Livros científicos - breve nota
Não foi meu intuito abranger os livros de caráter científico (mesmo no
sentido lato que a palavra tinha para o senso comum). Se incluísse todas essas
obras, o trabalho não terminava (e, mesmo assim…). Não deixei, porém, de anotar
algumas referências, que nos sugerem público e mercado pouco virados para a
investigação – como de esperar – e mais para livros de cariz prático e divulgação,
com sua contrapartida nas novelas e nos poemas. Resumo aqui, principalmente, os
títulos que vi nas fontes angolanas e que tenham relação com rigor científico
ou ciências exatas, ou simplesmente que tenham qualquer ambição científica. O
anexo I contém todas as menções coligidas e para lá direciono o leitor mais
interessado.
Em primeiro lugar, a Matemática, a Álgebra e a Geometria se destacam.
Não sei se podemos incluí-las nas Ciências Exatas (acho até que são um ramo das
Ciências Humanas), embora isso choque ainda hoje o senso-comum académico. Mas
há nelas uma preocupação de rigor no raciocínio e na verificação, de medição e
de cálculo que nos preparam, sem dúvida, para irmos mais longe no campo canonicamente
científico.
Euclides é uma referência comum, embora o século XIX tenha assistido,
na Europa, à construção
de uma geometria não-euclidiana. No Recife, no período que pesquisei,
procurava-se muito a sua Geometria, dominante ainda nestes tempos. Em Angola,
na Biblioteca da antiga Câmara Municipal de Luanda, encontrei os livros 1 a 6,
11 e 12 da versão latina de Frederico Commandino, “adicionados e ilustrados por
Roberto Simson, Professor de Matemática na Academia de Glasgow”. A edição é de
Coimbra, de 1824 (reedição da de 1792), tendo saído pela Real Imprensa da
Universidade (Euclides, 1824) . A presença de
Euclides é, como disse, a confirmação do cânone, cuja superação só muito
lentamente começava a processar-se, em círculos restritos e por estes anos
mesmo.
Comerciava-se no Recife, confirmando-o, em 1840, uma História das Matemáticas, de Jean-Étienne
Montucla (1725-1799), em 4 volumes – talvez a “nouvelle édition,
considérablement augmentée, et prolongée jusque vers l’époque actuelle” por J.
F. Montuclas – o nome que aparece como o do autor no anúncio (Montucla, 1799-1802) .
Procurava-se e vendia-se também muito no Recife os manuais de La Croix,
ou Lacroix, conforme os anúncios (Sylvestre-François, 1765-1843), que ajudou
Lalande no alargamento
da História de Montucla. Incluíam Álgebra e Trigonometria, Aritmética, Geometria.
A álgebra de Étienne Bezout (talvez a Teoria
geral das equações algébricas, de 1779) era, por igual, frequente nas
páginas do Diário de Pernambuco. Mas,
essa, entremeada com referências pernambucanas à Aritmética e à Geometria e
referências angolanas aos Elementos de
aritmética e aos Elementos de análise,
de que há exemplares no Arquivo Histórico Nacional de Luanda, exemplares de
edições de Lisboa, Coimbra e Paris. A Geometria de Adrien-Marie Legendre (1752-1833;
talvez os Elements
de geometrie, avec des notes) é pouco procurada e só entre 1840 e 1842,
nos anúncios do Diário de Pernambuco.
A “geometria aplicada às artes”, de Dupin, não parece ter significado,
aparecendo uma única vez e no Recife também. Note-se que o Barão Carlos Dupin
publicara na Bahia, em 1835, o título Geometria e mecânica: dos ofícios e
das belas artes, “para uso dos artistas e obreiros, dos contramestres e
mestres de oficinas e fábricas”, segundo
José Carlos de Oliveira. Provavelmente era esse o livro anunciado.
