Tempos menos antigos


Para um imperador menos antigo do que Alexandre e uma época mais imaginada pelos românticos, temos a história de Carlos Magno, tansacionada pelo menos em 1837, 1840 e 1842, por vezes sem qualquer menção para além do título resumido. Creio tratar-se da História do Imperador Carlos Magno e dos doze pares de França, que circulou no espaço lusófono no fim do século XVIII, mas também muito no começo do século XIX e até mais tarde, chegando a passar à oralidade novamente. A edição mais próxima da data do anúncio, de entre as que constam na Porbase (o único catálogo onde encontrei referências à obra), é de 1799-1800. Pelo seu interesse literário (não é, realmente, uma história, no sentido em que delas aqui falamos), abordei mais atrás esta obra.

Passando à crónica de nações recentes, destaca-se a de França, penso que pelas paixões políticas que excitava, pese embora tais histórias se dediquem a séculos passados. O interesse generalizado, quer de estudantes e professores, quer de outros, fazia aparecer os abrégés. Na bibliografia surge um Abrégé de l’histoire de France. Com esse título e sem indicação de autor, os ficheiros da Biblioteca Nacional de Paris indicam um primeiro exemplar, um outro sem indicação de local, nem data, nem autor e, ainda, um terceiro impresso em 1860. Com esse título inicial circulava uma obra do bispo Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), de que se encontram, na Biblioteca Nacional de Paris e na Biblioteca Nacional de Lisboa, exemplares da edição de Paris, da responsabilidade da casa Desaint & Saillant, de 1747 (43 anos depois da morte do autor, que faleceu quatro anos antes de Manoel Correa de Azevedo, o jesuíta angolano autor da Idea Consiliarii). Não se indica, no índice consultado (não foi possível ver a obra, só depois em rede), o número de volumes, que nos permitiria verificar se era ou não a edição que está na Biblioteca Nacional de Paris e na Biblioteca Nacional de Lisboa (e que tem 4 volumes).

As Obras de Bossuet constavam já da biblioteca de Manuel Patrício Correia de Castro (Pacheco, 2000 p. 29). Na lista de livros enviados que foi, em 1852, do depósito das livrarias para Angola, a pedido das autoridades eclesiásticas, faz-se menção (vaga) a um título de Bossuet, “os dicursos sobre a história universal” – que não sei que espécie de relação teriam com este abrégé, parece-me que nenhuma. Os ditos Discursos foram publicados em “L.as”, em 1772, num monovolume, sendo a edição original de 1681. A Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra tem uma edição de 1790, impressa em Coimbra, em português e há uma outra (cujo manuscrito se encontra na Torre do Tombo) com imprimatur de 23.12.1828. No Rio de Janeiro se imprimiu também uma edição no século XIX, mas não sei o ano certo. Houve muitas, em várias línguas e em várias bibliotecas europeias, incluindo na do Rei de Portugal. Não se sabe qual edição mas, segundo Carlos Pacheco, o título Discurso sobre a História Universal, de Bossuet, constava da biblioteca de uma das maiores fortunas de Angola do século XIX, o ‘mulato do Bungo’, Bernardino da Silva Guimarães, envolvido no tráfico de escravos e que chegou, segundo parece, a Cavaleiro da Ordem de Cristo, “com salva”. O título completo do livro, publicado inicialmente em 1681 (mesma data da História geral das guerras angolanas, de Cadornega), era: Discurso sobre a história universal para explicar a continuação da religião. De facto, não é uma história, mas um longo discurso apologético feito a partir da Bíblia.

Com nome inicialmente igual ao Abrégé, mas mais extenso, publicou-se em França o Abrégé de l'histoire de France détaché textuellement des études historiques. O autor é já nosso conhecido, Chateaubriand. O livro constava dos índices do Arquivo Histórico Nacional, mas não me foi dado consultá-lo. A Biblioteca Nacional de Lisboa possui exemplar do Abrégé publicado em 1836. Trata-se, como se diria hoje, de um monovolume... Nas estantes da Biblioteca do Governo Provincial de Luanda figurava uma Histoire de France, também de Chateaubriand (Chateaubriand, 1857).

Dois anos antes saíra um Abrégé de l’Histoire de France (com título igualmente mais extenso), tendo como autor Millot (Claude-François-Xavier Millot, 1726-1785) e como editor científico Claude-Charles Chelle (1807-1848). Desse título há exemplar na Biblioteca Nacional de Paris (Millot, 1834). O Abrégé, provavelmente saído dos Éléments de l ́Histoire de France, depuis Clovis jusquá Louis XV, servia o Cours d'études à l'usage des élèves de l'ancienne Ecole royale militaire.

Quanto aos anúncios, em um dos casos não se indica o nome do autor, e são muitos os candidatos; não havendo qualquer outra referência para além do título, não há condições para descobri-lo. Mas em outros casos as indicações são mais precisas. É o que se passa com Mignet.

François Auguste Marie Alexis Mignet (1796-1884) foi um historiador francês e da história de França. Conhecido e reconhecido institucional e publicamente, o mercado livreiro do Recife assinala, também, a sua presença. Das várias obras que escreveu, a que chegou até lá foi a Histoire de la révolution française: depuis 1789 jusq’en 1814 (Mignet, 1824). Ela terá ainda impressionado Joaquim Nabuco… em 1866 (Nabuco, sd p. 3) e teve uma edição paulista no final do século, ilustrada (Mignet, 1899). As paixões e a curiosidade suscitadas pela Revolução sustentavam este interesse, aliás globalizado, pois da obra se fizeram traduções para alemão, espanhol, inglês, italiano e português (ou seja: todas as línguas pesquisadas). Em francês há uma edição, a sexta, referenciada na Biblioteca Nacional de Lisboa, em dois volumes como a de um dos anúncios. Mas em Paris, pela mesma editora e também com dois volumes, saiu ainda uma edição em 1836. Uma vez que essa foi dada como a sexta, talvez se trate da reimpressão da de 1835. Pela data, era provavelmente a edição que se vendia e se comprava nos anúncios. Há uma posterior, dada como a décima primeira (em 1838), que vem aumentada com a história da Restauração até Luís Filipe I, mas o anúncio em causa não refere tal acrescento e, normalmente, para destacar e impressionar, os anunciantes referiam isso. Há uma tradução portuguesa da mesma data, em 3 volumes como em outro dos anúncios, que foi feita por A. V. de C. E. e Sousa (de quem se vendia um volume de poesias em 1845). O anúncio é também de 1845 e não refere o autor da tradução, pelo que ficamos sem saber, ao certo, qual será a tradução.

Mignet tinha trabalhos ainda sobre o século XVI e sobre a história de Espanha. Era um moderado, que deplorava a época do Terror, mas considerava que a Revolução era a necessária consequência do ambiente social e económico anterior. Editou, com o seu amigo Thiers, o diário liberal National e ajudou a derrubar Carlos X na Revolução de 1830. Foi redator do Constitutionnel, do Courrier français, da famosa Revue des deux mondes[1] e do Journal des savants. Foi eleito para a Academia (em 1836) contra Victor Hugo e outros candidatos e apoiou depois Hugo contra Gaultier. A sua presença reforçava, portanto, no terreno, as hostes liberais e moderadas. Entretanto, em Angola não vi sinais dela nas fontes investigadas.


Marie Joseph Louis-Adolphe Thiers (1797-1877), o companheiro e amigo de Mignet, frequentava ainda mais que ele o mercado livreiro do Recife através de uma obra homónima, que me parece ter sido na época mais popular e mais traduzida – pelo menos a julgar pelos ficheiros das bibliotecas consultadas (encontro traduções em inglês e italiano). Em 1839, a Revista nacional e estrangeira, no seu primeiro número, elogia-o da seguinte forma (Revista nacional e estrangeira, 1839 p. 64):
Pelas últimas notícias, que recebemos da Europa, Mr. Thiers ocupa-se muito em escrever a História de Florença […]. Oxalá se assemelhe ela à História da revolução Francesa, que terá a França mais um monumento de glória moderno!
Joaquim Nabuco também o refere no que diz que foi para ele “o ano da revolução francesa” (1866).

