Romantismo francês ...em Angola


O romantismo francês marcou bastante o pequeno meio literário angolense, como era de esperar (Figueiredo, 1924 p. 87) e desde logo pelas intertextualizações de José da Silva Maia Ferreira que Salvato Trigo referiu (Trigo, sd; Trigo, sd). Na margem do Atlântico em frente ao Brasil, em Benguela por exemplo, o ‘episódio’ Jocelyn constava do espólio de 1856, já várias vezes referido e cujo proprietário foi amigo do nosso poeta.

No entanto, apesar de citados e considerados grandes mestres, nomes como os de Victor Hugo e Lamartine não surgem nos anúncios do Diário de Pernambuco no Recife, no arco temporal que pesquisei. Lamartine, anunciado, entre outros, no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, em 1830 e com um título na Biblioteca Pública Estadual de Pernambuco, podia ser o autor implícito das “Meditações religiosas”, “em forma de discurso”, ou das “Meditações ou discursos religiosos para eclesiásticos”, aconselháveis para “a prédica”, anunciadas no Diário de Pernambuco em 1845; mas nunca se indica o seu nome. Deviam, na verdade, referir com o anúncio o livro do conselheiro José Joaquim Rodrigues de Bastos, cuja primeira edição veio a lume em 1842, apenas com treze capítulos, e a terceira em 1844 (Bastos, 1844), com 322 páginas.

Hugo é referido por Joaquim Nabuco a título de um dos seus poetas preferidos, por volta de 1865, a par de “Henrique Heine” (Nabuco, sd p. 3), referência comum no ultrarromantismo lusófono. Foi também lido Hugo (“muito”) por José de Alencar e Francisco Octaviano em São Paulo (Alencar, 1893 p. 12), como por Gonçalves Dias. O seu nome consta de um espólio de 1855 (de um comerciante já referido) em Benguela (com duas obras e três volumes) e integrou as bibliotecas de Luanda. Mas não surge nos anúncios do Diário de Pernambuco estudados por mim.

Isto mostra as limitações da pesquisa efetuada nesse jornal, apesar de se ter consultado a fonte mais constante de anúncios de livros nesta época em Pernambuco e suponho que em todo o “Atlântico tropical”, a par dos anúncios do Jornal do comércio do Rio de Janeiro. As datas de publicação das obras (embora títulos de V. Hugo viessem a lume sem data) possibilitavam a sua circulação por ali até 1847, inclusivamente. O divórcio entre o público em geral e as bibliotecas mais requintadas pode-se concluir que era também notório, sustentando os comentários sobre a necessidade de revermos as questões e as fontes com que estudamos o Romantismo (Abreu, 2003; Cunha, 1979 p. 46). Por outro lado as coincidências (que também são muitas) entre as nossas fontes e as intertextualizações poéticas dos autores, ou suas leituras confessas, implicam na releitura de como se implantou o Romantismo no Atlântico lusófono, revisão que venho fazendo desde o começo deste livro.


No sentido do Cristianismo e do Catolicismo, a francofonia legava-nos (entre outras) as obras de Chateaubriand e de Lamennais – ambas o revolucionando com o Romantismo.

Chateaubriand (1768-1848), ao publicar o Génie du christianisme (1802), precipitou a evolução da sensibilidade pré-romântica e romântica na França, segundo Pierre Reboul. Cedo foi apropriado em Portugal (Machado, 1986: 25), onde o seu cristianismo marcou decisivamente, entre outros, os líricos de O trovador (Braga, 1877 p. XIV), de que se encontrava próximo (formal e pessoalmente) Maia Ferreira. Também no Brasil abrasou leitores e escritores, bem como tradutores. José de Alencar, por exemplo, leu “muito de Chateaubriand” quando em São Paulo estudava Direito, tendo-o adotado como “modelo” para a “poesia americana” (Alencar, 1893 pp. 12, 20) – o que se nota em Iracema e O guarani, estabelecendo-se facilmente paralelos com Atala e René.

A Revista universal regista a saída, em França (Anónimo, 1841), das Obras completas: “única edição completa, augmentada com a traducção do Paraizo perdido, com o texto inglez, e o Ensaio sobre a literatura inglesa.” Mas, entre nós, a que mais circulou foi a de 1832 (Chateaubriand, 1832), tanto em Benguela quanto em Luanda. Nessa edição das Oeuvres, Atala, René e Le dernier abencerrage compunham juntos o vol. 10 (com os prefácios do autor). O Génie du Christianisme ocupava os volumes 14 e 15. Os mártires, cujo vol. I foi mencionado num espólio de 1856 (Benguela), ocupavam os volumes seguintes (16-17). Transcrevo a totalidade das obras incluídas na edição, conforme se vê no Internet Archive:
v.1-2. Essai historique sur les révolutions -- v.3. Mélanges historiques -- v.4-6. Études historiques -- v.7. Voyages -- v.8-9. Ininéraire de Paris a Jérusalem -- v.10. Atala. René. Le dernier abencerage. Poésies -- v.11-13. Génie du Christianisme -- v.14-15. Les martyrs -- v.16-17. Les Natchez -- v.18. Mélanges littéraires -- v.19-20. Mélanges politiques -- v.21. Opinions et discours -- v.22. Polémique
Na Biblioteca da antiga Câmara Municipal de Luanda vi mais obras suas datadas do século XIX. Por exemplo uma edição de Paris, da Flammarion, de Atala, René e Les aventures du dernier abencèrrage, de que saiu uma tradução brasileira (Chateaubriand, 1837), bem como as Poésies (em duas edições parisienses, uma de 1832 e outra, da Flammarion, sem data). O livro com as três novelas-poema apresenta, nas primeiras folhas, um carimbo (talvez mais recente que a edição), que assinala a pertença do exemplar ao “Capitão João Freire Monteiro Bandeira” (n. São Sebastião do Espinhal [Penela, Coimbra] a 2.12.1855). Há uma descrição sucinta dos seus traços físicos enquanto estudante e Cabo: 1,670 de altura, olhos pardos, cabelo castanho, “nariz grosso, boca regular, rosto comprido e cor natural” (o que seria nesse tempo uma cor artificial? Como se acreditava que Eva era branca, seriam os tons de pele não-brancos? Ou, parecendo ele um bocado moreno e tendo “nariz grosso”, seria o tom de pele marcada pelo sol o natural?). Além disso, deste Capitão só pude saber que foi fotografado em 1909, em Moçambique, com o estatuto de Tenente-Coronel reformado. Provavelmente vendeu este livro enquanto servia em Angola como Capitão e acabou passando o resto da vida “na África” oriental.

Por vezes Atala, com ou sem René, publicava-se em edições separadas. Atala foi traduzido e publicado no Brasil em 1810, comentado por Hipólito José da Costa em 1812 (ano em que também foi proibido pelos censores portugueses (Magalhães, 2016 pp. 108, 110)), anunciado nos jornais cariocas, pelo menos, entre 1819 (ano em que saiu uma edição na Bahia (Magalhães, 2016 p. 107)) e 1844 (Mançano, 2010 p. 277), traduzido em Portugal por Guilherme Braga, difundido largamente, visitando por igual as fontes angolanas (integrado nas Obras completas de 1832 – que, a partir de 1821, incluíam a novela Les Natchez; mas não só integrado nelas (v. anexo)). Entre as três novelas-poema foi, sem dúvida, a mais famosa.

Quanto a O último Abencerragem, conta-nos uma estória que se tornou popular no Romantismo e teve também edições separadas. A estória foi-nos recontada nos Cuentos de la Alhambra de Washington Irving (de que há uma edição espanhola de 1844, já traduzida do francês, tendo Irving chegado a Granada em 1829). A leitura desta obra calou tão fundo em Portugal e, parcialmente, na lusofonia, que virou uma expressão popular para indicar aqueles que defendem as causas perdidas, os últimos a defenderem o que já ninguém defende (Neves, sd p. 7).