Vários Atlas foram também
mencionados. Um deles é o Atlas Moderno e
Antigo ou col. de Cartas sobre todas as partes do globo, constante da lista
bibliográfica de um espólio benguelense de 1856 e de que
não consegui referências até hoje nas bibliotecas em linha. No mesmo âmbito se
refere um Dicionário de Geografia num
espólio de 1857, de Benguela ainda, não sei se o mesmo que vem referido só como
Geografia num espólio de 1873 da
mesma cidade. Aliás, de Geografia aparecem mais obras, como por exemplo a Geografia universal, a Geographie universelle physique, politique et historique d'apres
le plan de William Guthrie ; redigee depuis son origine (1800) jusqu'a ce jour
par Hyacinthe Langlois (Guthrie, et al., 1802) , o Atlas marítimo de “Bellim”
(mencionado no espólio de 1856 de Benguela (Bellin, 1764) ), as Lições de Geografia do Abade Gaultier (Aloisius-Edouard-Camille
Gaultier, c.1745-1818), mencionadas num inventário de órfãos de 1855 em
Benguela e até, na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, as Choix de Lectures Géographiques et
Historiques : presentées dans l'ordre qui a paru le plus propre à faciliter
l'étude de la Géographie de l'Asie, de l'Afrique & de l'Amérique (Mentelle, 1783) .
Significativo deste mercado é também o livro de Louis Figuier, La Terre et les Mers ou description physique
du globe (referido, por outro título – Les
races humaines, 1872 – no espólio do naturalista José de Anchieta). La
Terre et les Mers teve muitas edições no fim do século XIX e pude ver um
exemplar da quarta, na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda (Figuier, 1872) .
O livro era atrativo, com 170 vinhetas assinadas por vários desenhadores (Karl
Girardet, Lebreton, etc.) e 19 “cartas de geografia física” (na folha de rosto
são anunciadas 20), saindo a edição inaugural, pelo que pude investigar, em 1864.
O autor, em Les races humaines,
revela-se muito ignorante, generalista e preconceituoso quanto à classificação
das ‘raças’ e particularmente (para o que nos interessa) dos ‘hotentotes’ (igualados
a bosquímanes, colocados no limite inferior da humanidade) e dos ‘negros’, que
seriam também os aborígenes das ilhas do Pacífico. Mesmo para a época, parece
mais um logro de máscara cientista do que, propriamente, uma obra científica.
Talvez mais interessante, não só pela sua ligação ao Brasil, era a obra
de Ferdinand Denis, L’Univers, Histoire
et description de tous les peuples (Denis,
1846) . O volume (o primeiro) que se encontrava na Biblioteca Municipal de
Benguela, deve representar uma segunda edição, visto que a primeira saiu em
1837. Tendo essa biblioteca recebido muitos livros da Fundação Gulbenkian,
assim como alguns de Amílcar Barca e do Dr. Frestas (figuras da primeira metade
do século XX benguelense) e não apresentando o exemplar nenhum traço
particular, específico, não consigo saber se terá sido folheado na cidade ao
longo do século XIX.
Mais específico é o livro de Gustav Nachtigal (1834-1885) existente na
Biblioteca do Governo Provincial de Luanda: Sahara
et Soudan (Nachtigal, 1881) . Curiosamente o autor morreu no mar,
próximo do Cabo de Palmas, junto à Libéria. As seis viagens que serviram de
base ao livro realizaram-se, no entanto, por terra também (a partir de Tunis),
não só por mar.
Para a África Ocidental havia matéria de estudo,
recolhida no Arquivo Histórico Nacional, incluindo “2 cartes”: L’Afrique Occidentale, la Nature et L’Homme
Noir (Barret, 1888)
acompanha uma viagem marítima desde Cabo Verde até à “entrada do Gabão”
(incluindo ainda uma descrição da Ilha da Madeira no começo), penetrando mais
para o interior na segunda parte da obra, para descrever paisagem e povos.
