Dionísio de Halicarnasso: História como Literatura
Começando pelos antigos, a leitura dos historiadores clássicos gregos e
latinos não tinha importância apenas pelas informações que trazia. Dois dos
três primeiros poetas épicos romanos (na verdade, um romano e outro romano de
origem grega), Nevio e Ennio, não compuseram tanto epopeias quanto crónicas ou
histórias: Nevio, a da primeira guerra púnica; Ennio, os Anais romanos. Apesar disso, foram considerados poetas épicos, pelo
menos até ao fim do século XIX (Pinheiro, 1872[?] p. 55) . A História foi
considerada por críticos e teóricos eminentes, como Dionísio de Halicarnasso, um género literário até bem dentro do século romântico. Dionísio de
Halicarnasso era mesmo conhecido, no seu tempo e nos séculos seguintes (Pinheiro,
1872[?] p. 43) ,
como historiador (História antiga de Roma ou Archeologia romana - 7 AC em diante) e ao trabalho
historiográfico se terá dedicado mais ainda que ao de crítico ou de retórico –
este lhe rendendo no entanto provento quotidiano, uma vez que foi muitos anos
professor de Retórica em Roma, para onde se dirigiu muito novo (30 AC). Embora laudatória (do império romano), a sua Archeologia romana baseou-se numa pesquisa séria. No entanto, ela terá exemplificado os princípios retóricos ensinados por ele nas aulas.
Começa logo por dizer que o historiador deve escolher um tema nobre e
agradável, criticando Tucídides por privilegiar uma guerra “que não devia nunca
ter tido lugar” – motivo para deixá-la cair no esquecimento. O seu tema
causaria, portanto, repugnância aos leitores, pelo que escolhê-lo terá sido um erro tático. Facilmente se depreende ser o
critério de escolha também de cariz estético – ainda que a palavra, aplicada à
época, possa constituir um anacronismo semântico. O repugnante não seria,
nunca, belo e já disso dera sinais Horácio na famosa carta aos Pisões.
Depois aponta o crítico ao historiador uma segunda tarefa: saber onde
começar e até onde chegar. É um problema de organização do discurso, um problema
retórico já conhecido por poetas épicos, pela poética de Aristóteles e pelos
poetas dramáticos. Aliás, o tratamento que é dado ao assunto, sobretudo na
justificação da crítica a Tucídides, caracteriza-se por isso mesmo: critica-lhe
a falta de tato na escolha do começo, uma distribuição das partes descuidada,
bem como a ausência de surpresa e de agrado que o final da sua história reserva
para a audiência. Não se fala aí, uma única vez, em questões propriamente
históricas, do método histórico, mas sim do mérito ou demérito retórico e da
estesia.
A terceira tarefa do historiador é escolher o que deve contar. “Deve”
não tem aqui nenhuma aceção moral, nem da moral do historiador, nem da ética em
geral. O crítico preocupa-se com mais um aspeto retórico e estético: não tornar
a obra muito extensa e, sendo-o, reparti-la entre pausas, bem como contá-la com
vivacidade e mudança de cenários. Também critica a Tucídides seguir uma ordem
cronológica e não aquela que pede a lógica dos acontecimentos. Não respeitando
essa lógica, o historiador cansa e dispersa a atenção do leitor.
Finalmente, Dionísio de Halicarnasso fala no estado de ânimo que o
autor manifesta no seu escrito e que deve ser coerente com os conteúdos
veiculados: “congratulando-se com as alegrias e compadecendo-se nas situações
dolorosas” como fazia Heródoto.
Estes aspetos diriam respeito ao ‘conteúdo’, não à ‘forma’. No entanto,
não passam de aspetos retóricos, relativos à maneira como o discurso organiza o
conteúdo e suscita simpatia emotiva na receção.
No que diz respeito às questões formais domina o mesmo tratamento
retórico. As primeiras três qualidades formais que tornam um historiador melhor
que o outro são: um trabalho sobre a língua, que a depura e respeita os seus
“rasgos essenciais” (virtude “principal […] sem a qual nenhuma das outras serve
para nada”). A segunda seria a da clareza. A terceira a da concisão. A
verosimilhança, que para um historiador é fundamental (e, segundo Aristóteles,
também para o poeta), aqui passa a ser “a primeira das virtudes secundárias”.
