Filosofia, Direito - e política ainda


A “Tentativa filozofica” (O homem ou os limites da razão), do polémico “J. A. de Macedo” (tradutor de Horácio); a bem diferente A voz da razão, de J. Anastácio da Cunha (11.5.1744-1.1.1787, Lisboa); as obras de Verney (a “Philosophia Rationalis”, ou só Verney); “Condillac – Oeuvre Metaphysique” (Condillac, 1793), “Lógica”, ou só Condillac (Etienne Bonnot de Condillac, 1715-1780); a “Philosophia Racional” (Instrução sobre a Lógica, ou Diálogos sobre a Filosofia Racional) do oratoriano Manuel Álvares[1] (1739-1777), foram outros tantos títulos a remeter para moralidades e reflexões diversas, opostas, até paradoxais, mas contemporâneas. Denotavam uma comum preocupação com o Bem, com a Verdade ou a Realidade e, principalmente, com a articulação entre Religião, Filosofia e Ciência, que fora rompida pela Escolástica tomista e pelo ensino jesuíta. A divulgação empenhada das filosofias naturais e racionais acompanhava o esforço de modernização cultural e política da ponta ocidental da Europa. Simultaneamente, o realismo irónico, a linguagem quase transparente e as multímodas composições de José Anastácio da Cunha (introdutor do alexandrino na lírica portuguesa), traziam para o debate caraterísticas literárias modernas e questionadoras. As outras eram mais obras de divulgação ou de consolidação de novos cânones (exceção feita a Condillac). Nem todas constam das fontes angolanas.

Também a Filosofia e o Direito conjugavam o mesmo esforço, unidos pelas preocupações políticas e morais, o que se pode ver por anúncios de obras e autores como o Barão de Pufendorf (Samuel Freiherr von Pufendorf, 1632-1694), para além disso historiador. Anunciava-se, provavelmente, Le droit de la nature et des gens ou système général de la morale, de la jurisprudence et de la politique. O título é esclarecedor.

Neste contexto aparece no Recife e no Rio de Janeiro O espírito das leis de Montesquieu (ed. or. 1748), a par das Oeuvres. No princípio de janeiro de 1830, por exemplo, é procurado no Jornal do Comércio do Rio e já o fora em 5.10.1808 na Gazeta do Rio de Janeiro (Neves, et al., 2018 p. 91). Em 1831 é oferecido um exemplar à Biblioteca Pública de Olinda. Em 1836 consta do espólio de José Lino Coutinho na Bahia (Magalhães, et al., 2017 p. 217). Em 1842 anuncia-se uma edição com comentários “por Tracy”[2] e em 1837 e 1845 se anunciam várias vezes as Obras completas, ou só Obras, ora com o título em português, ora em francês. A biblioteca de Manuel Patrício Correia de Castro recebeu também esse contributo, e não ficou sozinha no contexto luandense. Uma edição das Oeuvres (1805) aparece na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda e tem, no canto superior direito da contra-capa, um selo de “R. Felner” – alguém ligado certamente a A. A. Felner, historiador colonial de Angola. Teófilo Braga dá Montesquieu como protorromântico, realçando “o seu entusiasmo pela constituição inglesa” (Braga, 1880 p. 8). Não teve muita razão nisso, até porque Montesquieu se entusiasmava com o despotismo iluminado, apesar de passagens suas aproveitadas por liberais e do seu respeito pelas leis e pela individualidade. Mas o que nos importa é que foi essa uma das colocações do autor no panorama cultural europeu que circulou por Angola no fim do século XIX.

As inúmeras obras ligadas ao Direito desenham arcos de valores diversos, como escrevi. Para o caso pernambucano, em grande parte se devem ao funcionamento do Curso Jurídico, mas a filosofia do Direito era omnipresente nestes mercados. Não cito nem comento os manuais todos, nem os livros todos. Ao longo da pesquisa os fui anotando até me aperceber do seu pouco significado ao lê-los, ou da impossibilidade de os ler a todos – o que tinha a mesma consequência. Posso dar algumas referências inconsequentes (para o meu objetivo), no âmbito das quais incluo também revistas jurídicas: Direito mercantil (de Silva Lisboa), “Danon, Ensaio sobre as garantias individuais”, “livros didáticos e jurídicos”.