As altas funções desempenhadas por Tiers (aparece também assim, sem o [h], mas o sobrenome é Thiers, como aparece em certos anúncios e em dois espólios de Benguela), mais que a sua vida como advogado ou jornalista, terão facilitado a divulgação das obras respetivas: foi Presidente do Conselho, Ministro das Obras Públicas, do Interior, do Comércio e ainda emissário aos países europeus após a derrota da França. A repressão das revoltas populares, enquanto ministro do Interior, satisfez os moderados e criou-lhe antagonismos à esquerda. Votou contra Victor Hugo por ser antirromântico e este aspeto é interessante, visto que reforça a ala de antirromânticos presente na bibliografia que investiguei. Quer dizer que o Romantismo, nestes circuitos comerciais e culturais, espalhou-se ao mesmo tempo que vários anticorpos seus, quer oriundos das gerações anteriores, quer contemporâneos. Talvez isso nos ajude a compreender (junto com outros factos, por exemplo o magistério de Castilho e a formação neoclássica de Garrett e de Herculano) um romantismo moderado, quase envergonhado, que em Angola sobretudo não passou disso e no Brasil só rompeu com as ditaduras da razão em casos excecionais – como de resto em Portugal, onde foi talvez mais moderado ainda. Dado curioso neste contexto, Zola admirava Thiers politicamente (considerava menos o historiador).

Thiers votou ainda (na Academia) a favor de Guizot, adversário político e intelectual cujas “torpezas” ministeriais denunciou (Mendonça, 1855 p. 218). Guizot traduziu, como vimos atrás, a obra de Gibbon. Votou com Mignet (que à sua sombra foi eleito) contra a entrada de Gautier na Academia, favorecendo então Victor Hugo (e dado o seu antirromantismo, seria de pensar que votasse a favor de Gautier).

A Histoire de la révolution française tinha 10 volumes e foi saindo entre 1823 e 1827. Nos anúncios faz-se menção a quatro volumes, seis volumes e até um volume. Logo em 1828-1829 saiu nova edição, daí seguindo-se, até 1856 (última menção à obra nas fontes consultadas), as de 1832, 1834 (todas em dez volumes), 1836 e 1837 (em cinco volumes), 1838 (novamente em dez volumes), 1839 (com quatro volumes e um Atlas), 1841, 1842, 1845 (dez volumes, novamente), 1846 (oito volumes), 1850 (sem indicação de volumes), 1851, 1853 (quatro volumes outra vez), 1854 (em dez volumes). A edição de quatro volumes, anunciada em 1842, deve ter sido a de 1839, em que (como nas outras) se junta uma Histoire de la révolution de 1355 [...], creio que de Félix Bodin (1795-1837) e que foi traduzida para inglês também. A de seis volumes, anunciada em 1840 sem menção de autor, pode ser uma das edições de Bruxelas, que tinham seis volumes e saíram em 1834 e 1838. Estas edições é que tinham só por título Histoire de la révolution française. A obra foi traduzida em português, saindo também em seis volumes, mas em data posterior a 1840 (1841-1843). A menção a um volume só refere-se, provavelmente, a um dos dez, oito, seis, cinco ou quatro que circulavam. Ela aparece no já referido inventário orfanológico de 1855, de um comerciante rico de Benguela (de origem portuguesa) e o inventariante só deve ter encontrado um volume ou, por lapso, em vez de “10” colocou o “1”. Outra hipótese é tratar-se do resumo intitulado História completa da revolução franceza desde 1780 até 1815. Precedida de um resumo da história de França desde o princípio da monharchia: resumida da obra de Thiers / por um brasileiro e que se encontra em mau estado na Biblioteca Nacional de Lisboa. O volume saiu no Rio de Janeiro, pela Laemmert, em 1848. Sendo esse o caso, reforça-se uma das hipóteses em que me baseei para este estudo, a saber, a de que o mercado brasileiro, mesmo no que diz respeito a edições brasileiras, mantinha uma presença ativa nas bibliotecas angolenses do século XIX.

De “Thiers” ainda, lançava-se, por anúncio (tamanho grande), no Jornal do comércio, uma subscrição para a edição brasileira da Histoire du Consulat et de l’Empire. Esta obra trazia a continuidade à História da Revolução Francesa, mas ainda não tive notícia local de que circulasse por Angola.


Por Norvins, ou sem menção de autor (podendo ser, em alguns casos, a História de Napoleão Bonaparte, de Caetano Lopes de Moura), aparece várias vezes a História de Napoleão. Jacques Marquet de Montbreton, Barão de Norvins, viveu entre 1769 e 1864, tendo nascido e morrido em Paris. Foi diplomata e soldado, para além de chefe da polícia no governo napoleónico de Roma, entre 1810 e 1814. Foi um apologista de Napoleão durante a Restauração. A procura da sua História, mais requisitada do que qualquer outra para o mesmo assunto, pode portanto significar a simpatia que suscitava a figura de Napoleão naqueles meios (identifiquei três referências em Benguela e seis no Recife). Como se sabe, a figura do imperador dos franceses tornou-se motivo poético frequentado por ultrarromânticos brasileiros e também angolenses, ou residentes portugueses. Entre nós Alberto Marques Pereira (português, militar, que viveu vários anos em Angola) resume secamente a biografia napoleónica, deixando no ar a lição de moral habitual: tão alto subiu e, porém, de tão alto caiu.

A obra citada foi a primeira biografia séria de Napoleão, mas o interesse do autor e da obra não se reduzem a isso. Norvins escreveu um poema filosófico em verso, tratando da unidade divina e da imortalidade da alma. Não li a obra, portanto não sei como tal tratamento se ligava à simpatia por Napoleão. Norvins assinou vários títulos dedicados a esta época e à História de França. Há uma edição parisiense da sua História, que podia ter sido a que se comercializava no Recife. Saiu em dois volumes, entre 1837 e 1839 (Furne & C.ie), havendo, em 1837 e em 1839, uma edição que seria a sétima (em quatro volumes, ao que parece, como a primeira) e outra que seria a décima primeira (em dois volumes esta), feita sobre a segunda, que foi revista, corrigida e aumentada. Havia uma edição mais antiga, de 1827-1828. Em 1829 tinha já saído uma terceira, também revista, corrigida e aumentada pelo autor, que é outra hipótese possível para os anúncios. Há uma tradução portuguesa, de 1841-1842 (que só serviria para os anúncios de 1845 e para os espólios de Benguela) e há traduções para espanhol (em 1834; em 1835 saíram uma em Valência e outra em Barcelona) e para italiano. A referência benguelense de 1873, que é a uma edição em quatro volumes como as outras que vi no mesmo local, pode ser a de 1868, se for em francês, ou a portuguesa a que já fiz referência e que certamente é a que aparece nos inventários de 1855 e 1856 em Benguela, nos dois maiores espólios bibliográficos da época, de um comerciante o primeiro e de um médico o segundo. 


A “História Secreta do Gabinete de Napoleão”, pedida em 1840, embora não indique nome de autor, deve ser a homónima de Lewis Goldsmith, político, agitador e sátiro inglês, educado em Inglaterra (1763-1846). Apoiante inicial da revolução francesa, os seus escritos políticos foram mal recebidos na Grã-Bretanha, motivo que o levou a seguir para Paris em 1803. Aí trabalhou como jornalista revolucionário (e anti-inglês), depois fez várias missões (algumas secretas) para Napoleão. Em 1809 foi transportado para Inglaterra, foi julgado por traição mas libertado e, em 1811, começou a redigir o jornal Anti-gallican Monitor, feito para denunciar a revolução, Napoleão Bonaparte e defender a subida de Luís XVIII ao trono. Quando o Rei foi reposto, ofereceu-lhe pensão vitalícia e Goldsmith regressou para França, onde veio a morrer.