Depois dela e dela derivando, surge “a imitação do caráter e das emoções”. Cada
vez parece mais um tratado sobre dramas e epopeias. Em seguida vêm as virtudes
da “ordenação” e da “expressão”. Não admira, portanto, que logo ele escreva,
taxativamente: “as criações poéticas (pois não me envergonho de chamá-las
criações poéticas) de ambos [Tucídides e Heródoto] são belas”. O final da carta
é igualmente sintomático da conceção das artes verbais na época e para o autor:
os “historiadores que comparei aqui serão suficientes para proporcionar aos que
se treinam na oratória política um conjunto exequível de exemplos para
qualquer estilo”. Eis uma receita para qualquer século também…
Dionísio de Halicarnasso não era um caso isolado, nem seria o único a
não se envergonhar de chamar poéticas às criações dos dois historiadores. A
maioria dos antigos cronistas e biógrafos gregos e latinos tinha uma forte
formação retórica e literária e preocupava-se em escrever bem, de forma
agradável, prazenteira, com elegância, pois sabia que ia ser julgada pela
qualidade artística da sua escrita, tanto ou mais do que pela verdade histórica
transcrita (a própria retórica não aconselhava a que ela fosse inverosímil).
Por isso o crítico e teórico podia afirmar que “Heródoto [em comparação com
Xenofonte] tem além disso elevação, beleza, grandeza e o que se chama
propriamente «estilo histórico»”.
Outros escritores cultivaram o estilo histórico bem mais próximo dos
nossos tempos, como é o caso de Oliver Goldsmith, um homem do século das Luzes,
de que falarei mais à frente.
Na transição do século das Luzes para o romantismo surge em Portugal
uma figura de invulgar inteligência, o prelado e erudito liberal Francisco de
São Luiz, que veio a ser conhecido pelo nome de Cardeal Saraiva. Mais à frente
resumo a biografia e refiro os livros que, dele, constam das fontes que
pesquisei. Aqui me interessa a continuidade que trouxe às preocupações dos
clássicos e neoclássicos acerca do rigor artístico a exigir aos historiadores e
da poética subjacente ao “estilo histórico”. Se procurarmos aquele conjunto de
preceitos na nossa literatura novecentista, veremos que ele fazia falta aos
líricos, angolenses e residentes, mas se realizou plenamente nas melhores peças
dos nossos polemistas. Que é pena ainda não terem sido antologiadas e que é
difícil antologiar sem isenção, de tal forma a sua veemência nos arrasta a uma
tomada de posição.
O nosso único historiador de relevo nesse século, Joaquim António de
Carvalho e Menezes, conhecia decerto estas regras, tanto que as seguiu, mesmo
que alegasse não possuir dons para isso na «Observação» posta no início da Demonstração… (Menezes,
1848) .
O ponto fraco, sobretudo da Demonstração,
é só o de particularizar alguns acontecimentos, o que certamente faz em
consequência das graves injustiças e perseguições de que foi vítima. Porém, em
termos de estratégia retórica, isso veio apoucar uma obra de âmbito mais vasto
e, ainda hoje, extraordinária.
Manuel Patrício Correia de Castro – ele também um prelado liberal – se
aproximou bastante mais do modelo e das virtudes do modelo exposto por
Villemain e pelo Cardeal Saraiva, de quem falo a seguir. Vemos isso no seu
manifesto Aos meus amados
compatriotas (Castro, 1822) , citado já neste livro e que responde a
um folheto rival. Um seu anónimo opositor, localizando-se no Rio de Janeiro, reconhece,
porém: “cuja linguagem corrente e belo estilo aprecio.” Nada mais justo, a meu
ver. O manifesto
rival, escrito por Eusébio de Queirós Coutinho da Silva, também natural de
Luanda mas servindo já no Brasil desde 1818 (chegara ao Rio em 1816 com a
família), detinha idênticas qualidades retóricas e apuro estético (Silva, 1822) .
Infelizmente, desse debate político, em torno da continuação de Angola
em Portugal ou da sua integração no Brasil (imediatamente antes do grito do
Ipiranga!), reprimido como foi, não nos ficaram sinais. Pela qualidade dos
participantes e pelos dois manifestos, é de supor que existissem em Angola, bem
no princípio do século XIX, dignos representantes da escola de eloquência que
viria a ter, na mesma altura, em Villemain e em Paris, o seu mais exímio e equilibrado expositor e praticante. Infelizmente ainda, o pe Manuel Patrício
Correia de Castro não nos deixou mais do que simples “apontamentos” para a
história dos capitulares da Sé de Luanda. Caso chegasse a redigir essa
História, podíamos certamente estudá-la hoje à luz dos preceitos da Eloquência,
tão finamente exarados nos estudos do francês e do Cardeal Saraiva.
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