Os propósitos das revistas podiam variar muito, bem como o seu significado para nós. Um dos exemplos é o do Archivo jurídico. No Arquivo Histórico Nacional, em Luanda, deparei-me com vários números[3], tal como no empoeirado e superpovoado arquivo do Tribunal de Primeira Instância de Benguela.

Segundo Luís Bigotte Chorão, começou a publicar-se o periódico em 1860 com um título esclarecedor, pois se subintitulava “comercial, Civil, Eclesiástico e Militar”, para além de jurídico (Chorão, 2002 p. 238ss). “Periódico mensal de notícias judiciárias e legislação de maior interesse tanto antiga como moderna”, foi organizado por “tipógrafos e editores e livreiros, embora com a cooperação de juristas”. Pela sua utilidade ele circulava certamente num leque maior de leitores, incluindo ainda comerciantes e funcionários públicos. “Veio a caber a J. J. Vieira da Silva a tarefa de publicar os últimos volumes” da revista, “que desapareceu exatamente em 1900”, por coincidência o ano que pus como limite máximo da minha pesquisa.

Outro periódico desta área constante das nossas fontes é O mundo legal e judiciário: órgão defensor de todas as classes judiciais e administrativas. No arquivo do Tribunal de Primeira Instância de Benguela existiam exemplares desde o quinto ano de publicação (1890-1891) até 1914. Segundo Luís Bigotte Chorão a publicação teve início no ano de 1886 (Chorão, 2002 p. 238). A partir de Agosto de 1888 assumiu o subtítulo (“órgão defensor…”). Tratava-se de um periódico articulado com o pensamento jurídico internacional: havia uma “secção portuguesa” e outra “secção estrangeira”, com boa colaboração de juristas de vários países.

Segundo Bigotte Chorão (e isso nota-se em muitos artigos) foi um grande e qualificado divulgador da “Escola Positiva” do Direito, com apoio de vários “Lentes” da Universidade de Coimbra. Nessa época, justamente, Augusto Bastos regressara a Benguela e se declarava, em periódico local, um defensor da escola positivista no Direito. Thomaz Ribeiro também colaborou no “órgão”, nos primeiros tempos – apesar de ele se integrar, em literatura, num grupo não positivista ou mesmo antipositivista. Mas os fundadores estavam ligados aos círculos positivistas e republicanos. Um deles assumiu altos postos na Maçonaria e era amigo pessoal do futuro grão-mestre Magalhães Lima.
Justamente eles divulgaram e discutiram as teses do médico italiano Cesare Lombroso (1835-1909), referindo a obra L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, ala giurisprudenza ed ale discipline carcerarie[4] – sua primeira obra de relevo na área. As ideias de Lombroso chegaram a ser perigosas, envolvendo a craniometria, a antropologia e o determinismo. Talvez haja alguma sombra das suas teorias na obra do ficcionista Pedro Félix Machado, mas isso implicaria uma pesquisa sistemática não realizada ainda.

Imediatamente nos interessa mais que surja, escrita por um dos fundadores (e redator desde agosto de 1888), uma crítica anticolonial. O subscritor é o maçom Fernão Botto Machado. Ele afirma que José Benevides, no Congresso, limitou-se a falar sobre “antropologia criminal e sobre escola penal positiva – lérias estas que já o pobre do Gungunhana estava a refutar, quando o Mousinho foi, em nome da pátria-ladra, e em nome das leis da humanidade-farçante perturbá-lo e prendê-lo em sua própria casa e no meio do seu congresso” (Chorão, 2002 p. 253). A visão crua do que se passou soma-se à analogia entre o “congresso” típico das partidocracias euro-americanas e as instituições do Império de Gungunhana. A crítica surtiu um tal efeito que o visado (Benevides) agrediu, muito democraticamente, à bengalada, Botto Machado. Certamente que não por isso, em termos ‘sindicais’, Botto Machado foi um defensor do “associativismo das profissões forenses” (Chorão, 2002 p. 255).

Outras posições avançadas neste periódico foram a defesa do divórcio (a partir do décimo ano de publicação), do registo civil (também desde o décimo ano de publicação) e o feminismo[5], inicialmente recusado mas abraçado com entusiasmo nos anos quinto e oitavo. Deste último ano consta a mais intensa defesa do feminismo e ele aparece nas estantes do Arquivo do Tribunal de Benguela. Aí se noticia o Congresso Feminista Internacional, ocorrido em Paris em 1896. Em consonância, mais tarde (já no século XX), o periódico vai acolher colaborações de Ana de Castro Osório e Angelina Vidal (no n.º 19 do décimo nono ano).