Mais específicos ainda e, por vezes, com pretensões científicas, eram
os relatórios de viagens, como os de Capelo e Ivens, o de Serpa Pinto e vários
outros, até ao fim do século romântico. Deles nos dá exemplo tardio Paiva
Couceiro, abrindo para a colonização do século XX com o seu Relatório de Viagem, entre Bailundo e as
Terras do Mucusso, de que havia exemplar no Arquivo Histórico Nacional (Couceiro, 1892) .
L’homme americain é um título que se pode aproximar das geografias, se pensarmos na Geografia
Humana. Deparei com ele na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, sem
elementos que me ajudassem a conceber a história do exemplar. Havia na época
dois títulos muito próximos, mas o exemplar de Luanda (Tomo II) corresponde ao
de Alcide Dessalines d'Orbigny (d'Orbigny, 1839) , a julgar pelas datas.
No jornal A semana, Pedro
Félix Machado refere (e sobretudo num conto passado numa fazendo do interior de
Benguela) várias obras ilustrativas da ciência da época e das distorções que
ela permitia ou sustentava, ou dos desvios de método em que se baseava. Era o
caso das que identificavam ‘raças’, ou ‘etnias’, através do tamanho dos
cérebros – que, por sua vez, seria depois conotado negativa ou positivamente,
como sucede em Chrania ethnica, livro aí mencionado. A data por ele referida é a da primeira
edição. A “Iª Parte” é dedicada às “raças
humanas fósseis” (Quatrefages, et al., 1873) . Outra referência de
Pedro Félix Machado foi Darwin, única aliás em todo o corpo de menções
consultado, como a de Lavoisier.
Entre a divulgação científica e a literatura, baseando-se na História,
na Geografia, nos estudos das culturas, estava uma curiosa obra, que eu não
esperava encontrar no Governo Provincial de Luanda: Ceylon: an account of
the Island, physical, historical, and topographical (Tennent, 1860) . A surpresa de que
falo vem de se resumir ali o que havia a dizer acerca da literatura de Ceilão.
Não sei se Alfredo Troni teria interesse em conhecer alguma comunidade
específica de Ceilão, se apenas se interessava pela História tão rica dessa
ilha, ou se pela sua poesia, a verdade é que o exemplar estava assinado e
datado por ele: “Alfredo Trony – 7.06.72”.
Acentuando a linha exotica do livro
de Troni vinha a Voyage en Islande,
“contendo observações sobre costumes e usos dos Habitantes; descrição dos
lagos, rios, glaciares, fontes quentes e vulcões, das diversas espécies de
Terra, Pedra, Fósseis e petrificações; dos animais, peixes e insetos, etc…” (Olafsen, et al., 1802) .
O estudo específico do reino animal
estava representado, entre outros livros, pelo Éléments de zoologie (Gervais, 1877) , ainda presentes nas
prateleiras da Biblioteca do Governo Provincial de Luanda quando por lá pesquisei.
O autor era professor na Faculdade de Ciências de Paris e o volume
estruturou-se em função dos “Programas oficiaes de 1866”.
As enciclopédias iluministas eram também lidas e apreciadas, bem como
anuários ou almanaques de divulgação científica e literária. Em Benguela, num
espólio de 1856 faz-se referência a um Manual
enciclopédico, sem qualquer outra menção. Talvez fosse o de Jos Vanderlepe
que, na terceira edição, espanhola, passava a ser José Vanderlepe (Vanderlepe,
1842) .
O espólio do naturalista José de Anchieta legou-nos também muitos
livros científicos, de que dei
conta na revista eletrónica Triplov (Soares) , pelo que não
vou repeti-los aqui. Nas notas do Anexo I
constam as informações bibliográficas recolhidas sobre esses títulos.