A obra popular dele, anunciada no Recife em 1840, é da fase do Anti-gallican. Dá-nos, portanto, uma visão crítica do protagonista, particularmente no que diz respeito aos anos de guerra. O autor devia estar bem informado sobre muitos assuntos, pois ainda foi, para além do que já disse, notário e intérprete nas Cortes de Justiça e no Conselho dos Presos. Este é, portanto, mais um livro que reforça uma visão crítica da revolução francesa e do império napoleónico.

Para a época há também referência à história do “gabinete preto” de Napoleão, que julgo ser o mesmo título do “gabinete secreto”, pois há uma diferença de mês e meio de um para outro anúncio e depois não vi mais nenhuma, nem encontrei o título “História do gabinete preto de Napoleão”.

A história do gabinete de Napoleão teve tradução para a língua portuguesa em 1810 (Goldsmith, 1810). A obra, em dois volumes, incluía encadernações da época, inteiras, de pele com finos ferros a ouro ao estilo francês. Inocêncio (Silva, 1867 pp. I, 380; IV, 107) menciona a existência de várias edições desta obra e dá-nos informações interessantes. As citações que farei serão longas, mas as faço para dar ideia das ambivalências e, até, hesitações das estruturas de poder em face da obra em Portugal (e, por extensão, no começo, também no Brasil). Parece ter havido algum desentendimento (ou, pelo menos, uma diferença) entre a censura do Desembargo do Paço e o próprio Rei, que reage a ela criticando-a e reorientando-a.

Veja-se a primeira entrada, ainda meramente bibliográfica:
292) Historia secreta da corte e gabinete de S. Cloud etc. Traduzida em portuguez. Londres, 1810? 8.º gr. - Sahiu sem o seu norne, e é differente de outra versão que d’esta mesma obra de Goldsmith fez, e imprimiu em Lisboa, Joaquim José Pedro Lopes.
Depois a entrada, na qual é transcrita a ordem e orientação feita em nome do rei em 1811. Na argumentação dos censores da censura, ou da Mesa do Desembargo do Paço, se expõe todo o pensamento que dominava a corte relativamente a revoluções, monarquias europeias e, mesmo, críticas a revoluções. A orientação geral era de censura absoluta, como se verá, depois de se ler a nota de Inocêncio ao documento copiado: 
502) Historia secreta do gabinete de Napoleão Bonaparte, por Lewis Goldsmith, traduzida em portuguez por *** Londres, impressa por H. Bryer 1811. 8.º gr. Ha outras versões desta obra em portuguez. A publicação d'esta obra deu logar a um aviso notavel, mandado expedir pela Regencia do reino á Meza do Desembargo do Paço, em consequencia das ordens que a mesma Regencia recebêra da côrte do Rio de Janeiro. O conhecimento d'esta peça inedita não será desagradavel aos que pretenderem havel o do modo como em Portugal se regulava, e exercia n'aquelles tempos a censura dos livros. Transcrevel o hei pois, á vista de uma copia que possue o sr. A. J. Moreira, de letra do nosso mui conhecido bibliographo José da Silva Costa. 
Essa a nota explicativa e contextualizadora. Agora, a transcrição do documento:
«Ill.mo e ex.mo sr. – Tendo apparecido na corte do Rio de Janeiro alguns exemplares de duas obras publicadas n'esta capital, na Imprensa Regia, com licença da Meza do Desembargo do Paço; a primeira, uma traducção da obra, que se publicou sobre o gabinete secreto de S. Cloud em que se lê a carta 27, excessivamente injuriosa ao caracter de sua magestade a Rainha de Hespanha, e que apregoa todas as calumnias que se publicaram contra a mesma augusta e infeliz senhora; a segunda, um pamphlet, ou brochura, em que se expõem com as mais brilhantes côres a belleza da constituição ingleza, e que quasi se propõe á adopção dos povos, como se fosse possivel largar o governo, que cada nação tem, e abraçar outro sem os maiores inconvenientes: e sendo muito perigoso em momentos tão calamitosos expôr aos olhos das nações quadros verdadeiros, mas de que nenhuma applicação util se póde deduzir: manda o Principe Regente nosso senhor immediatamente declarar á Meza do Desembargo do Paço quanto lhe foi desagradavel, que ella desse licença para se Imprimirem as mencionadas obras; e ordena, que d'aqui em diante não só estabeleça maior vigilancia sobre esta materia, escolhendo para censores homens de luzes, e que tenham vistas de uma sã e illuminada politica, mas que deve ficar na intelligencia, que não deve permittir: 1.°, a publicação de obras, ou originaes ou traduzidas, em que se insulte a memoria ou represensação de soberanos em geral, e muito particularmente dos que são, ou parentes, ou alliados da sua real familia; 2.º, em que se ataque directa ou indirectamente a religião do estado, ou ainda as outras seitas do christianismo estabelecidas nos grandes estados da Europa; 3.º, em que se tracte de constituições politicas dos estados da Europa, ou formas dos governos, e nas quaes haja analyses e discussões em tal materia, de maneira que possa vir a occupar os animos dos povos, que incapazes de discorrer sobre taes objectos com a devida reflexão, dão facilmente em desvarios, que fazem depois a sua infelicidade por longos annos; 4.º, que se deve promover a publicação das obras em que se tracte do adiantamento das sciencias das artes e industria em geral, de bons principios de administração, de melhoramentos e reformas uteis, muito interessantes, susceptiveis de fazerem as nações os maiores bens, que jámais lhes pódem fazer mal algum; antes no momento actual, pelo enthusiasmo que pódem produzir, divertem o povo de idéas, das quaes seguramente jámais lhe ha de vir bem algum, e que finalmente, é debaixo d'estes principios que a Meza deve estabelecer a censura dos livros, tendo tambem em vista o evitar, que por via da imprensa se publiquem factos calumniosos contra os individuos, de que pódem resultar graves inconvenientes; sendo escusado lembrar, que o mesmo senhor tem prohibido, que sobre as côrtes de Hespanha se publique cousa alguma a favor ou contra: e que sobre estas materias nada deve publicar se nas imprensas d'este reino, pois que S. A. R. está convencido, que de taes publicações pódem resultar grandes males, e nenhum bem ao povo portuguez. O que tudo v. ex.a fará presente na Meza do Desembargo do Paço, para que assim o fique entendendo e execute, e faça executar com a mais escrupulosa exacção. Deus guarde a v. ex.ª Palacio do Governo, em 5 de Outubro de 1811. = Alexandre José Ferreira Castello. = Sr. Francisco da Cunha e Menezes.»
Quanto ao tradutor, informa Inocêncio ainda que
JOAQUIM JOSÉ PEDRO LOPES, Oficial da Secretaria d'Estado dos Negócios Estrangeiros, nomeado ainda em 1823, ou no ano imediato; Deputado da Junta dos juros dos Reais Empréstimos; Correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa, etc. Presumo que nasceu em Lisboa pelos anos de 1778, pouco mais ou menos… M. a 11 de Novembro de 1840, morando na rua dos Lagares, freguesia de N. S. dos Anjos. Consta que no seu tracto íntimo era ameno e familiar, e homem de severa probidade. As obras de J. J. P. Lopes, mais consideráveis pelo numero que pelo mérito, compõe-se na quase totalidade de periódicos e traduções. Imprimiu também avulsamente muitos versos, destinados a solenizar os acontecimentos públicos do seu tempo. A sua versificação é sempre correcta, e vê-se que ele não ignorava as regras e preceitos clássicos.
O que também pude ver nos ficheiros consultados no Recife foi uma história do famoso gabinete sob várias direções políticas, não apenas a de Napoleão. Essa história talvez fosse escrita pelo Conde d’Herrisson, que nasceu em 1840, data da publicação do anúncio, pelo que não consigo saber exatamente qual o título alvo dos anúncios. Há outras com títulos parecidos apenas em parte e que, por isso, me parece arriscado associar a este. A mais referida nos catálogos consultados é: Les Capucins, ou le secret du cabinet noir, histoire véritable  de Elisabeth Guénard (Guénard, 1808). A ficha bibliográfica é da British Library, onde encontrei menção, também, a uma edição de 1815. Recorde-se que em 1802 Napoleão se tornou consul vitalício e, em 1804, Imperador, por decisão do Senado.