A curiosidade filosófica estruturava-se a partir de perspetivas sincrónicas, por exemplo a da Histoire générale de la philosophie (Brin, 1880), que funcionava como complemento à Philosophia scholastica do mesmo autor (o reverendo P-M Brin). Essa História geral aparecia, por sua vez, com seu complemento, a Histoire de la Philosophie Contemporaine ligando a diacronia com a sincronia (Brin, 1886). Ambas se encontravam no Arquivo Histórico Nacional em Luanda. Estas Histórias da Filosofia, porém, foram já referidas na secção final do subcapítulo anterior («Histórias»).

No âmbito da filosofia política e da ética na qual muitas vezes ela se fundamentou, é de mencionar a “Ethica” de Mêncio (Mengzi, ou Meng-tsê). Mêncio (370[ou 371, ou 372]AC-289AC) foi um filósofo moralista, político e também religioso, discípulo de Confúcio. A nota significativa aqui vem da sua confiança na bondade humana como bondade natural. É significativa porque se combina bem com a visão que teve Rousseau do ‘bom selvagem’.

Rousseau
Particularizando relações entre estas disciplinas todas, as lições de metafísica seguiam as do Genuense, em português quando possível. As lições eram acompanhadas pela coleção dos “melhores escritos de Benjamin Franklin” (Andrada, 1837), juntamente com uma edição em língua portuguesa do “bom homem Ricardo”. Qualquer dos títulos se anunciava no Recife e no Rio de Janeiro, mas não constava de fontes angolanas. Do século XVIII cita-se ainda, numa carta, Flechier, Massillon e as Meditações de Hervey, nomes que também não surgem nas fontes angolanas.

Mas o que se destacava, no quadro, era o “Contrato social”, título presente na biblioteca de Bernardino da Silva Guimarães, ao Bungo. No Brasil, Armitage dizia que essa obra, a par de poucas outras escapadas à vigilância colonial portuguesa, era das poucas a servir “de instrução” para a pequena comunidade cultural até 1808 (Armitage, 1837 p. 6). Em Pernambuco surge nos anúncios em “nova tradução”, ou não[6], bem como integrado nas Obras completas, em anúncios desde 1831. Ele trazia ao ambiente as mais políticas e talvez populares teses de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), essencialmente as mesmas que, em outra ocasião, se publicam sob o título “Princípios Políticos”. Fui levado a pensar isso porque na mesma época da publicação das Mélanges, que também surgem nos anúncios pernambucanos, o editor fez sair, sob o título Politique, o Contrato social e outros textos políticos.

O contrato social é, claro, muito importante para o nosso contexto. Sobretudo por dois aspetos: porque relativiza o Direito e o Poder, definidos como resultantes e dependentes de uma convenção que liga os governantes e os governados (ideia que vinha já – pelo menos – de John Locke (1632-1704)); porque estabelece logo de início a incompatibilidade entre Direito e escravidão: “as palavras escravatura e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente” (v. Livro I, parte IV – Da Escravidão).

Mélanges acabaram por ser feitas de vários volumes das Oeuvres complètes, de que se podia ler em Luanda, pelo menos, o t. IV, na edição de 1857 (que se inicia, justamente, por «Mélanges»). O tomo é interessante e dá-nos uma ideia enciclopédica da obra do autor. Nele se incluem peças de teatro, as Cartas a Sara, as notas (comentadas pelo compilador) da Refutação do livro De l’Esprit, a tradução do primeiro livro da História de Tácito e do Apocolokyntosis de Séneca (sobre a morte do Imperador Cláudio), as Poesias diversas, uma série de notas sobre botânica, música e filosofia (para além das da Refutação).

