se terá reforçado em Luanda com a presença do juiz Furtado, foi a de Victor Hugo, citado e aludido num dos poemas que de Angola enviava João Cândido para o Almanach. Cândido Furtado traduz ainda o poema «Desejo» e faz uma versão própria de «Religião», do poeta francês. Mas o que traz Cândido Furtado de Hugo é o pior possível e, depois de bastante enfraquecido, marcou, infelizmente, a nossa poesia: é o sabor a antigo de algumas palavras e dos quadros, o forçado de alguns sentimentos, o prosaísmo frouxo a enfraquecer o verso mecânico, a expressão sem surpresa nem vigor, a previsibilidade, o politicamente correto e não aplicado à vida prática, tudo misturado com uma humildade falsa, uma auto comiseração injustificável e um amor gorduroso por si próprio. Sobre isso, porém, já falei atrás.

Maia Ferreira aproveitou bem melhor o manancial do poeta francês, a meu ver. Mas não se resume a uma referência comum a relação literária entre as Espontaneidades e os poemas de Cândido Furtado. A possível intertextualização com Maia Ferreira merece que a investiguemos com alguma minúcia.

Podemos dizer que há duas fases na lírica de Furtado d'Antas, em relação às influências que nela se notam. Uma reporta-se à sua permanência em Portugal; outra, à sua permanência em Angola. Porque os anos em que residiu na colónia hão de lhe ter servido para ler José da Silva Maia Ferreira, visto que as palavras utilizadas por si para adjetivar África nos recordam as do vate luandense. É o caso da “plaga adusta”, da “África adusta”, da “serra adusta” ou dos “adustos serros africanos”, ou da “Africa adusta” de que Maia Ferreira se diz o “miserando vate”[10], numa humildade garrettiana que ambos partilhariam. Note-se que o adjetivo repetido, além de comum na época, apenas descreve uma parte ínfima de Angola, à volta de Luanda ou Benguela, ou Namibe, pois a maioria do país não é propriamente ressequida, está cheia de savanas e, em alguns casos, de florestas, como também de rios. No poema «O sol d'África», de Cândido Furtado, é idêntica também a ideia do sol ardente (“da África o sol ardente, / Que sobre a areia fervente / Vem-me a mente acalentar”), ou do “rigor do meu sol na terra a queimar” (Maia Ferreira). Outro tópico, de certo modo oposto, é o da riqueza do território, o “Rico, immenso continente”, espécie de homenagem à “rica terra d'Africa” de que fala Maia Ferreira nas Espontaneidades. Para além de ambos registarem os lugares-comuns que então circulavam sobre África (e até nos dois lados do Atlântico (Soneto, 1840)), fazem-no socorrendo-se de palavras e expressões iguais ou idênticas.

É sintomática, da consciência que o lírico d'A grinalda mantinha da atividade literária angolense, a passagem de um poema que nessa recolha saiu, em 1869, chamado «Beneficência», e onde o autor afirma, logo no primeiro quarteto da segunda parte: “e vós, filhos d'Angola, a illustre e culta, / Que cêdo a Cruz tomara por fanal”. Tal adjetivação (“ilustre e culta”) vem ao arrepio do que era lugar comum dizerem alguns dos polemistas locais, que a terra não tinha cultura, nem sequer ilustração, escolas em condições, ou livros. Infelizmente, na segunda publicação do poema, no Almanach de lembranças e já em 1880, desaparecem os quartetos entre os quais sobressaía esta referência... e o choradinho continuou quase até hoje. Como este livro vos mostra havia cultura, sim, bibliografia atualizada e circulavam as ideias que atravessavam o ‘primeiro mundo’. Além disso, chamar inculta a uma terra e queixar-se de falta de livros é justamente ignorar aquelas culturas que Joaquim Dias Cordeiro da Mata quis trazer para esfera da escrita.

A estadia, na colónia, de João Cândido Furtado de Mendonça D'Antas terá, portanto, reforçado ao mesmo tempo a influência de Hugo, do ultrarromantismo português e a de Maia Ferreira, na medida em que há tópicos importados deste para aquele, ou pelo menos coincidentes. Precisamos agora balizar essa presença com precisão, para vermos que ela pode ter sido significativa para a geração de 1878.

Ele esteve em Luanda entre os anos de 1861 e 1868, quando, em Julho, regressou a Portugal (definitivamente), conforme afirma num poema escrito a bordo. Ou seja, voltou para a pátria sua dez anos antes da emergência da geração, pelo que as leituras que ele pudesse proporcionar estavam disponíveis para os adolescentes de então nas casas por ele frequentadas.

É de Luanda, onde ocupou diferentes cargos, alguns deles por vaidade ou prestígio, que envia diversa colaboração lírica para o Almanach de lembranças, entre a qual um poema («No álbum de uma africana») que constitui o primeiro remetido de Angola e que foi determinante para a evolução da lírica novecentista aclimatada. Trata-se de uma composição que louva as virtudes da mulher de 'sangue negro', pelo que serviu de exemplo aos filhos do país, que se debatiam entre os paradigmas estéticos e femininos europeus e a realidade concreta e grácil das senhoras africanas, poetas que certamente encontravam dificuldades em abrir um caminho novo que permitisse louvá-las em igualdade de circunstâncias com as tágides de Camões. Mas desse poema falei já variamente. Importa recordar a sua ligação ao classicismo latino (feita pela epígrafe, aliás um verso belíssimo) e português (pela decisão de cantar a uma ‘bárbara’ – ainda que não escrava), bem como a sua articulação com outros poemas mais ou menos da mesma época, mas posteriores ao seu, que também cantaram as virtudes da mulher não europeia, com particular destaque para a negra, a Ourika de Cândido Furtado.

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