Com o título História dos girondinos encontra-se num espólio de 1856 um exemplar, referente a uma edição em cinco volumes. O título homónimo conhecido na época é o de Lamartine (1847), que Joaquim Nabuco ainda confessa tê-lo impressionado por volta de 1871 (integrando-o no grupo dos “quatro Evangelhos da nossa geração” (Nabuco, sd p. 3). A obra, típica da historiografia romântica, foi “considerada como prenúncio da revolução de 1848” (Pinheiro, 1872[?] p. 210), por exemplo pelo biógrafo português do poeta, José Palmela. Há uma tradução para português, em cinco volumes, anunciada num Catálogo de obras que se vendiam na casa Laemmert, no Rio de Janeiro, e que se anexava à História de brasileiros célebres… No Catálogo, os 5 volumes custavam 28$000 réis. O preço e o facto de serem cinco volumes me levam a pensar que não se tratava, no caso do espólio benguelense, da trad. de Lisboa de 1851, existente no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. Inocêncio, o famoso bibliógrafo português, aponta-nos uma tradução de 1854, saída em Lisboa, feita por Francisco Duarte de Almeida e Araújo, porém num só volume também.

O autor manteve-se muito popular ao longo do século XIX. Poeta louvado, Salvato Trigo assinala-o como um dos mais influentes para José da Silva Maia Ferreira, que lhe chamava “Cisne da França”. No poema em que surge o epíteto a referência é, porém, o “canto épico, La Chute d’un Ange”, que mais tarde Camilo Castelo Branco chama para o seu título mais conhecido. Gerald Moser, no prefácio para que Salvato Trigo remete, indica Lamartine como um dos “melhores modelos” de Maia Ferreira.

A popularidade da obra ficaria, também, atestada nas páginas cartistas de O estandarte (Lisboa) onde, na secção de anúncios, é lançada a assinatura da sua tradução, vendida por “folhas”. O mesmo título virá depois a depreciar as Harmonias poéticas, aceitando ainda que mais inspiradas, mas mais fracas artisticamente e, sobretudo, apontando-lhe uma deriva ética e religiosa fatal até mesmo para a feição artística da obra (Variedades, 1848). Para além da referência à extrema popularidade de Lamartine na Europa, aponta-se a feliz aliança que ele faz entre erudição e estilo. A presença desta obra, se é mesmo a de Lamartine, vem reforçar a ideia da circulação do escritor em Angola, mais precisamente em Benguela, a meio do século – mas por via da história política, ou mesmo partidária. A qualidade e influência literária justificaram falar-se dele na rubrica própria.

Outra obra sua próxima desta no tempo foi a História da revolução francesa de 1848, de cujo primeiro volume sobreviviam dois exemplares (em francês) nas estantes do Governo Provincial de Luanda. Ela teve uma tradução de J. M. de Andrade Ferreira, muito elogiada na notícia que do seu primeiro “caderno” dá a Revista universal lisbonense. Recordemos que o autor foi membro do governo provisório, portanto essa História posssuía também o carisma do testemunho. Um anúncio publicado em O estandarte ([anúncios], 1849) lembra a subscrição de uma tradução da obra por Mariano José Cabral – jornalista e bibliotecário açoriano que, depois de passar muitos anos em Lisboa (onde realizou a tradução), seguiu para o Rio de Janeiro, prosseguindo a carreira de jornalista e assumindo-se “maçom, católico, apostólico” (Cabral, 1872). No anúncio afirma o tradutor não ter nada com outras traduções da mesma obra, que nunca leu. Quer isso dizer que, em Outubro de 1849, a História de Lamartine já tinha mais do que uma versão em português. Diz ainda Cabral que a sua foi a primeira anunciada pela imprensa. Realmente, no ano seguinte (Publicações, 1850) O estandarte anuncia a saída de mais uma “folha” (folha 2, vol. 2, 20rs) da História de Lamartine, esta na tradução de J. M. de Andrade Ferreira. Isso demonstra o interesse que o público português manifestava pelo tema e o apreço em que tinha o autor enquanto historiador e político.

Curiosamente, não há indicação segura de terem circulado por Angola as Meditações, que foram a sua obra mais divulgada. Sendo, no entanto, elas conhecidas por poetas nossos, assinala-se mais uma vez a diferença entre a realidade documentada nas nossas fontes e o que ela deve ter sido em casa e na memória dos nossos autores.


Atravessando o canal encontramos muitas histórias de Inglaterra e da reforma protestante lá, mais que as de França, junto à “História dos Puritanos da Escócia” que, sem que o anúncio o diga, foi título de um dos romances históricos de Walter Scott. Dele havia, pelo menos, uma edição “em português por Dr. Caetano Lopes de Moura” (Scott, 1837).

Uma das figuras que despertava interesse nos historiadores e leitores era a de Cromwell. Essa motivação estava representada em Angola pela Histoire de Cromwell, d’après les mémoires du temps et les receuils parlementaires, de que se preservaram na antiga Biblioteca da Câmara Municipal de Luanda os dois volumes. O autor era o nosso conhecido Abel François Villemain. Reforçando o que disse atrás, a propósito da profunda relação entre história e arte literária no século romântico também, Villemain era respeitado como literato e estudou sobretudo a Eloquência (o trabalho sobre Montesquieu, por exemplo, é brilhante na caraterização estilística do escritor). Ganhou, praticamente no início da sua carreira, o prémio da Academia com um ensaio sobre Montaigne, que ficou famoso. Foi professor de literatura francesa na Sorbonne (depois de assistente em História) a partir de 1816 e a influência que teve sobre o romantismo deve-se tanto à crítica histórica (debruçou-se sobre as mais diversas épocas da história europeia, incluindo a república romana) quanto aos estudos literários. A lecionação e os cargos políticos (Par de França em 1832; Ministro da Instrução Pública, tendo promovido uma reforma do ensino secundário) não o impediram de investigar o suficiente para publicar o Cours de littérature française (6 volumes, 1828-1846) e os Études de littérature ancienne et étrangère (1845), entre outros títulos, mostrando que resistia vigorosamente à especialização e ao estiolamento intelectual.

A História de Cromwell que nos legou ensinava, portanto, pelo estilo e não só pelo cuidado investigativo, sublinhado logo no subtítulo. Intelectual de transição para o Romantismo, um pouco mais velho que os seus companheiros, e sendo um liberal da Restauração (vê em Montesquieu, por exemplo, o paladino da felicidade pela justiça, consistindo esta no respeito pelos direitos individuais), a sua presença reforçava em Angola a ala dos românticos liberais e moderados, por assim dizer canónicos (Villemain foi um dos mais influentes académicos do seu tempo), apesar da firme crença no “instinto do génio”, que moderava pelo raciocínio justo e pelo bom senso. É de sublinhar ainda que, jornalista, ele apelou com Chateaubriand e outros à liberdade de imprensa, o que lhe trouxe custos e ganhos políticos na época e poderá ter chegado notícia disso a Angola, reforçando a imagem do liberal, que justamente criticava em Montesquieu a defesa do despotismo iluminado (essa crítica mostrava ainda a moderação que o define, pois também tentou explicar, como dívida à época, a fraqueza do grande escritor). O cónego liberal Manuel Patrício Correia de Castro terá lido pelo menos alguns discursos de Villemain, pois possuía na sua biblioteca os Elogios lidos nas sessões públicas da Academia Francesa, em 6 volumes (Pacheco, 2000 p. 29). Fossem outras as nossas condições e teríamos nele um Villemain angolense…


Pelo que vemos até aqui, os estudiosos da revolução francesa, de Cromwell e de épocas próximas dela eram de forma geral liberais, moderados e alguns deles foram, direta ou indiretamente, vítimas da revolução. A sua presença no corpus dá-nos um retrato pouco favorável a extremismos, que se conjuga muito bem ao que sabemos de José da Silva Maia Ferreira e ao que parece dominar o jornalismo angolano até pelo menos 1875. O ser pouco favorável a extremismos não significa ser situacionista. Há vários indícios de procura de obras que propunham mudanças políticas e sociais, incluindo obras antiesclavagistas e mesmo algumas com sérias acusações ao colonialismo. É o caso da presença, por exemplo num espólio benguelense de 1856, da obra de Bartolomé de Las Casas, sem indicação de título, que suponho ser a Brevísima relación de la destrucción de las Indias, cuja primeira edição, de 1552, está disponível em rede. Há uma edição (espanhola) de 1822, outra (de Filadélfia, mas em espanhol) de 1821, talvez fosse uma dessas a que circulou por ali. Do polémico e íntegro bispo registavam-se, também, as Oeuvres, precedidas de um estudo, constantes no espólio do estadista José Lino Coutinho em 1836 (Magalhães, et al., 2017 p. 242).