Aproveitemos o que se pode aproveitar. Na refutação a Helvétius (Claude-Adrien Helvétius, 1715 - 1771) e ao seu De l’esprit, faz Rousseau uma fina distinção entre sensação, sentimento e memória, bem como observa com justeza as relações funcionais entre os três fenómenos. Helvétius tentava reduzir a atividade psicológica a aspetos materiais. Escrevendo com muita precipitação, num tempo em que a neurobiologia nem sequer existia como tal, cometeu erros crassos, em que fundamentou essa empobrecedora tentativa. Rousseau responde-lhe arguindo, entre outros argumentos, “que é preciso distinguir as impressões puramente orgânicas e locais, das impressões que afetam todo o indivíduo: as primeiras não são mais do que simples sensações; as outras são os sentimentos” (uma definição que, mutatis mutandis, António Damásio tornará muito precisa: os sentimentos resultam da intermediação consciente entre estímulo e resposta e, portanto, da consciência das sensações). A definição de sentimento, se nos lembrarmos do Romantismo, torna-se fundamental.

A memória relaciona-se com o sentimento e a sensação da seguinte forma, segundo o pensador: “a memória é a faculdade de se lembrar a sensação; mas a sensação, mesmo debilitada, não dura continuamente”. Como hoje Damásio defende, Rousseau também afirma que a memória produz uma “sensação semelhante” (à que foi provocada pelos sentidos), não se devendo ainda confundir essa recordação com o sentimento, mas antes conceber que ela participa da formação do sentimento (Damásio, 2011).

Helvétius comparava julgar a sentir, porque fazia equivalentes a comparação entre semelhanças e a sensação diversa provocada por objetos diversos. Claro que Rousseau não caiu nesse reducionismo e lembrou que, perante o sentir e o medir, a posição do espírito varia: quando sentimos o espírito é passivo e quando medimos ele é ativo. Não parece que algum dos dois tenha acertado neste ponto, pois o ‘espírito’, ou a mente, não é passivo quando sentimos. Calculava Rousseau que o sentimento fosse uma recordação prolongada e que se prolongava enquanto o espírito comparava, media as diversas sensações e os objetos que lhes correspondiam na vida mental. Mas o sentimento pode resultar já dessas operações ‘ativas’, tanto quanto da consciência das sensações e da sua recordação. 

Várias outras das suas afirmações sobre o sentimento e os afetos foram decerto corresponsáveis pela receção romântica às obras que nos deixou. A recordação do poeta assenta mesmo a representação dos sentimentos sobre a evocação calculada dos objetos respetivos, escolhidos pelas sensações que provocam. Por isso e não só, Rousseau chama-nos constantemente a atenção para a importância do coração, do sentimento, das emoções e critica também constantemente as tentativas de compreensão e classificação meramente mecânicas ou fisiológicas dos sons, das músicas, das cores, etc. Fê-lo em asserções que se podem generalizar para a poesia.

No Ensaio sobre a origem das línguas, ao denunciar “um erro dos músicos prejudicial à sua arte”, ele escreve: “ao afastarem-se da acentuação oral para se preocuparem unicamente com as instituições harmónicas eles acabam por tornar a música mais ruidosa ao ouvido e menos terna ao coração”. Dois traços, nessa frase, acariciaram muitas vezes os ouvidos e corações românticos: o da ligação à oralidade (não propriamente às tradições populares, mas à voz, à entoação, à música da frase popular e dita, ou declamada) e a valorização estética dos conceitos de “ternura” e “coração”.

A ligação à oralidade foi critério decisivo para a sua reflexão histórico-filosófica sobre a música europeia. Nomeadamente o afastamento da oralidade (simultâneo à racionalização da língua a partir da filosofia) implicou numa gradual separação entre música e poesia, que terá sido a causa da degeneração da música (supõe-se que também da poesia). Toda a poesia, desse tempo até hoje, pode ser vista, aliás, como um longo processo de reaproximação à voz, à oralidade, libertando a linguagem das raspas de papel que a embaçavam.