Nestes mercados, Chateaubriand era citado com destaque entre Sain-Pierre, Fénelon, Voltaire, Sue, Balzac, Eça de Queirós, Dickens (“o ingrato Dickens”, como diz Maia Ferreira numa carta de 31.8.1854), Júlio Verne (um ano mais novo que Maia Ferreira). Era uma grande salganhada, mas refletia o mercado literário dominante até ao fim do século romântico.

Alexandre Herculano juntou muitos desses nomes também no mesmo saco, polemizando acerca da lei da propriedade literária, como se verá mais adiante. Chateaubriand, no entanto, era um escritor mais sério, mais profundo, menos industrial, que terá marcado o próprio Herculano, como se percebe lendo algumas das Lendas e narrativas. A sua obra funcionava no meio como elemento refreador dos extremismos liberais, republicanos e românticos e como um convite para a reflexão cultivada e irrigada pelo sentimento cristão devolvido à pureza original (ao que dela se imaginava então, muito por conta do próprio Chateaubriand). Por isso mesmo penetrava mais facilmente nas várias esferas sociais e, sobretudo, naquelas intelectualmente superiores, ou desenvolvidas, que tudo são eufemismos para designar os que tiveram oportunidade para aprofundar, diversificar e desenvolver leituras e pensamentos.

O Arcebispo de Paris, ao ser recebido na Academia Francesa, em Novembro de 1825, iniciou o seu discurso proclamando: “Salve! Ó Espírito ou Génio do Christianismo!”[1]. No n.º 22 da Gazeta de Lisboa, de 26 de janeiro de 1825, logo na primeira página, inicia-se a reprodução de um artigo de Chateaubriand, saído no L’Étoile a 1 de janeiro desse ano, contra os preconceitos revolucionários, os ataques à Igreja, a vergonha, que alguns crentes tinham, de se assumirem cristãos, etc. No n.º 50, de 28 de Fevereiro do mesmo ano (p. 101), noticia-se a publicação de um livro em França “que tem merecido grandes elogios” e que vem “precedido de uma Carta do Visconde de Chateaubriand, par de França”. Estes dados mostram que a elite oficial dominante em Lisboa, nos anos subsequentes ao primeiro afastamento de D. Miguel, assumia Chateaubriand por paradigma e, portanto, o que ele trazia de romântico e pós-revolucionário. Isto pode em parte explicar porque proliferavam anúncios e livros do autor e de outros afins com tanta facilidade. O mesmo vale para o Brasil e Angola, apesar das especificidades de cada um dos mercados.

Ao longo do século XIX o nome de Chateaubriand foi reavivado por artigos, biografias, traduções, versões e reedições. Cito dois exemplos menos conhecidos: o “semanário religioso” A cruz, dirigido por Camilo Castelo Branco e Augusto Soromenho, no seu vol. II (1860), publicou um «Esboço biographico do Visconde de Chateaubriand». O segundo exemplo é mais polémico: Teófilo Braga integra-o, com Lamartine, no grupo de escritores que, dentro do romantismo francês, acompanharam literariamente a “restauração” em França.

Esta era uma perspectiva comum no tempo, misturando política partidária, ideologia, reforma, revolução e literatura – que de facto se misturavam muito abertamente em várias obras dos mais variados autores, por exemplo Mendes Leal entre os portugueses. Mas Teófilo Braga vem a reduzir, por isso, o misticismo de Chateaubriand ao fortalecimento da “cultura clerical”, o que já não me parece justo. Reduz, também, a visão de Chateau­briand sobre o “ritual cavalheiresco da Idade Média” a uma “lisonja à aristocracia”. Adianta, nessa altura, que foi este o romantismo que entrou (tardiamente) em Portugal. Terá sido, mas o que diz de Chateaubriand não combina com algumas das referências dos parágrafos anteriores, nem com boa parte da sua obra.

O papel de Chateaubriand na lusofonia foi parcialmente assim, na medida em que dinamizou um romantismo cristão, muito popular entre leitores e escritores da época. Após a cerrada crítica anti-eclesial de pensadores do fim do século XVIII e a desastrosa sequência de golpes, repressões e condenações em que rapidamente se afundou a Revolução, depois o Império, vários intelectuais e poetas procuravam reabilitar o cristianismo e a monarquia a partir dos fundamentos esquecidos e corrompidos por séculos de prática de poder. Ao mesmo tempo, eliminavam definitivamente o paganismo serôdio, artificial, que infestava a lírica europeia do século XVIII e esse resultado (substituição do paganismo pelo cristianismo para efeitos estéticos) observa-se também na lírica de Maia Ferreira.

Um exemplo político muito lido e comentado na Europa foi o do Bispo de Nantes (Jean-Baptiste du Voisin), Defense de l’ordre social contre les principes de la révolution française (Du-voisin, 1798), publicado durante o seu exílio alemão. Mas o grupo de escritores e intelectuais que reagiram mal à Revolução e, sobretudo, ao Bonapartismo, também ele era diversificado, incluindo obras a defender posições diferentes umas das outras, como veremos estudando os respetivos autores (de Maistre, Lammenais, mesmo Lamartine). Vários destes escritores se desiludiram, como Chateaubriand, com a própria Restauração, mais ainda com o que logo se lhe seguiu. O autor de Os mártires protagonizava esse movimento, ao mesmo tempo em que praticamente inaugurava o romantismo francês com o desprezo que votava ao racionalismo iluminista, com as decepções e os desgostos que lhe trouxeram a Revolução e, depois, o Império, com a procura de uma poética nova, mais sensível aos afetos, à sugestão emotiva, do que à racionalização ou, pior ainda, mecanização dos recursos expressivos em função de valores externos à própria poesia. Nesse pequeno grupo ele foi dos mais coerentes com a defesa da liberdade e da representação, do que não desconfiamos quando lemos Teófilo Braga. Ele tenta, por via narrativa também, regressar ao cristianismo puro do começo da História da Igreja, bem como experimentá-lo em situações-limite, num quadro onde a natureza é rainha e o cristianismo – talvez por isso, ou por ser posto à prova em clima estranho, adverso parcialmente – o cristianismo retorna aos primórdios. Mas um estudo atento do romantismo lusófono em suas várias gerações demonstra-nos que a influência de Chateaubriand ia para além e ficava para aquém disso.

Para além disso por motivos e exemplos expostos antes e que irei revisitar. Para aquém porque o nosso romantismo (falo agora só do angolano, ou do angolense) não se volta para os primórdios do Cristianismo nem, tendo ao seu dispor motivos como o das Missões, não experimenta colocá-lo em situações-limite no mato, onde podíamos imaginar conversões exemplares e miraculosas como as que ficcionou Chateaubriand no Atala. Talvez a prática dos padres da época em Angola não suscitasse muitas inspirações místicas, não sei. Igualmente não vejo, nas nossas referências ao Cristianismo durante o século romântico, a tensão – ao mesmo tempo narrativa e espiritual – entre personagens de religiões opostas mas igualmente puras que, amando-se, ficam na situação de terem de converter-se à religião do outro para consumarem o seu amor.