Há também menção a um folheto ou periódico, lamentavelmente sem qualquer citação na rede, que se chama Eco dos pretos e aparece num espólio de 1857. Talvez o título não fosse transcrito com rigor. Complementarmente, as duas maiores bibliotecas de Benguela na segunda metade do século XIX revelam pessoas interessadas em temáticas diversas e, no conjunto, sentido de equilíbrio entre opiniões diferentes também.

No último quartel do século a moderação continuará a ser dominante, embora defrontando-se já abertamente com posturas que pretendiam radicalizar o processo, especialmente no que diz respeito à independência e à república. O surgimento de um léxico ligado ao socialismo é outro sinal do fim do período moderado. Ainda assim, nesta época, esse aparecimento é muito reduzido face à bibliografia dominante. Além de moderada, a bibliografia ‘histórica’ e política que se possa relacionar com Angola é aquela que trata directamente de assuntos passados na então colónia, que foi escrita por pessoas directamente relacionadas com residentes e angolenses, o que revela um sentido muito objectivo, concreto, preciso: o de assegurar posições e não deixar de desmentir testumunhos falsos. Isso entroncava na nossa já longa tradição testemunhal.  


Sobre acontecimentos relativamente recentes há a História das origens dos governos representativos da Europa. O título aparece num espólio de 1856, de Benguela, registando-se dois volumes e sem indicação de autor – que me parece ser Guizot (Nimes, 4.10.1787 – Val-Richer, 12.10.1874). Aliás, de seu nome completo François Pierre Guillaume Guizot (Guizot, 1851). O livro reúne 51 palestras feitas em Paris, entre 1820 e 1822, estudando as antigas formas de governos representativos em França, Inglaterra e Espanha (séc.’s V a XI) e depois na Grã-Bretanha “desde a conquista até ao reinado dos Tudors”. Além de reforçar a preocupação com a democracia, a procura de fundamento para a (re)democratização da sociedade, a obra de Guizot ilustra a sua teoria da História, que fundamentava a formatação das Instituições políticas nas condições sociais do povo e nos modelos de propriedade existentes. Surge, concordantemente, a História moderna de Guizot, a primeira vítima da revolução de 1848 (o seu pai foi guilhotinado pela revolução francesa, fugindo a sua mãe com ele para Genebra). Nascido e criado numa família calvinista, o seu prestígio no Brasil terá levado a Revista nacional e estrangeira a traduzir o texto Da religião nas sociedades modernas (Guizot, 1840). É de recordar, igualmente, que ingressou no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, como sócio honorário, em 22 de fevereiro de 1840. O mesmo Intituto, recorde-se ainda, apoiara as Lições de História do Brazil de Luís de Queirós Mattoso Maia (irmão brasileiro de José da Silva Maia Ferreira), publicadas em 1880.

Em Luanda é provável que tenha circulado igualmente o Essai d’une philosophie de l’Histoire, de Barchou de Penhoën (Auguste Théodore Hilaire Barchou de Penhoën; Morlaix, Finistère, 28.4.1801 – Saint-Germain en Laye, Yvelines, 28.7.1855), “membro do Instituto” sem que se diga de qual, introdutor do idealismo germânico em França, político, militar e escritor que veio a ser personagem de Louis Lambert, de Balzac. Ele dá-nos uma história mais abrangente, que (no volume encontrado) vai dos romanos aos seus contemporâneos (parte a que chama de história do futuro), terminando por dissertar sobre «O homem e o universo». Mais abrangente no arco temporal, uma vez que se inicia com a própria criação do universo e dos homens, ela faz um percurso típico: a primeira parte é uma história bíblica (até ao dilúvio e à dispersão dos povos); a segunda é uma história dos “Persas ou Medas, que abrem a era histórica” (Penhoën, 1854 pp. I, 299); daí salta para a Grécia, onde o “génio do Oriente” (que viria do Egito, da Judeia e da Fenícia) se teria instalado, gerando-se ali uma sociedade em constante processo de crioulização, resultante de várias misturas culturais e, principalmente, essas – das quais iria diferenciar-se por um percurso próprio, que levaria o autor a marcar as diferenças culturais e cultuais entre Egito e Grécia (Penhoën, 1854 pp. I, 369-374); no segundo volume faz-se uma história da Europa. Ou seja: temos uma história que, onde não é eurocêntrica e da Europa, é bíblica ou, se tanto, do ‘Oriente’ mediterrânico. Ao longo de vários ‘livros’ ou capítulos – sobretudo no começo deles – encontramos reflexões filosóficas e teológicas estruturantes. Eis um exemplo (Penhoën, 1854 pp. I, 85):
Nous avons montré l'intelligence divine et l'intelligence humaine, identiques dans leur essence, se développant suivant des lois analogues, mais aussi sur des théâtres essentiellement différents.
Havia na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda o tomo II, saído em Paris em 1854, tal como o primeiro. Infelizmente nada, no exemplar, me permitiu refazer o mínimo que fosse do seu percurso pelo país. O autor escreveu também (entre outras obras) um relato pessoal e, simultaneamente, militar intitulado Souvenirs de l’éxpedition d’Afrique, mas a África da expedição é a mediterrânica ainda (Barchou-Penhoën, 1832). Não vi qualquer referência ao título nas nossas fontes.


Descendo para a Península, há muitas histórias de Portugal, incluindo algumas relativas a acontecimentos quase coetâneos, outras referentes a reis antigos, ou ainda à Inquisição. Duas delas constam do espólio de Benguela de 1855. A primeira é a História de Portugal, desde o reinado da Senhora D. Maria primeira, até a convenção d'Évora-Monte : com um resumo histórico dos acontecimentos mais notáveis que tem tido logar desde então até nossos dias (Lisboa: 1838). Tem particular interesse neste contexto. O seu autor é José Maria de Sousa Monteiro, nascido no Porto a 25.3.1810, que foi comerciante no Rio de Janeiro e que teve um filho homónimo na Praia (São Tiago, Cabo Verde – onde foi secretário do Governo-geral) em 20.8.1846, também escritor. Sousa Monteiro veio a morrer em Lisboa em 1881, maçom já convertido ao catolicismo trinta anos antes. A sua obra mais conhecida foi, talvez, o Dicionário geográphico das províncias e possessões portuguesas no Ultramar (Lisboa: 1850), título que o liga diretamente aos nossos meios. Ele colaborou no “jornal universal” A ilustração luso-brasileira (Lisboa: 1856-1859), tal como muito do romantismo lusitano e algum do brasileiro (por exemplo Casimiro de Abreu). Nessa publicação, o “editor da Illustração Luso-Brazileira” anuncia as obras que publicava e, logo no começo, menciona O panorama (onde, entre outros, Casimiro de Abreu também colaborara). Este periódico existia no mesmo espólio de 1855 (os números respeitantes aos anos 1837-1842) e Maia Ferreira o terá lido no Rio de Janeiro, onde era (como em Lisboa) um periódico de referência.


Atravessando o Atlântico lusófono há também, como seria de esperar, várias histórias do Brasil, testemunhando um campo recente na historiografia, e uma história da América, do seu descobrimento, guerra e conquista. Nesse âmbito figurava ainda outra obra, relativa aos portugueses no “novo mundo”, a par do “diário de navegação de Pedro Lopes de Souza ao Brasil em 1500”. A crónica local de sucessos mais ou menos recentes estava representada, no Recife, pelos anais do Rio Grande do Sul e pela “historia Ecclesiastica, e Bispado de Pernambuco” do “dr. Mariz”.