Finalmente, havia que mencionar vários livros práticos de artes
médicas, incluindo os Aforismos de
medicina do Barão de Castelo de Paiva, bem como O médico de casa e, de Jules Rengade, Os grandes males e os grandes remédios[1], encontrado no espólio de Serafim Pereira de Melo (m. 1899), que
residia provavelmente no “lugar de Calupálua”, Bailundo, onde faleceu. Eram
livros de divulgação, para que as pessoas cuidassem, por si próprias e tanto
quanto possível, da sua saúde, obras apropriadas a contextos como o do interior
angolano da época. O de Rengade foi
traduzido por “Médicos Cirurgiões da Capital”, assegurando uma cobertura
especializada sobre os conselhos práticos e as explicações do livro.
Estas artes eram praticadas com algum à vontade em Angola, quer pela escassez de médicos, quer pelo convívio com medicinas tradicionais. Infelizmente se confundia, como quase até hoje aconteceu, a vigilância necessária para evitar os embustes e a autêntica ditadura exercida pela medicina de preocupações científicas, positivistas, fisiologistas, etc.. Na zona de transição entre a medicina científica e a tradicional estavam por vezes padres, como atualmente acontece também. Eram pessoas com alguma formação e informação médicas e próximas das curas tradicionais. É sintomática disso tudo uma resolução em torno da notícia de que dá conta o n.º 10, de 7 de março de 1874 (p. 122), do Boletim oficial de Angola. É a de que Augusto Severino Freire de Figueiredo, “presbytero [...] residente na villa de Mossamedes, exerce ali a medecina, sem estar para esse fim habilitado, e vende medicamentos e remédios secretos de sua invenção e por elle aconselhados em um livro que publicou com o título de Manual de medicina eclética”. Infelizmente ainda não encontrei tal obra, mas tenho uma grande curiosidade em vê-la. A resolução, claro, visava impedir este tipo de práticas.
Na conciliação da ciência com a técnica e a prática surgiram muitas
obras e obrinhas de divulgação, apoio, extensão (sobretudo rural) em Angola nesse
tempo, como seria de esperar. É o caso do “Jardim das Plantas, Descrição dos
Mamíferos”, mencionado no espólio de Benguela de 1856, cujo autor (“Boilon”)
não consegui identificar e que pode referir-se ao famoso Jardim das Plantas de
Paris, fundado por Buffon, no qual havia também um zoológico. É também o caso
de A vida das flores (Karr, et al., 1883-1884) , obra mencionada num
espólio de Benguela de 1900. Ainda circularam por Angola títulos de Flammarion,
registados pelo menos no espólio do naturalista José de Anchieta: Les terres du ciel, merveilles celeste (1877[2]), Mondes habités, mondes
immaginaires (1865[3]). Apenas registo estas obras porque mais tarde, no princípio do século
XX, Augusto Bastos vai corrigir cálculos de Flammarion. Tendo Bastos vivido
quase sempre em Benguela (estudou poucos anos em Lisboa quando jovem) é natural
que tenha lido ainda algum desses livros de Flammarion – de resto popular
enquanto divulgador científico e também conhecido pelo seu espiritismo, aliado
à ciência, tendo mesmo sido escolhido para discursar no funeral de Alain Kardec.
Segundo alguns testemunhos pessoais, Augusto Bastos também se interessou,
principalmente no fim da vida, pelo espiritismo.
[1] Os grandes males e os grandes remédios: tratado completo das
doenças que flagelam o género humano com narração circumstanciada das suas
causas e symptomas, da alterações e lesões que ellas produze no organismo e dos
meios mais racionaes de as prevenir e combater. Tradução feita por Medicos
Cirurgiões da Capital. Lisboa: Empreza literária luso-brasileira, 1883. Pus em
nota de rodapé a referência completa por me parecer esclarecedora sobre o tipo
de livro.
[2] As terras do céo - viagens astronómicas aos outros mundos e
descripção das condições actuaes da vida nos diversos Planetas do Sistema Solar.
[3] A Wikipédia em português
coloca 1864. Para 1865 dão título diferente: Les mondes célestes.
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