Nas líricas dos angolenses e residentes encontramos mixagens, crioulizações, confrontos, com mesclas entre duas semiosferas, uma delas em geral escondida, pelo menos a princípio discreta. Mas isso não se lê nas nossas estórias assim. As nossas narrativas desse tempo, ou as que outros escreveram passando por cá, foram todas remetidas para o ambiente urbano, ou (muito raramente) para um ambiente rural; para um ambiente ‘assimilado’ à cultura de raiz europeia que se globalizava, ou para um ambiente rústico onde predominava o animismo. Juca, a Matumbolla passa-se por inteiro numa ambiência animista na Lunda; Scenas d’África passa-se entre Luanda e o resto do mundo, sem que as culturas animistas venham a ter um peso decisivo na intriga. Personagens de transição, como a Nga Mutúri de Alfredo Troni, são personagens sem escolha, no sentido em que se integram simplesmente no ‘novo mundo’ citadino, puxando mais tarde por algumas resiliências das tradições rurais no pouco espaço de manobra que lhes sobrava (recorde-se o que sofre a personagem por causa dos feitiços). Chateaubriand confronta esses dois mundos, descreve o choque entre as duas mentalidades, religiões e civilizações. E sublinha o problema religioso: apesar de ser o Cristianismo a religião do Amor, sem a conversão de ambos os amantes ao Cristianismo o Amor não se realizará. É o que sucede entre Atala e o seu par espiritual índio, Chacta, um não-convertido. Acontece também entre o Abencerragem muçulmano e a filha do principal inimigo do seu pai. Em Os mártires isso resulta no suicídio da filha do druida, sacerdotisa-virgem também, como em Atala resultou no suicídio da virgem cristã, mestiça de índio com europeu. Não temos disso entre nós, a nossa narrativa sempre ‘deu um jeito’… de parecer europeia, ou, se não, 'civilizada'.

A influência de Chateaubriand, para além da aura de liberdade e moderação, foi decisiva no estilo (a procura de um estilo ‘poético’ – na verdade emotivo e subjetivo – para narrativas em prosa; uma dicção elegante centrada nos afetos). Não devemos confundir, como fez Teófilo Braga, o seu retorno ao Cristianismo e ao realismo político com uma defesa da cultura clerical e dos privilégios anteriores à Revolução. Não foi isso o que ele fez e, por não ter feito isso, teve na época a traduzi-lo para português dois intelectuais críticos dos tradicionais regimes monárquicos europeus. De facto, podemos aquilatar a sua influência, também a ideológica, reparando nos tradutores mais conhecidos, em particular os dois principais da sua introdução na lusofonia.

Um dos tradutores brasileiros, o Dr. Caetano Lopes de Moura, foi muito respeitado e conhecido no seu tempo e liga-nos, quer à defesa da liberdade, quer até a inimigos de Chateaubriand, como Napoleão Bonaparte. Ele viu anunciadas outras traduções suas no Diário de Pernambuco (Os  puritanos da Escócia, Quintino Durward, O misantropo, Waverley, A  prisão de Edimburgo e O Talismã, de W. Scott; Os incas, de Marmontel, O último dos Mohicanos, de Fenimore Cooper e algumas mais). Uma sua edição de Os Lusíadas obteve publicação simultânea em Paris e no Rio de Janeiro (Camões, 1847). Lopes de Moura tinha, portanto, nome firmado no ambiente cultural brasileiro e contribuía para a introdução de referências do Romantismo (caso de Walter Scott), ou para a re-introdução de referências anteriores que iriam ter uma receção renovada ao longo do Romantismo (caso de Os Lusíadas e de Camões), bem como para a divulgação de obras relacionadas com mundos que eram exóticos para os europeus e familiares para alguns não-europeus (caso de Os incas e de O último dos Mohicanos). Chateaubriand concentra os três aspetos nas suas novelas-poemas.

Para além disso (e das traduções), Caetano Lopes de Moura coordenou, para a Aillaud, a nova edição do Castrioto lusitano ou história da guerra entre o Brazil e a Hollanda, de Rafael de Jesus, dedicada a D. Pedro II. Há, logo no título, uma curiosa nota de nacionalismo, que vale a pena referir. A guerra mencionada era vista já como entre o Brasil e a Holanda, marcando-se uma continuidade, simultaneamente, da colónia para a Nação e para a Dinastia que legitimou as duas em 1822. Lembremos que essa guerra foi, aparentemente ou oficialmente, entre portugueses e holandeses, quer pelo controlo de parte do Brasil (e sobretudo a zona de Recife-Olinda), quer até pelo controlo de Luanda (ou seja: da rota da escravatura desde Luanda até Nova Iorque, onde os holandeses também estavam instalados). Mas o título da obra põe os brasileiros e os holandeses como contendores, excluindo os portugueses dessa história. Assim funda o mesmo tipo de continuidade que funcionaria depois na passagem à República e que, justamente o veremos, aparece em Os mártires para ligar Gauleses, Francos e franceses – apesar de os gauleses combaterem (no livro) os francos ao lado do exército romano...

No mesmo sentido, o pesquisador angolano Adriano Parreira (v., por ex., a Breve cronologia da História de Angola (Parreira, 2003)) põe várias vezes entre aspas as palavras que referem os portugueses nos tempos coloniais mais recuados (sobretudo no século XVII). Na verdade, muitos deles não eram sequer nascidos em Portugal, muitos menos formados aí como homens e estavam profundamente envolvidos nas teias de interesses locais e do Atlântico lusófono (abaixo do Equador). Entretanto, o que se chamava de colónia agrupava mais pessoas nessas condições do que portugueses no sentido próprio, quero dizer: reinóis aqui chegados com a personalidade já formada. A colónia era também, como sucedeu no Brasil, uma teia que envolvia chefias locais e muitas das “guerras angolanas” explicam-se pelos jogos de interesses internos, em que o papel do exército colonial (ou do ‘governo de Luanda’, ou do ‘governo de Benguela’) era o de garantir o poder e a eficácia de mais uma rede de negócios, com a diferença de que estes usavam (ou tentavam usar) a figura do Rei português, colocando-se ao abrigo das suas armas, estando mais globalizados e por isso negociando no comércio transconti­nental, que tinha ali um pequeno dendrito (não chegava a ter ainda uma sinapse). O mesmo ponto de vista serve para fundamentar que foram os brasileiros quem lutou contra os holandeses, tal como os angolanos lutaram contra e a favor (d)os holandeses. Aliás, uma focagem completa e precisa diria que no Brasil aconteceu como em Angola: em função dos jogos de poder e dos interesses locais, havia brasileiros contra e a favor (d)os holandeses.

Estas caraterísticas foram possibilitadas pelo pouco poder e pela situação periférica dos próprios colonizadores, como perceberam José Carlos Venâncio e outros e, portanto, por colónias muito misturadas, ou difusas e muito deixadas ao seu próprio esforço de sobrevivência. Características notadas antes por Gilberto Freyre, quando foram notadas não serviam para legitimar nada, ao contrário do que dizem pessoas mal-intencionadas e mal informadas sobre os primórdios do lusotropicalismo, só mais tarde usado pelo regime colonial e com aparente concordância do sociólogo pernambucano. Mas, no tempo de D. Pedro II, Caetano Lopes de Moura e outros contribuíam assim, aproveitando-se de uma realidade mitificada, para legitimar a dinastia bragantina brasileira, legitimando a independência (também) por tal via. Um dos processos de legitimação, apesar da influência da maçonaria, passava pelo catolicismo e, cumulati­vamente nesse aspeto, as traduções de Chateaubriand eram oportunas – ele próprio, como referi, sugerindo incerta continuidade (antropofágica, veremos) entre gauleses e francos, como depois entre francos e franceses (de onde a estes vinha o nome). O papel estimulante de Chateaubriand era reforçado pelo seu lamento quanto à sorte dos índios e pelas críticas (nem sempre muito) veladas à atuação de franceses e de ingleses (ou norte-americanos) na América do Norte – o que faz mesmo em Atala e René. Um papel diferente, como se vê, do que lhe atribuía Teófilo Braga, menos sábio do que pensava de si próprio.