A América não era só o Brasil, claro. Há um título curioso na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, que é L’homme américain. Não dá, infelizmente, para ver a data, o local, o nome do autor, outros elementos que podiam ser preciosos para a história do exemplar, porque lhe foi tirada a capa, tal como a folha de rosto e outras mais. No final há desenhos e riscos, muito elementares, a lápis.

O livro é introduzido por uma carta do autor ao Barão Alexandre von Humboldt, que era o seu mecenas – mas também essa folha está meio rasgada. Quanto a conteúdos, o título remete para um âmbito genérico mas o livro parece incidir na América do Sul, portanto emparceira bem com as obras acerca do Brasil e com a expedição do prussiano.


África estava também representada. Angola estava representada pela “História do Congo : obra póstuma – documentos” – edição do Visconde de Paiva Manso (1831-1875), ou seja, Levy Maria Jordão (Jordão, 1877). A obra jazia nas estantes do Arquivo Histórico Nacional, mas não consegui vê-la, pelo que não conheço a história do exemplar. Ainda do mesmo autor figuravam, nessas estantes e a julgar pelos catálogos antigos, a Memória sobre Lourenço Marques (Delagoa Bay) e a História eclesiástica ultramarina, dedicada à “África septentrional: Bispados de Ceuta, Tanger, Safim, Marrocos”, pelo que se tratava do tomo I.

Possivelmente circulava entre nós algum título ‘africano’ de Cunha Matos, que também escreveu sobre o Brasil e nos deixou a história da colonização portuguesa em África, bem como a “chorographia historica” das Ilhas de S. Tomé e Príncipe, Fernando Pó e Ano Bom.

Um título relativo ao que era, então, História contemporânea, também se encontrava no Arquivo Histórico Nacional: Africa occidental. Noticias e considerações, de F. T. Valdez (Valdez, 1864). O autor residiu vários anos em Angola, tendo estado ligado à Comissão Mista Luso-Britânica e seus familiares próximos ali tinham ido parar como degredados políticos, uma história que já contei neste livro. O seu testemunho seria, sem dúvida, importante, embora sempre centrado no mais alto escalão da elite oficial.

O livro de Serpa Pinto, Como eu atravessei a África, em dois volumes, é mencionado pelos catálogos do Arquivo Histórico Nacional na edição inglesa (Pinto, 1881). Analisei e comentei largamente essa obra em estudo publicado em linha e com acesso aberto. Para lá remeto o leitor interessado.

O espólio do investigador José de Anchieta, em 1899, registava também o título Les peuples de l’Afrique, de Robert Hartmann, professor na Universidade de Berlim (Hartmann, 1880). O título foi publicado em 1880 mas não sei quando chegou a Angola. O exemplar era em francês e nele o autor defendia a unidade genética de todos os povos do continente, hipótese ultrapassada em poucos anos.

Madagáscar aparecia também no espólio de José de Anchieta, por via de Charles Buet (Buet, 1883).

A presença de uma historiografia sobre África era ainda atestada pelo relato do naufrágio de Briffon, mas num anúncio do Diário de Pernambuco, de 30.7.1840. O relato sobre o Naufrágio de Sepúlveda, de Jerónimo Corte-Real, em oitava rima com verso heroico, de 1594 mas reeditado em 1840 (aliás reeditado várias vezes, por exemplo em 1783), surgia também em dois anúncios do Recife (17.2.1830; 7.4.1845). Mais ou menos romanceados houve também relatos de naufrágios ‘lusófonos’, como o romance histórico de Manuel Pinheiro Chagas O naufrágio de Vicente Sodré, referido num inventário de órfãos de Benguela de 1900 (Chagas, 1894).  Mas, confesso, parece-me escassa presença. Terá, possivelmente, havido mais títulos a circular e não tive ainda conhecimento de quais.


Num âmbito globalizante encontramos a “História da Terra” (mais uma vez no espólio de José de Anchieta e, mais uma vez, sem qualquer outra referência), uma “História Cronológica” e uma “História Universal” (de Millot, anunciada no Recife e constante de inventários de órfãos de 1855 e 1856 em Benguela). Millot, com esta obra, foi muito referido no Atlântico lusófono tropical. Nos anúncios do Recife, porém, praticamente igualava a de Bossuet em número de anúncios. Bossuet, de resto, aparece em Luanda nas bibliotecas privadas de Manuel Patrício Correia de Castro (incluída nas Obras), Bernardino da Silva Guimarães e na lista de livros enviados pela Igreja em 1852.

Num âmbito ainda geral, em termos do tempo abrangido, mas restrita ao cristianismo, anuncia-se a “Ecclesiastica” (uma “em português”, mais a de Du-Creux, outra em francês e sem indicação de autor, ou sem indicação de autor e de língua, mais a de Ponelle e de “Tillemont”), bem como se encontra em Luanda uma História Eclesiástica Ultramarina (do Visconde de Paiva Manso, já referida acima). Nas listas de anúncios aparecem ainda A História Sagrada, em 23 vol.’s, de António Pereira; ela foi também anunciada no Jornal do comércio, do Rio de Janeiro, como “Bíblia ou História Sagrada”, pois o título realmente aludia à tradução da Bíblia pelo conhecido padre, tal como vem mencionada no catálogo de Viúva Bertrand & Filhos, de 1846.

  1. Uma “História Sagrada ou Resumo do Antigo Testamento” surgia assim num anúncio do Recife, de 10.5.1845, indicando-se como autor B. F. de F. A. Costa. Outra era a de “Raymmond” ou “Raymont”, anunciada no Recife entre 1840 e 1842. Nos anúncios deste último ano referia-se também uma “História dos Concílios e dos Papas”. Acompanhando a bibliografia católica aparecia, junto com várias outras referências maçónicas, uma “História Geral da Maçonaria”, num anúncio do Diário de Pernambuco de 1.12.1840.

Nos catálogos do Arquivo Histórico Nacional, em Luanda, surgia também a “História da Igreja”, em latim, de João A. Graça Barreto (Barreto, 1879), a par da “História Universal da Igreja” (Alzog, 1882) de João Alzog, trad. por José António de Freitas e da História Cronológica do Cristianismo, bem como a de Cristo.