Porque a oralidade era indissociável da vivacidade que, por sua vez, se assegurava mexendo com a emotividade humana. A valorização estética de conceitos como os de “ternura” e “coração” baseava-se também na importância da emotividade para a ‘poética musical’ de Rousseau. A ligação entre ‘som’ e emotividade fazia-se pela observação da função sígnica dos sons. Na sua filosofia, “os sons” não têm só realidade física: “são signos dos nossos afetos e sentimentos” (ou, pelo menos, são marcados por eles). Isto é o que lhes vai trazer conteúdo humano. Por sua vez, a emotividade não é só conteúdo afetivo, mas um signo também. A função sígnica dos sons era indissociável da função sígnica das sensações, de âmbito bem mais geral: “damos ao mesmo tempo demasiado e muito pouco poder às sensações: não percebemos que elas não nos afetam apenas enquanto sensações mas também como signos”. Aliás, “signos ou imagens”, o que repõe a própria noção de signo num ponto fulcral da perceção e da criatividade. O papel do “som” chega a ser equiparado ao da “tinta” para a eloquência de “um orador”, mas o signo ou imagem são coisas diferentes. Os sons tornam-se signos na medida em que as sensações que provocam (ou os marcam) se tornam também signos. Falo em signos, aqui, pelas duas funções a considerar em face da filosofia de Rousseau: a representação de sentimentos e pensamentos e a marcação, quer dizer, signos enquanto marcas de sentimentos ao mesmo tempo que marcas de som, melhor dito, de melodia, que é o que dá personalidade, carisma, aos sons. Sem a marca e sem a função representativa da marca, não há signo. Por isso ambas e o que representam (para Rousseau – e muitos mais – a imagem mental das ‘coisas’ representadas) não se podem estudar em separado (proposta que vinha já da gramática de Port-Royal do fim do século XVII).

Se não percebermos isso não conheceremos “os verdadeiros princípios da música” – e a música imitava, acompanhava e desenvolvia toda a sonoridade da fala humana regulando-a por sensações e sentimentos que ela pudesse provocar. A generalização para as artes, particularmente as poéticas, é portanto um pressuposto geral. O pressuposto sustenta que a decadência da música tenha tido início quando ela se afastava da palavra: “deixou já de falar e logo não cantará mais” (cp. XVI). Como notou Fernando Guerreiro, “na sua própria adequação às propriedades «naturais» da linguagem”, - o “sistema da música” constituía o “modelo estrutural” das línguas, aliás um modelo estrutural e poético das línguas (Guerreiro, 1981). Isso acontecia na medida em que a própria música fora por ele concebida a partir da linguagem, como sua modelação.

Portanto o pensador europeu ligava (ou religava) a poesia à música e vice-versa, como também fez o Romantismo e desfilava as vantagens de sensações auditivas em face de sensações visuais. O Neoclassicismo associava, com puída citação horaciana, a poesia à pintura. Rousseau preocupava-se em mostrar que são caminhos diferentes, os das imagens sonoras e os das imagens visuais (não pensava, claro, em poesia visual ou emblemática, tal como os românticos o não fizeram). Não que fosse diversa a constituição das imagens nas duas vertentes. Antes se diferenciavam pela função: sonoras, as melódicas constituíam as artes do tempo; com imagens visuais desenhavam-se as artes do espaço. A poesia, arte sintática e não somente paradigmática, mantinha-se a companheira inseparável da melodia, do lado dos sons interligados e não das cores colocadas, pois nem sequer admite o filósofo suíço qualquer relação entre cor e som. Como ele fará o romantismo europeu, afastando-se miticamente da pintura, depurando os ouvidos pelos efeitos dos sons nas sensações e destas nos afetos e sentimentos. A partir daí a música não podia viver e tocar-nos sem a poesia, particularmente a poesia da oralidade, e essa mesma poesia não podia constituir-se fora do modelo estrutural comum.

Também na poesia angolana do século XIX a atenção aos sons, especialmente à cadência rítmica, foi marcante. O convívio com uma oralidade forte, variada, e com poemas dessa oralidade que só se ouviam cantando, reforçava a necessária ‘música das palavras’. Mas havia na poesia nossa desse tempo uma teatralidade que tornava convencionais as relações entre som e emoção, como de resto sucedeu com o ultrarromantismo, que, entre lusófonos em geral, é um romantismo de escola, tardio, quase sempre condicionado pela sensibilidade ao cânone. A ligação de cada som a cada cor, elaborada por Castilho em contradição com Rousseau, estabelecia-se pelas sensações e emoções provocadas e comuns (ao som e à cor). Assim, Castilho regulamentava para os seus discípulos uma correspondência de cada som com cada específica emoção, que abstraía da particularidade, da individualidade, da oralidade particular e da semiosfera na qual havia de estar embebida toda a arte dos ritmos e, portanto, do tempo. Seguindo-o, eles matavam a vivacidade pretendida por Rousseau para a arte da palavra.