Por outro lado, ao tempo, Caetano Lopes de Moura ficou bem conhecido no Brasil e marcado pela sua biografia, de que os angolanos ouviriam também falar quando ali se deslocavam. Ele era de pele escura (negro, ou “mulato”) e, segundo alguns, filho de escravos, ou de um carpinteiro “de cor”: 
sou pardo, como foram meu pai e minha mãe; meu avô e avó foram também dessa cor entremeia, que alguns brancos desestimam por isso, que lhes traz à memória a de alguns antepassados.
É o que o próprio afirma na sua autobiografia. Nascera na Bahia,  qual se terá ligado, muito novo, a movimentos revolucionários (Inconfidência baiana). De lá partiu para Portugal para estudar Medicina, destino comum na época mas não tanto para um filho de carpinteiro ou, muito menos, de escravo. De Portugal saiu para França, ainda para estudar e onde se integrou, como "ajudante de cirurgião", no exército napoleónico (estudara Medicina em Rouen, mas não chegou a diplomar-se). Também na França foi preso político junto com Filinto Elíseo, Domingos Borges de Barros e outros (em 1808, após o início da invasão da Península Ibérica – a partir de 17.11.1807 – pelas tropas napoleónicas e quando o Rei português desembarcou em Salvador – em Janeiro de 1808). Alguns dos nobres portugueses de que tratou nessa altura, e outros que veio a conhecer entretanto, vieram a ajudá-lo (principalmente o conde de Linhares) quando, após as guerras napoleónicas, iniciou carreira de pesquisa e tradução (e de escrita) como autodidata - e antes de ser apoiado por D. Pedro II. Publicou sobretudo na Livraria Aillaud, onde se reuniam os lusógrafos parisienses. 

O perfil suportado por estes dados biográficos engrandecia-o. Junto com as traduções de vários livros de Walter Scott, Fenimore Cooper e Marmontel, a biografia contribuiu certamente para torná-lo muito popular entre românticos, bem como para a divulgação do Romantismo no Brasil a partir de uma geração anterior. Acabou "sócio-correspondente do IHGB e, por consequência, pensionista do Estado imperial brasileiro", bem como "cavaleiro da Ordem da Rosa" e "médico honorário da Imperial Câmara". Talvez por tudo isso tivessem marcado mais ali as suas traduções do que as de Filinto Elíseo, nome igualmente prestigiado na margem brasileira do Atlântico.

Chateaubriand mereceu, de facto, as atenções de um tradutor de maior peso ainda nas letras lusófonas: o próprio Filinto Elísio (que morreu em 1819). Mas Filinto não tem Os mártires de Chateaubriand (em verso) traduzidos nos anúncios do Recife-Olinda (apesar de Odorico Mendes o comentar), embora eu acredite que a sua tradução tivesse ido para Angola a partir de Lisboa, do Porto e, mesmo, do Recife ou do Rio de Janeiro. As suas Obras foram anunciadas nos periódicos do Rio de Janeiro e no Diário de Pernambuco, repetidamente, ao longo da primeira metade do século XIX. E, em Benguela, aparecem também num espólio de 1855. É, por isso, provável que a tradução de Os mártires andasse por aí. Mas o que nos interessa, de momento, é o perfil biográfico do tradutor.

Filinto Elísio, de origens modestas também (filho de um pescador e de uma peixeira), teve de fugir para França por o denunciarem à Inquisição, acusando-o de ler livros franceses proibidos (no caso, de racionalistas – esses que Chateaubriand desprezava). Ali conviveu com Lamartine (que se afastou da vida política com a queda de Carlos X), a quem ensinou português e a quem terá ajudado a traduzir, ou ler, Os Lusíadas. Outra sua tradução foi a das Fábulas de La Fontaine. Apesar de se ter ordenado padre, foi membro da Maçonaria e admirador confesso de Rousseau (mais um pensador do qual discordava Chateaubriand) e dos ideais da Revolução Francesa. Filinto Elíseo tem sido lido e apreciado até hoje, contando-se entre seus admiradores, no século XIX, Almeida Garrett e Olavo Bilac.

Em resumo, podemos dizer que os tradutores de Chateaubriand cujo nome chegou a Angola no princípio do Romantismo não seriam conotados com a defesa do ‘clericalismo’, pelo contrário. Por outro lado, reforçavam a passagem de testemunho dos neoclássicos e dos iluministas para a ‘revolução literária’, cultural e política seguinte.

Contradizendo as acusações de Teófilo Braga, Chateaubriand fez uma serena e clara defesa da liberdade possível e da harmonia social inspirada no Cristianismo, inclusivamente nos seus livros de ficção literária. As suas memórias confirmam largamente o que digo, mas Os mártires também. 

Quanto à harmonia social, em Os mártires, na descrição da vida na propriedade do converso Lasthénès (Livro II), chega a lembrar as utopias de um cristianismo coletivista, quase socialista, que (já revoltado contra a deturpação do cristianismo pela nobreza germânica e inflamado pela pregação de Thomas Müntzer) incendiou os camponeses alemães no princípio do século XVI (1524-1525). Mas Os mártires refere-se a uma época anterior e nele, como veremos a seguir, a descrição da monarquia dos Francos é uma espécie de legitimação, por idealização, de um regime monárquico para França.

Quanto à defesa da liberdade, no tomo XXI das Oeuvres complètes, intitulado Opinions et discours, são vários os textos em que a retoma. Esse volume, como um de Polémicas, encontrei-os na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda; as Mélanges politiques as encontrei referidas num espólio de Benguela de 1883. O conjunto das suas obras mais diretamente políticas estava, portanto, em Angola no século XIX. Daí a importância de as considerarmos e elas nos revelam uma intransigente defesa da liberdade nos mais vairados contextos.

Ele retoma-a com um sentido de realidade apurado: “a censura estabelecida sobre os jornais não acrescenta nenhum poder real ao Governo”. O mesmo é dizer que, mesmo não defendendo princípios que nos levem a promover a liberdade, não vale a pena arcar com os custos políticos do seu fim, porque essa abolição não nos traz mais poder. Chama-se hoje a isto pragmatismo político.

Mas não se trata apenas de pragmatismo político. Em Les martyrs, o reino dos Francos é-nos apresentado como uma monarquia democrática: o chefe é escolhido entre os das diversas tribos, os assuntos mais importantes são debatidos numa reunião anual, ambos os processos em completa liberdade. Uma monarquia democrática e quase socialista, pois a propriedade se apresenta como coletiva num sentido próprio, sem dúvida (muito explorado pelos marxistas em Angola no século XX): a distribuição do seu usufruto cabe ao Rei, sendo ele - usufruto - anual (após a colheita haverá nova distribuição, feita novamente pelo chefe, no qual a coletividade se representa). Os costumes são simples e os alimentos partilhados com os escravos, como nas terras do pai de Eudoro (o protagonista do romance) acontece entre os senhores e os ex-escravos, agora trabalhadores do bem-comum. Estamos, portanto, longe da mera defesa dos interesses clericais e dos velhos senhores feudais. Antes estamos próximos de uma procura de equilíbrio entre moralidade e liberdade – que me parece um dos fundamentos das suas posições políticas.