Entre as histórias disciplinares (a eclesiástica já o era) estavam as da Filosofia:
  1. “da Filosofia”, sem menção de autor e que fazia parte do espólio do cientista José de Anchieta.
  2. Mencionado no inventário de órfãos relativo a tal espólio constava ainda o Cours de philosophie, suivi de notions d'histoire de la philosophie (o título aparecia como “Hist. de la Philosophie”), de Joseph Fabre (1842-1916). A edição era a de Paris, C. Delagrave, 1870, em 1 volume – penso que a primeira – e destinava-se principalmente aos estudantes.
  3. A do “P.e Mestre João Rodrigues de Araújo”, em dois volumes, (anunciada no Jornal do comércio, do Rio de Janeiro, a 3.3.1830). O cónego João Rodrigues de Araújo foi Lente de História Sagrada e Eclesiástica no Seminário Episcopal de São José, segundo o Almanak Laemmert para 1847 (p. 113).
  4. Um curso de V. Cousin (o espiritualista eclético, e político) sobre a mesma filosofia, em outros anúncios mencionado como “Curso de História da Filosofia”, sendo os anúncios todos do Diário de Pernambuco.
  5. No mesmo periódico surge o título “História dos filósofos antigos e modernos”, anunciada no Recife (1.7.1842), sem qualquer outra especificação. Tinha homónimo, publicado no Brasil entre 1788 e 1792, da autoria de Francisco Leal e certamente seria essa a obra referida pelo anúncio.
  6. Ainda no mesmo periódico se mencionava um título de “E. Geruzer” (Nicolas Eugène Geruzer, outro eclético, muito popular em França), o Novo curso de filosofia, especialmente destinado a estudantes do bacharelato (“rédigé d'après le nouveau programme de philosophie, pour le baccalauréat ès-lettres”). O título saiu numa edição de 1840 sem o adjetivo Noveau, mas é possível, pelas datas (o anúncio foi publicado a 10.5.1845), que se procurasse essa edição, mais recente.
  7. Nos catálogos do Arquivo Histórico Nacional, em Luanda, mencionava-se um complemento do Rev.º P.-M. Brin à sua “Filosofia Escolástica” ( (Brin, 1880-1884)Histoire Générale de la Philosophie ou supplément […]) e outro complemento a essa História geral da Filosofia, que era a História da filosofia contemporânea (em francês) e que será referido mais à frente.
  8. Uma “História Filosófica” (do preconceituoso Guillaume Raynal, ex-jesuíta) mas “com Atlas” – o que indicia uma espécie História Natural e Antropológica (v. nota), tanto anunciada no Rio de Janeiro (por ex., Jornal do Comércio, 4.1.1830) quanto no Recife (Diário de Pernambuco, 1.5.1845) e, como se sabe, dedicada “aux deux Indes” (aventa-se a hipótese de Diderot ter colaborado intensamente na segunda e terceira edições – 1774, 1780 – onde se faz a denúncia do colonialismo europeu e do tráfico de escravos)[2].
  9. Passando às Ciências Naturais e à Matemática, encontramos as histórias “da Zoologia”, outra da Botânica, Mineralogia e Geologia – esta de Richard Harper, em francês. Ambas as referências constam do inventário de órfãos do explorador José de Anchieta. A “História das Matemáticas”, de J. F. Montucla, em francês e com estampas, era mencionada num anúncio do Diário de Pernambuco de 1840. Segundo Ubiratan D’Ambrósio, foi a “primeira grande história da matemática”.
No âmbito literário em sentido lato guardava-se uma “História Crítica do Teatro”, de Luís António de Araújo, nas estantes do Gabinete Português de Leitura do Recife. Nos catálogos do Arquivo Histórico Nacional aparecia também a História do romantismo em Portugal, de Teófilo Braga (Braga, 1880), já comentada.

Na aceção iluminista de História Natural a disciplina estava ainda presente, como disse, refletindo o espírito das Luzes. A bibliografia científica estendia-se, aliás, à Geografia e a várias outras áreas, servindo a “coleção de notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas” de ponte entre os dois campos e realidades próximas da nossa. O Arquivo Histórico Ultramarino guardava, segundo os catálogos, os n.os 1-3 do tomo I nas suas estantes. É ao que corresponde o exemplar disponível em linha e acima hiperligado, com data de 1812 e publicado pela Academia das Ciências em Lisboa. Porém, neste volume, as referências a Angola são escassas e, portanto, no que a nós diz respeito só terá servido como termo de comparação.

Um exemplo interessante, dentro da historiografia do século XVIII e começos do seguinte, é o das Lettres sur l'Egypte (Savary, 1786), onde se fala dos “costumes antigos e modernos dos seus habitantes, bem como do estado do comércio, da agricultura, do governo, da religião arcaica do Egito” e às quais se juntam “Cartas geográficas”. Encontrei na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda os volumes II e III desta obra em três volumes. O segundo aparece digitalizado na hiperligação dada acima.

A forte componente historiográfica na bibliografia pesquisada certamente reforçou uma das tendências mais comuns e mais arreigada na comunidade literária angolana: a tendência para o testemunho, o documento, a narrativa histórica. Para além disso ela divulgava os acontecimentos recentes e permitia compará-los aos da antiguidade literária greco-latina, criando nos leitores, ao mesmo tempo, uma informação atualizada e uma continuidade formativa.


Uma obra que se prende mais diretamente com esta pesquisa é a Histoire universelle, de César Cantu. Ela aparece em Luanda (no Arquivo Histórico Nacional) e Benguela (na Biblioteca Municipal), numa edição da Empresa Literária Fluminense. Foi traduzida para francês por Eugéne Aroux e Piersilvestro Leopardi e revista pelos mesmos. Nesta edição, a história universal de Cantu foi “reformada em conformidade com o estado atual das Ciências Históricas, acrescentada até ao ano de 1879, ampliada na parte relativa a Portugal e ao Brasil por António Enes”. A impressão é de Lisboa, apesar da sede da editora ser no Rio de Janeiro (tinha, no entanto, delegações a funcionar no Recife, em São Paulo e em Lisboa) e o exemplar exibe um carimbo do “Club Transmontano de Angola”, que só foi criado em 1912. Nada consegui perceber, pela consulta dos exemplares, quanto à história do livro. A edição consultada na Biblioteca da Administração Municipal de Benguela é a terceira francesa, reformulada (aliás, “refondue”) pelo autor e revista e traduzida por M. Lacombe a partir da oitava e última edição italiana. Aí estão os 19 volumes da História universal de Cantu, editados em Paris pela Firmin Didot em 1862. Esta li-a demoradamente, mas também nada nos exemplares me permite concluir sobre a sua história em Angola.

A importância de que se reveste para esta pesquisa a História de Cantu relaciona-se com o facto de incluir sempre uma história literária e artística, filosófica e científica dos países e impérios de que fala. Quem a lesse tinha acesso à literatura grega e romana, persa e chinesa. Não era pouco, ainda que fosse resumido.

Na literatura grega fala Cantu dos poetas “gnómicos”, dos “épicos”, dos “líricos”, trágicos e cómicos, dos grandes oradores e dos historiadores. Fá-lo com suficiente pormenor e aborda as obras de Tucídides, Xenofonte, Demóstenes, Esquilo, Sófocles, Eurípides, Homero, Hesíodo, Píndaro, Aristarco, Apolónio, Menandro, Calímaco, Maneton (que era egípcio), Políbio, Teócrito, entre outros. Dos romanos pega nos clássicos e mais em Lívio Andrónico, Plauto, Terêncio, etc.. Fala ainda na literatura chinesa (em 16 páginas), referindo os livros canónicos, Chou-king, Y-king, Li-king, a poesia, a poética, os romances, a arte dramática, a eloquência, a história, a educação... e o suicídio. No final do tomo II acrescenta ainda transcrições de “poesia lírica chinesa” e de “eloquência chinesa”. Dedica duas páginas à literatura persa e refere um autor que se torna interessante no contexto africano: Lokman.

Diz que dele se contavam “as mesmas maravilhas que os índios (leia-se: os indianos) de Vichnou-Sarma, e os gregos d’Ésopo”. Lokman foi louvado por Maomé no Corão, facto lembrado pela História universal, que diz ainda que Maomé “verte” sentenças dele, proibições, etc.. Na verdade, a surata 31 é um comentário à obra de Lucman, como é chamado no texto. Segundo Cantu, chamam-lhe “Al-Hakim, o sábio”. Escreve Cantu: “diz-se que ele nasceu na Etiópia, duma família obscura; tendo sido vendido como escravo, ele correu de país em país” até chegar a Israel no tempo dos reis David e Salomão. Foi lá que teve revelações divinas e escreveu, por sabedoria recebida de Deus, “dez mil apólogos e sentenças morais”. Há uma narrativa persa onde um hebreu lhe chama negro. Este é o ponto circunstancial de interesse no contexto africano. Um negro ser tomado como sábio e louvado até por Maomé, como também pelos judeus, no tempo do grande rei Salomão, cuja sabedoria a Bíblia canonizou para todos os cristãos – incluindo os ‘coloniais’. Talvez por isso tudo ele tenha vindo a publicar-se, através de José Benoliel, na Imprensa Nacional portuguesa, em 1898[3]. Cantu já transcrevia algumas das fábulas de Lucman («L’Oie et L’Hirondelle» – «O Ganso e a Andorinha», «L’Enfant dans la Riviére» – «A Criança no Rio», «Le Chien de Forgeron» – «O Cão do Ferreiro»). De forma geral a filosofia dele aponta para o meio-termo, a moderação, a prudência, tal como a do antigo Egito, especialmente o corpo de preceitos que formam o livro de Ptahotep.

