Economia
Associados em geral à discussão política andavam também os economistas da época, tanto mais que a disciplina de Economia Política era dada no quarto (e último) ano do Curso Jurídico de Olinda. Uma referência incontornável era a de Jean Baptiste Say, com o seu Tratado de economia política, de que só encontrei edições francesas (para a época) no catálogo da Biblioteca Nacional de Lisboa, não havendo nenhuma referência ao autor no ficheiro digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (para edições do século XIX). Também os dois títulos constantes do espólio de José Lino Coutinho, na Baía, eram em francês
Sampaio Bruno acha a influência de Say perniciosa
em Portugal (considera-o mero divulgador), estranhando ao mesmo tempo a falta
de uma tradução de Adam Smith (1723-1790) ou de Ricardo (1772-1823) – que no
entanto o Correio brasiliense anunciava
já em Maio de 1817. Reconhece a popularidade do autor entre os portugueses no
século XIX, juntamente com a de “Michel Chevalier, Garnier, toda a
cientifiquice que grulha nas publicações postas em vasta circulação pela casa
Guillaumin” (casa responsável pela edição de 1840 do Curso completo de economia política). Associa-o à “espantosa
mistificação da escola oriunda de Manchester” e, claro, a “outros dogmas, menos
veneráveis, os do economismo chamado liberal”. De facto, Jean-Baptiste Say foi
um defensor do “livre-cambismo” e um divulgador de Adam Smith. A crítica de
Bruno dirigia-se precisamente contra a preguiça mental, que faria a classe
intelectual portuguesa da época preferir a divulgação às obras de pensamento original
e profundo. No entanto, terá sido Say a propor a divisão entre “produção,
distribuição e consumo”, acreditando o autor que “um excesso na oferta gerava
um excesso na procura”, o que levaria a que, “no regime de livre-comércio”, não
houvesse nem “superprodução de bens, nem desemprego”. Era, de facto, a utopia
liberal em marcha e não por acaso foi re-editado o Tratado de economia política, no Brasil, nos anos 1880 do século XX
(1983 e 1986). No entanto, só encontrei até hoje referência ao seu nome nas fontes
pernambucanas e portuguesas, pelo que não é garantido que tenha sido objeto de
leitura em Angola.
Uma obra que reuniu filosofia, teoria política
e análise económica, numa perspetiva oposta à de Say, foi a de Charles Fourier,
incluído por Engels nos socialistas utópicos. Há menção a ela nas fontes
angolanas, nomeadamente ao vol. V das Oeuvres
complètes. As obras eram publicadas em Paris pela Sociedade para a
Propagação e a Realização da Teoria de Fourier. Em 1861 iam já na 10.ª edição. Fourier
deve ter sido, portanto, mais popular do que indicam algumas fontes.
François-Marie-Charles Fourier nasceu em
Besançon a 7.4.1772 (o ano em que nasceu David Ricardo), sendo portanto cinco
anos mais novo que J. B. Say. Morreu em Paris a 10.10.1837, por coincidência
cinco anos depois de J. B. Say. Ele nasceu numa família de comerciantes e foi
educado para se tornar também comerciante. Viajou e trabalhou pelo norte da
Europa, engrandecendo (no regresso a França) a fortuna da família a comerciar
produtos coloniais. Depois de uma prisão em Lyon e de uma incorporação forçada
no exército revolucionário, em 1796 regressou à vida civil e propôs ao Diretório,
em Paris, uma reorganização escrupulosa do exército. Em seguida começou a expor
as suas ideias visando influir sobre a sociedade industrial no sentido de
proteger as classes operárias. Por esse ou por outro motivo, o seu primeiro projeto
de revista foi recusado pelas autoridades do Consulado em 1800. Começou por
propor, na primeira obra (publicada sob anonimato em 1808), uma “harmonia
universal” baseada na satisfação das paixões da humanidade (vistas como
positivas e doadas por Deus) e tomando por exemplo as sociedades dos insetos.
Em 1822, ano da independência do Brasil, defendia o regresso à terra, no Traité de l’association domestique agricole,
obra que o tornaria famoso. É este livro que, re-editado em 1834 sob o título Traité de l’harmonie unniverselle, se
encontra na biblioteca da antiga Câmara Municipal de Luanda. Pela assinatura
que lhe está aposta, pertenceu a Joaquim Eugénio de Salles Ferreira, bibliófilo
de quem já falei. As suas opiniões e leituras seriam no mínimo escutadas pela
pequena elite intelectual angolense de natos, inatos e residentes. Assim a obra
de Fourier ganha um particular interesse para nós.
Fourrier correspondeu-se com o socialista
utópico Robert Owen (1772–1858) antes de
publicar Aperçus sur les procédés
industriels. Isso é importante, entre outros motivos porque Owen (um burguês
como Fourier, cujo pai era agente dos Correios em Newtown, país de Gales),
criou também comunidades ideais, de tipo cooperativo, sendo o primeiro a usar a
palavra socialismo para designar uma doutrina política (a sua) e dos primeiros
a declarar a religião como obstáculo ao progresso. Foi o falhanço da tentativa
da «New Harmony» (comunidade ideal, criada nos EUA, que fracassou em menos de
três anos) que o levou a pensar no lucro como principal causa dos males dos
operários.