Esse mesmo equilíbrio, com a sensatez que o define, se mostra nos Pensamentos, reflexões e máximas que nos legou. Há exemplos estoicos, mas muito modernos também: “a miséria do homem não consiste somente na falibilidade da razão, na inquietude do seu espírito, no turvo do seu coração; ela vê-se ainda num certo fundo ridículo dos assuntos [ou negócios] humanos”. Nota-se aqui o espiritualismo, o recuo da razão referido por Villemain, mas igualmente o desdém, não só metafísico, pelos “assuntos humanos” – que se calhar o autor não desprezou tanto ao longo da vida. A falibilidade da razão é dos motivos principais para defendermos a liberdade de pensamento e de expressão, não nos permitindo absolutizar conclusões e propostas políticas e ideológicas, pois ela nos lembra o quanto falhamos. O que não significava desprezo pelo discurso racional. Achava Chateaubriand que a liberdade se atingia “por dois caminhos: pelos costumes e pelas luzes”. Defendia que, sem ser por esses dois caminhos, a liberdade que se atingisse não seria durável. Portanto reagia com desagrado aos “carateres exaltados das pessoas vulgares”, que achava “insuportáveis”. Seriam como o poeta expulso da República platónica: “unidos a uma boa alma ou a um bom génio, eles arrastam tudo. Estes carateres não querem seduzir, e eles seduzem; eles ignoram a sua força, e ficam muito admirados por terem feito tanto [homem] feliz ou tantas vítimas”. Há aqui, mais do que a repulsa pelos entusiasmos da multidão, a repulsa da entrega total às paixões, que arrastam e arrasam e que muitos românticos pensaram defini-los. Lembra-nos o autor, por exemplo, que as pessoas que se amam juram ficar juntas para sempre mas, no decorrer dos dias, caminham com velocidades diferentes e por isso se afastam, mesmo quando não querem reconhecê-lo. São elegantes e prudentes baldes de água fria no tumultuar das paixões exacerbadas. Isso não quer dizer que Chateaubriand pregue uma constância absoluta, “inalterável”, pretensão estranha quando “a natureza muda” constantemente à nossa volta. Nessa mudança, o tempo que vai da vida à morte não passa de um minuto e a única possível constância é a da beleza da alma. “Precisamos de segredos para reparar a beleza do corpo: eles não fazem falta para manter a da alma”. Como único valor seguro nos fica, portanto, o principal valor estético: o da Beleza espiritual. Todos os outros não podem ser acatados de forma a porem em causa a nossa liberdade.

O Ensaio sobre as revoluções, de 1797, define bem a sua posição política, também ela diferenciada face a Castilho, Herculano, ou Garrett - e face a muitos contemporâneos. Ele reconhece os erros do antigo regime e da frívola corte em que se consumia, mas também os exageros da Revolução e, sobretudo, não acredita no progresso. Considera que a História se repete constantemente e, portanto, não há evolução. Este é o aspeto reacionário do seu pensamento, a que se refere Villemain quando o comenta. Sendo, no entanto, reacionário, não é também neoclássico, enciclopédico, nem iluminista, enfim, próprio do fim do século XVIII em França, apesar das influências de filósofos e pensadores da época. Villemain viu bem quando percebeu que esta reação só era possível depois da Revolução. Ainda assim, ela não conduz à defesa do liberalismo (ao qual falta o sentido social cristão), ou de revoluções aparentemente libertárias. Ele foi liberal, como diz Edmond Biré (Chateaubriand, 1904 p. 55), mas um liberal muito próprio. Nisso, Chateaubriand está mais próximo de algumas posições do instável e polémico José Agostinho de Macedo e, quiçá, do primeiro Castilho. Muitos dos seus leitores estavam também. Depois dos exageros da Revolução, que lhe destruíram a vida e assassinaram um irmão, Chateaubriand, defensor da liberdade de imprensa, compreende igualmente a necessidade da monarquia e de uma democracia elitista – não no sentido económico, mas da subordinação das decisões políticas à sensatez, à razão dos sábios, à experiência refreando movimentações e afetos das multidões enfurecidas e de seus manipuladores.

Das Oeuvres completes de 1832 ainda li, na Biblioteca do Governo Provincial, o tomo XXII, dedicado às polémicas. O prefácio é de 1827 e do próprio Chateaubriand. O exemplar tem, como o anterior, carimbos da “Biblioteca Municipal de Loanda”, mas não há mais informação para a sua história particular. 

Em muitas das polémicas se trata da mesma defesa da liberdade, que muitos dos nossos jornalistas desse tempo também partilharam. Biré considerou que ele foi o maior polemista da sua época em França. Elogia-lhe a “solidez da dialética”, a “trama cerrada do raciocínio”, bem como uma propriedade que vamos encontrar nos nossos polemistas em geral: a “propriedade de termos exatos e fortes” (Chateaubriand, 1904 p. 56). A última caraterística terá levado Biré a considerar tão “ardentes” as suas polémicas e, mais uma vez, temos isso em comum com ele. É, portanto, de suspeitar que Chateaubriand tenha contribuído para apurar e acirrar a feroz veia polemística do jornalismo angolense do século XIX.


Em termos especificamente artísticos e particularmente literários, excetuadas as polémicas, a obra de Chateaubriand refreava os entusiasmos ‘geniais’, estabelecendo pontes oportunas entre as correntes anteriores e as posteriores, como por exemplo misturando a elegância e clareza dos clássicos e neoclássicos à sensibilidade romântica, ou requalificando a noção de génio para evitar que ela perdesse o sentido mais profundo.

As suas imagens são, por isso, a um tempo criativas, sensíveis, emotivas, classicizantes, sugestivas e claras. As estruturas com que joga nas novelas-poemas reúnem as das novelas (então muito em voga) às das apologias e às primeiras teorizações acerca de ‘poemas em prosa’, ou prosas líricas. Não se firma sobre planos de obra muito detalhados, antes fluídos, sustentados embora por uma sequência geral organizada claramente em função do efeito moral e estético a tirar da intriga. A linguagem resulta clara mas afetiva, compondo sugestões e descrições exuberantes e delicadas, ao mesmo tempo que objetivas e realistas. Há, aí, uma rara síntese, uma espécie de novo classicismo, romântico já. Com ele, o que está presente e se propaga para os outros é esse tipo de romantismo luminoso, insinuante e suave, tutelado religio­samente pela tradição e pela revelação cristãs e literariamente pelo sentido de equilíbrio e de harmonia entre a sensibilidade e a razão. Talvez o seu paralelo na música tenha sido John Field, mas parece-me surgido mais tarde, com os Nocturnos de Chopin e, sobretudo, as séries Anées de pèlerinage e Consolations de Liszt, seu leitor entusiasmado (Walker, 1988 pp. 138, 173-174; Pesce, 2014 pp. 122-124) que lhe dedicou a canção Air de Chateaubriand. No entanto, o fatalismo e a densidade emotiva com que várias personagens vivem o Amor, por exemplo, rompem de quando em quando, abruptamente, esse equilíbrio (como na música) – sustentando por vezes desenlaces trágicos. Apesar das críticas que lhe votaram vários dos maiores nomes do fim do século XVIII e princípios do seguinte, na própria França (Voltaire, Villemain e outros), ele traçou uma ponte real e sublime entre o momento anterior e o que se ia seguir. O terem-no visto muito perto, neste caso, não foi bom…

Para ajuizar acerca da influência estética de Chateaubriand também li, na edição das Obras de 1832, o volume de máximas e poesias. Quanto a estas, incluem-se as traduções de Dargo, Duthona e Gaul, “produções ossiânicas de John Smith” segundo as palavras do autor no prefácio. As traduções são na verdade versões, pois o poeta confessa: “fiz desaparecer as repetições e as obscuridades do texto inglês”. E justifica: “estes cantos que saem uns dos outros, estas histórias que se colocam como parêntesis nas histórias, estas lacunas supostas de um manuscrito inventado podem ter o seu mérito nos nossos vizinhos, mas nós queremos em França[2] coisas que se concebem bem e que se enunciam claramente [quem diria: o Génie du Christianisme foi acusado, precisamente, de não ter um plano de obra bem concebido]. A nossa língua tem horror ao que é confuso, o nosso espírito repele o que ele não compreende à partida [que diriam disto os surrealistas franceses?]. Quanto a mim, eu o confesso, o vago e o tenebroso me são antipáticos: um nominativo que se perde, os relativos que se atravancam, as anfibologias que se formam, me desolam”.