Outro ponto de interesse relaciona-se com certas caraterísticas da lírica ultrarromântica em Angola. Falei delas em Kicôla: estudo, que é uma das bases deste livro e por isso vou referi-las mais à frente. Refiro-me ao facto de haver composições com estrutura escondida, para os mais agudos leitores adivinharem, sendo que a descoberta dessa estrutura atraía leitores ao poema, segundo suponho. Na maioria das peças isso era conseguido pela composição de simetrias. Vejamos, por agora, como isto se articula com as nossas fontes e com a História universal de Cantu. Nas nossas fontes refere-se o vol. I, O livro da minha alma[4] (d'Aboim, 1849), e o volume II das Saudades da minha pátria, de João d’Aboim[5]. O volume I vem a dar título, em parte, às Espontaneidades da minha alma, como referi na Notícia da literatura angolana. No prólogo do volume II o autor, cuja influência sobre Maia Ferreira é conhecida, dirige-se a “Cherubino Lagoa e Maia” (Maia Ferreira) incentivando-os a prosseguir “na estrada que encetaram”. Do incentivo faz parte, como no Tratado de metrificação de Castilho, um conselho para os momentos de menor inspiração. Nesses momentos aconselha-se os novos poetas a cuidarem “mais no ritmo, na simetria e na regularidade dos versos” (o sublinhado é meu, naturalmente).

O conselho foi seguido por Maia Ferreira, pois também no seu livro compõe simetrias estróficas do tipo das que vemos nas colaborações angolanas no Almanach de lembranças. Outra via para a composição de estruturas ocultas era a tipográfica. Ela foi usada por Cordeiro da Mata pelo menos duas vezes: numa composição que referi pormenorizadamente em Kicôla (vol. I) e «Na véspera de S. Pedro». Revitalizando um veio barroco da literatura angolana, estes poetas compunham versos e estrofes usando critérios próprios das charadas, adivinhas e logogrifos. Sem dúvida que o gosto pela adivinha e o seu cultivo no plantio oral africano reforçava tais atitudes, mesmo em poetas de origem europeia como Eduardo Neves (e as tradições populares europeias eram também dadas, como sabemos, aos mesmos cultos). A oratura banto e seu gosto pelas adivinhas, seu culto de simetrias hipercodificadas em desenhos de areia por exemplo, seu culto do oculto, eram fatores em circulação nos pequenos meios urbanos da colónia e, sobretudo, no comércio, onde mais facilmente se trocavam traços e informações também culturais, num ambiente mais solto. A forte presença da maçonaria, com seus segredos a desvendar e sua disciplina de descodificações, estimulava e orientava esse gosto pelas simetrias calculadas, ocultas e potencialmente significativas. O que pode parecer estranho é isso acontecer em pleno romantismo, no caso dos dois últimos nomes no fim do romantismo, havendo em ambos sinais de Realismo. Raynaud, numa obra cuja edição original pude ler na Biblioteca Estadual de Pernambuco (Raynaud, 1827 p. 94)[6], define-lhes (aos logogrifos) a etimologia (“enigma de palavra”), diz que se usa em França desde Carlos Magno, pelo menos. Escrevendo ainda na primeira fase do romantismo em França, considera a espécie desusada e reconhece que subsiste apenas em periódicos (“jornaux”) dedicados aos espetáculos. Porém, obras como a de Cantu, apesar de críticas em relação a tal tipo de práticas, terão sustentado a sua continuação.

Efetivamente a sua História nos fala nas “poesias difíceis gregas e latinas”, traduzindo-as e acrescentando-lhes notas que ajudavam a descodificá-las. Não me admirava que algum poeta concretista, se por acaso leu a História universal, se deliciasse com essas páginas. As “poesias difíceis”, ali comentadas, são poemas visuais alexandrinos, que emparelhavam com anagramas e acrósticos. Ele afirmava que Símias de Rodes fora o inventor do género (em 324 A.C.) e transcreveu «Syrinx», de Teócrito, para além de «La hâche» («O machado»), de Símias.

Reforçados por uma tradição oral que valorizava este género de habilidade e sustentados por exemplos como os transcritos por Cantu, os poetas angolenses e residentes naturalmente comporiam simetrias e textos ocultos esperando que os leitores os decifrassem como a charadas. A espécie (charadas, logogrifos e afins), adivinhatória, apesar do que dizia Raynaud, mesmo alguns ultrarromânticos portugueses terão decifrado ou composto com ela, desde logo o próprio mestre Castilho. E não só portugueses, pois o tipo (o que facilmente confirmamos pelas páginas do Almanach de lembranças), era também largamente cultivado no Brasil. Não só por escrevinhadores de terceira linha e sábios de cafundós, mas ainda pelo indianista e nobilíssimo José de Alencar: “o dom de produzir a faculdade creadora, si a tenho, foi a charada que a desenvolveu em mim” (Alencar, 1893 p. 9). Muito corajosa a afirmação do romancista e muito lúcida, pois a charada é uma intriga concentrada e, por isso, ajuda a desenvolver o raciocínio típico do narrativo, que não nos pode sugerir toda a verdade em meia dúzia de linhas, mas tem de manter em suspenso o leitor durante o romance quase todo. É claro que depois o exercício foi abandonado (“de charadas e versos nem lembrança […] flores efémeras das primeiras águas” (Alencar, 1893 p. 10)), mas cumpriu a sua função na idade certa. Como entre nós continuou a cumpri-la – até bem tarde. Finalmente, refira-se que um autor francês, lido entre nós por um título político, falava na “época mais florescente da charada, e sobretudo […] os doze anos compreendidos entre 1836 e 1848.” (Mezières, 1866 p. 45) Ou seja: o período romântico não foi só romantismo literário, também ele albergou o cultivo de charadas e logogrifos, pelo que a sua prática entre os angolenses seria menos ainda de estranhar.






[1] Miguel Martins Dantas colabora neste periódico e no Constitutionnel a favor da causa liberal portuguesa (v. Eduardo Honório – Cartas a Garrett. Maia: CMM, 2000. pp. 96-99.
[2] “Diderot seria também um dos pioneiros da crítica ao colonialismo. Emprestou tempero literário e filosófico ao severo estudo do abade Raynal, "História das Duas Índias", que denunciou as violências europeias na América e no Oriente.” Marcelo Coelho - «A colossal biografia de Diderot chega ao Brasil». – Folha de São Paulo. São Paulo: 8-7-2012. – em rede: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1116276-a-colossal-biografia-de-diderot-chega-ao-brasil.shtml. consulta em 7-7-2012. A Histoire philosophique do abade anunciava-se no Recife e circulava também no Rio de Janeiro, nos anos 20 do séc. XIX, precisamente quando a ligação com Angola (e Benguela em particular) estava mais intensa (Pacheco, 2000 p. 33). Raynal, nesta obra (se L'Histoire philosophique et politique des établissements et du commerce des Européens dans les deux Indes), defende a tese da inferioridade do clima (logo, dos habitantes) do Novo Mundo. Por entregá-la a um cliente padre, o livreiro José Dubié recebeu, em Lisboa, ordem de prisão a 13-1-1791 (Rodrigues, 1980 p. 42). Até 1808, segundo Armitage, era dos poucos autores estrangeiros a circular entre a elite brasileira (Armitage, 1837 p. 6).
[3] Fábulas de Loqmán: vertidas em portuguez e paraphraseadas em versos hebraicos por José Benoliel S. S. G. L. e revistas pelo Grão-Rabbino L. Wogue. (Loqman, 1898).
[4] Está nas estantes do GPL do Recife, sem dedicatória nem nada que permita personalizar a história do exemplar; apenas os carimbos do Gabinete, que registam a entrada do livro a 14 de Março de 1853.
[5] Nas mesmas estantes se encontra este vol. II das Poesias de João d’Aboim, chamado Saudades da minha pátria (RJ: 1850. Tip.ª F. Paula Brito).
[6] Já vi referido o ano de 1828 e o nome de Charles Raynaud para a edição mas, quando li, anotei estes dados. Uma vez que se trata de uma série, creio que o nome designa autor diferente.

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