Fourier publicou os Aperçus mas entrou de novo em rutura financeira depois de uma série
de maus negócios (outra semelhança com Owen, que perdeu oitenta por cento da
fortuna com a New Harmony). A nítida formulação da doutrina social de Fourier
aparece entretanto mais tarde, cimentadas que estariam as influências, em Le nouveau monde industriel et sociétaire
(1829). Aí defende a sinergia e cogestão de associações comuns a produtores e
consumidores. Compôs uma utopia baseada nos “falanstérios” (associações), que
eram distribuídos por grupos de profissões e materializavam-se em palácios em
forma de estrela. Nesses palácios, qualquer coisa entre centros comerciais e
corporativos, podiam-se encontrar as lojas, as oficinas das diversas artes e
uma cantina coletiva. Previa-se também uma
educação coletiva, mas diversificada (em função das profissões). Os lucros eram
repartidos entre o trabalho (5/12), o capital (4/12) e o talento (3/12). O
talento ficava nitidamente mal servido, mas ainda que imperfeita, revelava
preocupação de justiça social. Em 1832 discípulos seus criaram uma revista (Le phalanstère ou la reforme industrielle)
onde ele colaborou, vivendo agora apenas da venda dos seus livros. Alguns
discípulos criaram mesmo um “falanstério”, mas o mestre criticou-os dizendo que
se tratava de uma caricatura das suas ideias. Em 1835 publicou La fausse industrie e em 1836 Victor
Considérant (um seu discípulo) fundou a revista La phalange. No ano seguinte Fourier morreu de crise cardíaca,
sendo enterrado em Montmartre. A falange, como sabemos, tornou-se com o tempo
corporativa e fascista…
Influenciado por Newton, Fourier achava
possível aplicar a lei universal da atração à atração passional, usando as
vocações e desejos para criar uma sociedade harmoniosa, apesar de desigual, e
onde cada um completasse os outros. Ele criticava o liberalismo e a revolução
francesa (embora partilhasse com ela alguns ideais), juntando-se a Saint-Simon
quando lhe apontava o facto de ter sido mais uma revolução política do que
social e económica. Associou o capitalismo à barbárie (a quarta época da Humanidade – após o Éden, a Selvajaria,
o Patriarcado), falando numa quinta idade, a da harmonia universal,
matematicamente calculada. As combinações matemáticas não eram fortuitas e
mitos como o do Quinto Império encontravam aqui uma inesperada renovação. Não
só eles. Por exemplo, as paixões humanas eram 12 (como os apóstolos de Cristo)
e o número de habitantes de um falanstério seria de 1620, sendo o número
calculado a partir dos 810 tipos psicológicos que, segundo ele, existiam. As
horas de trabalho dedicadas a cada métier
(cada profissional trabalhava em diversas funções dentro do seu
falanstério) eram calculadas também: entre uma hora e meia a duas horas por dia
para cada tipo de tarefa.
Podemos hoje chamar anedóticos estes aspetos
da sua teoria e muitos dos comentadores e críticos comprazem-se em mostrá-lo.
Fica, porém, da obra que nos legou, a importância da educação sentimental e a
crença (típica de muitos outros socialistas) no condicionamento das pessoas a partir
do ambiente e da educação, paradoxalmente ligada à ideia de que a sua proposta
era a primeira que não ia contra a natureza humana (apesar de não reconhecer
que o egoísmo e a ambição faziam parte de cada um). Fica também o
reconhecimento da diversidade, erigida em valor profissional, hoje recuperável
perante uma sociedade de simulacros e de profissões especializadas que tenta
superar essas suas limitações. E fica a larga influência que dele se regista em
romancistas (Flaubert, Balzac) e poetas (A. Bréton), influência que deve muito
ao poder mítico das suas teorias.
Quanto a aspetos retóricos, o seu estilo era
confuso, como se viu algo mítico também, para além de manifestar um enorme
autoconvencimento. Ao que parece, tinha facilidade em satirizar, o que lhe terá
compensado os desaires, entre os quais este, mais uma vez anedótico: uma vez
por semana, sempre no mesmo dia, convidava mecenas para jantar, para que se
interessassem pela aplicação das suas ideias. Ao que parece, nesses dias,
jantou sempre sozinho, dialogando consigo próprio. Todos os discípulos que
tentaram erguer falanstérios (entre os quais Victor Considérant, nos EUA)
tiveram um rotundo fracasso, que lembra o dos seus negócios, pois ironicamente
só ganhou dinheiro com a exploração colonial, a pior das facetas do capitalismo
do seu tempo e do nosso, já neo-colonial.
É possível que o livro encontrado na
Biblioteca da então Câmara viesse reforçar, no meio local, alguma tendência
para idealizar a vida no campo e contribuísse igualmente para o desenvolvimento
das ideias socialistas moderadas e utópicas. Elas tomam corpo no fim do século
XIX e princípios do seguinte em Angola, sobretudo com a geração da Luz & crença, e há uma tímida
lexicalização socializante num dos últimos poemas conhecidos de José Bernardo
Ferrão – sem dúvida o melhor (leia-se mais à frente o comentário). O Dicionário de Vieira, atualizado e
aumentado, que aparece na Biblioteca da Administração Municipal de Benguela,
tem já a palavra “comunismo”, com um resumo preciso do conceito, embora não
usando propriamente vocabulário comunista[1]. Mas não encontrei ainda uma marca segura da leitura dos seus livros
em artigos e obras de angolanos. No Brasil encontrei – sem busca exaustiva –
comentários elogiosos à sua pessoa e obra em O globo (Anónimo, 1844) . Aí ele é dado como
“célebre” (p. 3) criador do “memorável sistema do imortal Fourier” (p. 4). Mas,
apesar da existência (precária) de um falanstério no país, a sua doutrina é
considerada “inda estranha” no Brasil.
[1] “Systema de uma seita socialista, que pretende fazer prevalecer a
comunidade dos bens, isto é, a abolição da propriedade individual e a entrega
de todo o haver social, nas mãos do Estado, que fará trabalhar, e distribuirá
os produtos do trabalho pelos cidadãos”.
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