Nota-se aqui o rigor clássico de Chateaubriand, que traduziu quando jovem a Odisseia e a Cyropédia (Chateaubriand, 1904 p. 187). Há nele, sem dúvida, uma partilha do que Villemain chamaria “a razão moderna”, mas, ao mesmo tempo, mantém-se fiel ao que de melhor a razão antiga lhe traz: uma oratória rigorosa, uma retórica segura gramaticalmente e clara, que faz lembrar a de Alexandre Herculano em Portugal (esta, porém, mais austera, menos sensível). O estilo que defende aqui é seguramente menos simpático aos românticos exaltados do que as “produções ossiânicas” de Smith, incluindo na assunção de caraterísticas gramaticais (a colocação do nominativo, dos relativos) que viriam a horrorizar a vulgata romântica nos países lusófonos, que se encheu de ambiguidades e ambivalências, perdeu nominativos galhardamente e enrolava relativos com a mesma indiferença com que a chuva apagava os caricôcos[3] do século XX. No entanto, Villemain observava bem isso, Chateaubriand escreveu de olhos postos no futuro, olhos que souberam ver no passado o futuro, e por tal motivo é que se entusiasmou com a literatura ossiânica, apreciando-lhe a voz “monótona é verdade, mas doce e queixosa”.

O levantamento da ambivalência (não confundir com ambiguidade) estilística e estética de Chateaubriand amplia-se numa Carta sobre a arte do desenho nas paisagens (Lettre sur l’art du dessin dans les paysages), escrita em Londres em 1795, pouco depois das viagens pela América do Norte. Como vamos ver agora, não é à-toa que traduzo literalmente “nas paisagens”, quando o português corrente pediria “das paisagens”. O que me levou a isso foi, não tanto o francês (“dans les”, que literalmente equivale a “nas”), mas o que tem de romântica a visão do autor sobre o retrato e o desenho de paisagem.

Para Chateaubriand, como para Villemain e Victor Hugo, a passagem por Inglaterra foi decisiva. Ele esteve lá como exilado, ali conheceu a literatura inglesa melhor, ao ponto de nos legar uma obra sobre ela e especialmente sobre Milton, de quem traduz o Paraíso perdido, que também aparece entre os livros da Biblioteca do Governo Provincial de Luanda. Ali realizou as traduções inseridas neste livro e cuja introdução acabei de comentar. Ali realizou, creio, o desenho que a carta vai acompanhar, pois o grande escritor também desenhava e, por tanto, na corrente contrária à da romântica associação entre música e poesia se inscreve esta carta. Porém…

O conhecimento pessoal da América do Norte cimentou nele a consciência da importância do “novo mundo”, ao qual dedicou Atala e René, obras com significado muito particular entre nós e para a consecução das quais concorreu a sua viagem ao continente (norte)americano. A paisagem que envia, creio ser do Canadá. Na carta explica-se rejeitando modelos, dizendo que seguiu somente as suas próprias ideias. Numa passagem, que me fez lembrar Castilho e Buffon, diz que ama a natureza, gosta de a ver e a desenhar sem seguir os ditames dos professores de desenho. Defende que devemos estudar os objetos, os elementos naturais, ao vivo, em si, no seu ambiente, não sendo necessariamente boa a regra do traço útil, nem sendo louvável forçar ou aclarar as sombras. Defende, com um realismo que nos confunde se pensamos no Romantismo, que devemos imitar as coisas tal qual as vemos, estudando a natureza, indo ao campo e (aqui vem a componente romântica) recordando sons, ruídos, jogos de luz e sombras e cores, movimentos, que a memória levou para o nosso atelier saudosamente. Como Hegel, acha que “o pintor [em Hegel o poeta] que representa a natureza humana”, portanto o retratista, “deve ocupar-se do estudo das paixões: “se não se conhece o coração do homem, conhecer-se-á mal o seu rosto”. Conclui daí, com brilhantismo, que a “paisagem tem a sua parte moral e intelectual como o retrato”. De onde que ela deva ser desenhada experimentando nós interiormente os sonhos ou devaneios e sentimentos provocados quando a vimos e a revemos (isto sim, é romântico). Não porque a nossa imaginação seja “mais fecunda e mais rica do que a natureza”, mas porque traz até nós o seu espírito. Há sem dúvida aqui um romantismo equilibrado pela herança clássica e neoclássica. A visão exterior é dada pela interior, mas a interior é induzida pela exterior e a essa chega-se pela observação rigorosa, objetiva, não-projetiva, das formas. Assim, a arte nunca abandona a vida nem deixa de ser autêntica e pessoal.

Em seguida, no mesmo volume, aparecem as Poésies, que também se encontram (numa edição em separado e nas Oeuvres) na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda. No prefácio que lhes faz afirma, humildemente, não ser grande poeta: 
os grandes poetas foram frequentemente grandes escritores em prosa; quem pode o mais pode o menos: mas os bons escritores em prosa foram quase sempre maus poetas. 
Recorreu ao tópico, ainda mais envelhecido ao longo do Romantismo (e usado pelo nosso Maia Ferreira), que é o dos pecadilhos poéticos da juventude, escrevendo muito poucos poemas ao longo da vida após essa ingénua idade. Na verdade, como Villemain observou, ele tratou a prosa de maneira tão poética e original que podemos dizer que a reinventou liricamente e subjetivamente (mas com aquela subjetividade acordada à observação rigorosa de que fala na pintura). Encontrou nela o seu caminho e um caminho livre de peias métricas ou estróficas, portanto uma espécie de caminho que era procurada pelos românticos e já desde o chamado «Sturm und drang» alemão. Por isso tudo foi na prosa um grande escritor e não na poesia lírica em verso.

Diz, dos poemas de juventude, que “todos eles sem exceção foram inspirados pelo amor dos campos”. É mais um traço a reuni-lo a Castilho e aos autores alemães por Castilho citados. Em nome do amor à natureza decidiu o poeta chamar «Tableaux de nature» a esse conjunto literário. Diz, repisando mais um tópico romântico, não ter mexido “nada ou quase nada”, pois “compostos numa época em que Dorat tinha estragado com mimos o gosto dos jovens poetas, eles [os versos] não tinham nada de amaneirado, ainda que a língua fosse aí fortemente invertida algumas vezes”. Confirmando o que disse quanto à sua preocupação com as prisões da métrica e do ritmo versicular, previamente fixados, Chateaubriand garante que os versos foram “cortados com uma liberdade de cesura que quase não se permitia então” (mais um traço romântico). Por seu turno “as rimas são cuidadas, os metros variados, ainda que tendentes a formar-se em dez sílabas”. Finalmente, a frase mais importante: “encontra-se nesses ensaios da minha musa o que eu transportei depois para as minhas prosas”. Digo “mais importante” porque nos mostra essa frase que a sua poesia inicial explorava já caminhos que veio a desenvolver na prosa e, por isso, como pelas caraterísticas que nos dá dos seus próprios versos, é-se levado a pensar que a liberdade formal a que aspirou era o sinal da inclinação para o mais variável e volúvel ritmo da oratória ou da fala. Alguns dos poemas saíram, segundo o autor, no Almanach das musas (onde começou a vida literária) e nos Annales romantiques um, de 1829. Se o primeiro título era ainda ambíguo, o segundo (completado com o subtítulo: "recueil de morceaux choisis de littérature contemporaine") não deixa dúvidas acerca da relação de Chateaubriand com o Romantismo, que praticamente inaugurou em França. Qualquer dos dois, por seu turno, indicava aos nossos versejadores o caminho dos almanaques como digno dos maiores poetas. Um caminho que seguiram…