A presença de Rousseau na bibliografia foi, no entanto, particularmente significativa. Por outro motivo ainda. Como em Garrett, muitos jovens poetas românticos dariam à infância um perfil emocional e estético irradiante e virginal. A infância era associada à pureza, conotada com o tópico do anjo (feminino), pois ainda as ‘almas’ das crianças não tinham sido contaminadas pela maldade do mundo. A sua inocência contagiava e apaixonava os poetas sem maldades nem pedofilias. Circulava nestas semiosferas, com tons próprios da época, a famosa frase de Cristo: “deixai vir a mim as criancinhas”. De facto, a complexa imagem da pureza infantil derivava também da influência dos Evangelhos e dos livros religiosos, registada pela bibliografia nas “Obras” de Santo Agostinho, nas Institutiones theologicae, nas orações de um beneditino, na própria Bíblia e nas histórias eclesiásticas. O tom próprio da época vinha de elas despertarem o amor inocente e uma paixão intensa no poeta e, sobretudo, pela conotação do mito do bom selvagem com o da pureza infantil, que o sustenta em boa parte, estando ambos presentes em Rousseau.

Também não é de estranhar que, em Maia Ferreira, seja o mito da pureza infantil a dominar, em vez do eurocêntrico e urbano ‘bom selvagem’, pois a sua convivência com “o soba de tribo selvagem”, ou o “selvagem” da “tribo” do “soba”, lhe fornecera quadro real e preciso que bloqueava essa componente exótica e mítica da narrativa rousseauniana. Ainda que não fazendo parte integrante de uma linhagem banto (da qual também viera, mas com várias gerações e assimilações de permeio e com muito repetida enxertia lusitana), e mesmo levando em conta os poucos anos que, na maturidade, viveu em Angola, ter-se-á apercebido de que, nas comunidades paracoloniais, como nas outras, havia conflitos que nos afastavam da pureza infantil, separando-se o “selvagem” (o que vive na selva) da infância idílica, meiga, inocente, mimada e pacífica – idealizada pelo poeta na figura da mãe e, logo, da casa senhorial, bem como na das meninas a quem escrevia ‘celsos’ poemas.

Apesar de quase ausente o mito do bom selvagem, nos versos de Maia Ferreira podemos ilustrar ao mesmo tempo o mito da pureza infantil e a deslocação de culpa (pelo fim do estado paradisíaco da infância) do plano pessoal, em que a fixava Santo Agostinho, portanto uma parte significativa da tradição cristã, para o plano social de Rousseau. Por exemplo numa estrofe, segundo o autor escrita em outubro de 1848, no Rio de Janeiro:

Amo o silêncio da noite,
Quando contemplo a dormir
O sono de um inocente,
Que dorme sem o sentir:
Que só ideias fagueiras
Em sonhos lhe podem vir
E que dos males da vida
Não sentiu o seu pungir.

A passagem não é das mais belas do livro, apesar da agudeza quase pessoana que associa a tranquilidade e a inocência à inconsciência. O último verso da estrofe é particularmente infeliz. No entanto, Maia Ferreira estava a meio do século XIX e o que se relacionava ali com Rousseau era, mais do que isso, a oposição entre a infância e a vida social, reservando à infância a pureza, que o “bom selvagem” manteria na ótica rousseauniana. Mas o selvagem real de Maia Ferreira, esse, era já adulto (ao contrário do que repetia uma incerta visão colonial, associando o ‘negro’ à infantilidade).








[1] O autor era ainda oratoriano quando publicou o título, no Porto, em 1760 (Andrade, 1966 p. 345); foi newtoniano (preferindo, por isso, o método analítico ao sintético, pois este procedia por e de hipóteses – e era o cartesiano), discípulo de Verney.
[2] Diário de Pernambuco. Recife. (9-3-1842) 4.
[3] Por exemplo os n.os 517 a 528: XLI. Porto: 1896.
[4] L. B. Chorão cita a ed. Turim: Fratelli Bocca, 1889. Segundo pesquisas em rede a publicação terá saído primeiro em 1876, com 252 pp. (a edição de 1896 tinha mais de mil páginas). As edições são, neste caso, fundamentais, pois as teorias do autor mudavam conforme avançava na pesquisa empírica. No fim da vida converteu-se aos factos (não à teoria) do espiritismo. A obra de Lombroso era conhecida em Benguela no princípio do século XX.
[5] Luís Bigotte Chorão - O periodismo jurídico…, p. 255.
[6] Diário de Pernambuco. Recife. (9-3-1842) 4.

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