Seguem-se a estes os «Poèmes divers» e a tragédia, em verso, Moisés (observe-se a escolha da temática – personalizada – e da personagem). No prefácio à tragédia realça aspetos técnicos depois de resumir a distribuição do conteúdo (“o lugar da cena é fixado desde os primeiros versos”; “a exposição vem logo em seguida”). Como ele próprio diz: “enfim, é uma obra estritamente clássica”. Ela devia integrar, no entanto, uma trilogia em que detinha o papel intermédio, acompanhando-se de uma peça ainda mais estritamente clássica (“sobre um assunto antigo, no sistema completo da tragédia clássica”) e de uma “romântica”, tendo por herói São Luís. Em Moisés terá trabalhado 20 anos, revendo e modifi­cando muitas vezes a peça. Talvez por isso também ela não seja tão “estri­tamente clássica”, pois ele próprio diz que Moisés, quer pela estrutura, quer pelos cenários, pela movimentação no palco, pelos coros, tem um dinamismo “que faz muita falta, convenhamos, à tragédia clássica”. O movimento surge talvez por exigência do público: “o público não quer mais que violentas emoções, que reviravoltas de unidades, mudanças de lugares, compressões de anos, surpresas, efeitos inesperados, golpes de teatro e de punhal”. Nota curiosa, que não o aproxima do classicismo grego, acha que os coros devem ser declamados e não cantados, sustentados somente “por uma espécie de melopeia”. Em suma, esta peça, como várias outras, parece denunciar a postura transitiva do autor entre o Classicismo e o Romantismo, procurando-se uma vivacidade romântica numa estrutura mais clássica, embora adaptada aos novos tempos. Talvez a mesma luta tenha sido a de Garrett no que diz respeito ao género dramático e a de Castilho no que diz respeito ao verso lírico.


Quanto às obras famosas, O génio do cristianismo (“ou belezas da religião cristã”) foi sem dúvida a mais popular, o que também se percebe no corpus estudado. Isoladamente, ele é mencionado num anúncio de 8.3.1837 no Recife e num espólio benguelense de 1883, bem como ainda existe um exemplar na Biblioteca da antiga Câmara Municipal de Luanda. É, pelo menos para a época, o grande livro de Chateaubriand. Já transcrevi, em boa parte, o que dele diz o grande crítico e retórico francês Villemain. O golpe de génio está em ter percebido o autor a profundidade da revolução cristã e como ela estava prenhe daquele futuro que então se começava a desenhar. É daí que deriva, aliás, um dos pontos de interesse, para o nosso meio novecentista, das novelas-poema Atala, René e O último Abencerragem. Por outro lado, como a Igreja o apadrinhava e, simultaneamente, ele representava a defesa da liberdade de imprensa, tornava-se uma referência consensual aos ‘nativos’ reclamando seus direitos e aos padres representando o conservadorismo de Roma, ou simplesmente vindos da Europa.

O pendor místico de Chateaubriand reaparece constantemente, não só no Génie. Em particular dá nota disso o Itinerário de Paris a Jerusalém e de Jersusalém a Paris, indo pela Grécia e voltando pelo Egito, a Berbéria e a Espanha. Na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda encontram-se pelo menos dois exemplares desta obra. O mais recente é o volume IX das Oeuvres complètes saídas em 1832; o mais antigo é já o tomo III da 3.ª ed., saído em Paris vinte anos antes.

Há no Génie, como no Itinerário, uma fé ardente e vibrante que se comunicou a muitos leitores no século XIX, quando os avanços da Ciência, da Maçonaria e do Ateísmo pareciam decretar o fim de uma Igreja anquilosada e falsificada por muitos dos seus membros, reduzindo o pensamento cristão à mecânica de preceitos coligados em sistema automático de articulações. As considerações que ali tece sobre as catedrais góticas e a Idade Média europeia contribuíram decisivamente para a fascinação romântica por essa época. Foi significativa, por igual, a visão harmoniosa da natureza, que viria já de muito antes e que se nota, embora raramente, em Cordeiro da Mata. Acima de tudo perpassa ao longo das várias partes do livro uma legitimação estética do Cristianismo, a religião do Amor, que nos mostrou que a vida é profundamente bela. Quatro títulos estão especialmente orientados para representar esta religião do Amor, ou no Amor, ou simplesmente para a relação entre os conceitos de Amor e o de Religião. São eles Atala, René, O último Abencerragem e Os mártires.  

Atala e René (René era um dos nomes do autor), duas narrativas que se complementam, assinalam a presença da ficção amorosa e exótica de Chateaubriand em Angola. É de notar que estas duas narrativas, inicialmente, fariam parte do plano de obra do Génie du christianisme. Elas, de facto, são também uma apologia do Cristianismo (e, subtilmente, uma re-definição do mesmo reaproximando-o da pureza original). Na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda figuram três edições, entre as quais o tomo X das Oeuvres completes de 1832 (Paris), outra de Paris e uma terceira, belga, de 1836. Como já disse, no mesmo tomo X aparece também a novela (assim qualifico os três títulos, em função da sua estrutura e do seu assunto) O último Abencerragem.

As três narrativas abordam um tema e tópicos característicos já do Romantismo: a força irresistível do Amor, o choque do Amor com uma visão militante da religião e da identidade (ou seja: com tradições militarizadas e policiadas), a morte em função desse choque, a luta das nações antigas pela sua liberdade (face ao colonialismo), a pureza e grandeza das tradições antigas. Mas há um tópico, chamemos-lhe assim, que se intensificou durante o Romantismo e se vem desenvolvendo até hoje. É o do encontro ou choque de culturas e o posicionamento do autor perante ele foi sem dúvida importante para nós.

No desenrolar do primeiro e do último dos títulos, o Amor se manifesta concentrado na relação entre um jovem e uma jovem. Nos três ele manifesta-se e desenvolve-se numa psicologia de fronteira: René é-nos dado como um europeu que decidiu viver entre os Natchez e foi apadrinhado por Chacta, o noivo eterno de Atala; Chacta era um índio que parcialmente se criara entre espanhóis-mexicanos, que terá mesmo passado pela Europa e que regressou (por duas vezes) aos seus; o último Abencerragem é o filho de nobres famílias de al-Andaluz que decide regressar encoberto a Granada, já espanhola e católica, onde se apaixona pela filha do grande inimigo (cristão) de seu pai, que também se apaixona por ele – ambos inocentes. Temos então, com Atala, quatro protagonistas que são personalidades formando-se ou reformando-se em constante processo de fronteira e entre choques fronteiriços. Mesmo não renegando antigas tradições ou religiões (a de Alá, a dos Natchez, a Cristã), eles apercebem-se da relatividade delas e sofrem a tortura psicológica provocada pela visão militante dessas tradições (e genealogias).

As três narrativas são, simultaneamente, um estudo psicológico dos processos pessoais de crioulização, de personalidades em fronteira e transfronteiriças, o que para nós em Angola tinha uma pertinência aguçada pela própria circunstância cultural e psicológica dos habitantes das pequenas urbes coloniais e suas adjacências. Os Natchez, ali, eram adjacências, destruídos que foram por outras nações índias e pela colonização; os mouros de Granada igualmente, escorraçados que foram por um cristianismo de cruz em ponta de espada. Por outro lado, nas nossas adjacências havia processos de crioulização também, não só com fragmentos culturais de genealogia europeia ou global, mas também com estruturas culturais divergentes entre nações bantu e, apesar dos preconceitos, entre bantos e pré-bantos, proto-bantos ou, simplesmente, não-bantu. Mas concentro-me nas pequenas urbes coloniais e suas adjacências, porque nas pequenas cidades é que havia circulação de livros, um mercado livreiro – ainda que incipiente – e escritores, ou seja, poetas através da escrita. Um que outro livro circularam pelo interior, mas em Luanda e Benguela é que residia a maioria esmagadora dos leitores e das leitoras. Ali também, pelo mesmo motivo, se escreviam e publicavam as primeiras obras da nossa literatura, que não surgiram nas Missões, como sucedeu em muitos países africanos ao sul do Saara (por exemplo na África do Sul).

Ainda neste aspeto, o próprio autor assume, no prefácio à primeira edição de Atala (Chateaubriand, 1863), que a personalidade de Chactas estava mesclada de cultura europeia e que isso lhe facilitou o trabalho. Chateaubriand escreve textualmente:
Ele é um selvagem mais do que meio civilizado [ou: mais do que metade civilizado; ou seja: mais de metade dele não era já “selvagem”], […] ele conhece não só as vivas, mas também as línguas mortas da Europa. Ele pode portanto exprimir-se a si mesmo num estilo misto […] entre sociedade e natureza[4]. Esta circunstância trouxe-me algumas vantagens, permitindo Chactas falar como selvagem na descrição das maneiras, e como europeu nas partes dramáticas da narrativa. Sem isto o trabalho tinha de ser abandonado. Se eu tivesse usado sempre o estilo Índio, Atala seria hebreu para o leitor”[5]
É neste lugar intermédio do protagonista que Chateaubriand funda as três estórias, fazendo-nos compreender melhor as tradições diversas e perceber a relatividade das atitudes, bem como a universalidade das virtudes (uma tese cristã). Assim sendo, os recados com que nos deparamos dentro da narração disparam em duas direções: a europeia e a indígena. Quando o chefe (e padrasto de Atala) tem de resolver se mata ou não Chacta, reúne um Conselho de mais velhos e nobres que tomará a decisão final. O episódio pode funcionar como um sinal para dentro das tradições ‘selvagens’, lembrando-lhes que elas também são democráticas apesar de cruéis, mas, sendo o leitor previsível europeu, serve muito mais como recado para este, indicando-lhe um tipo de assembleia e democracia que talvez tivesse existido na antiga Grécia (e, segundo o autor, entre os Francos) e que, por isso, não só era universal como também aconselhável para a França pós-revolucionária – da qual se não esperava crueldade, mas misericórdia cristã. Uma democracia elitista como as tradicionais (conselho de nobres e mais velhos), penso que por cautela de quem perdeu parte da família com a Revolução Francesa, mantinha-se o padrão político do autor. Para nós, porém, colocados na fronteira entre a cultura globalizada de raiz europeia e as oralidades locais, servia duplamente no sentido de incentivar a luta pela democracia na colónia e de justificar que também os nossos ‘selvagens’ (muitos deles parentes) tinham instituições democráticas, na medida em que, também entre nós, havia junção do poder sagrado e perene do soberano com a influência (por vezes decisiva) de Conselhos de nobres e mais velhos, que deviam conversar e ser ouvidos.

A situação intermédia que estas narrativas exploram toma corpo ainda na própria construção destas narrativas mistas, entre culturas, entre géneros e entre estruturas (o que veio caracterizar muito do Romantismo, movimento que se globaliza por cidades-porto com ligações cada vez mais rápidas e diversificadas). Chateaubriand assume isso no mesmo prefácio:
Não há aventura em Atala [ao ler vemos que há, sim, bem trabalhada, com momentos de suspense muito bem preparados e explorados]. Ele é uma espécie de poema[6], meio descritivo, meio dramático. […/…] Eu empenhei-me em dar a este trabalho as mais antigas formas. Ele é dividido em Prólogo, Recital e Epílogo. As principais partes da estória têm denominações [próprias], como «Os Caçadores», «Os Obreiros», etc.; e foi assim que, nas primeiras idades da Grécia, os rapsodos cantaram, sob diferentes títulos, fragmentos da Ilíada e da Odisseia.
A estória que nos conta é grandemente ‘verdadeira’, mas ele formata-a de acordo com modelos da mais antiga Grécia, talvez porque os pensasse mais próximos da tradição dos Natchez, talvez porque o projeto começou por ser o de um poema épico (O Homem da Natureza) e acabou encontrando a natureza do Homem, talvez porque se tentava conseguir estruturas universais. O realismo do autor, apesar da aproximação às oralidades, o levou a tomar consciência da necessidade de visitar “as tribos que eu desejava descrever.” Os episódios ouvidos localmente, as personagens de que ouvira falar ali, onde a narrativa se passa, lhe deram, porém, não só coloração própria, mas modelos de aproximação e provas de universalidade de valores, sintaxes narrativas e afetos literários.

O subtítulo de Atala é: ou os amores de dois selvagens no deserto, incluído na capa da tradução anónima de 1819, que no Catálogo Bertrand aparece sem indicação de local (Viuva Bertrand & Filhos, 1846 p. 2). O exótico, mais uma vez, era americano (já o tinha sido no Cândido de Voltaire e mais tarde foi para Garrett, que chorou aos 17 anos, segundo ele próprio, ao ler esta obra, tanto quanto Liszt ao se lembrar de René). A ação decorre entre os índios da Louisiana. O autor assume, no prefácio à primeira edição, que ele procurou um motivo conhecido por todos para associá-lo com a vida selvagem, vista na sua pureza e na sua grandeza moral. O motivo que tomou foi o do “massacre dos Nachez na Luisiana, em 1727”.

Um velho e sábio índio da tribo dos Natchez conta a René, com quem criara amizade na caça ao castor e que apadrinhara entre a sua gente, uma estória de quando era moço: aos 20 anos foi feito prisioneiro por uma tribo inimiga e uma jovem índia, cristianizada, salvou-o. O nome dela era Atala e é talvez coincidência que tenha uma contrastante ressonância ‘bárbara’, lembrando Átila, rei dos Hunos (os Hiong-nu, originários da estepe chinesa, que fizeram primeiro um Império no Turquestão mas foram destruídos e atacaram a Europa com uma ferocidade famosa até hoje). Ao longo da narrativa iremos descobrindo, com Chacta, que Atala era mestiça, cristianizada, filha do espanhol-crioulo com quem Chacta passara a infância (Lopez) e da mulher do chefe que o prendera e se preparava para matar o protagonista. Depois de uma longa fuga efetuada pelos dois, encontraram um missionário virtuoso e aberto que se dispôs a batizar o ex-prisioneiro – sem o forçar a isso – e a casá-lo com Atala, caso ambos quisessem. Esta, porém, não podendo casar por um voto de sua mãe e de um padre, enquanto Chacta e o missionário estavam ausentes envenenou-se, por causa do amor impossível. Ao regressarem eles sabem disso, porque Atala ainda tem tempo de lhes confessar tudo (incluindo o voto da mãe e do padre por ela). Surgem, assim, naquele ‘deserto’ onde se cruzavam cristãos e índios, um tópico e respetiva intriga já típicos do Romantismo e que se vinham delineando em algumas novelas do século XVIII.

A intriga serve perfeitamente, não só para criar momentos de suspense, mas para ilustrar as teses do autor sobre o Cristianismo e a Humanidade, que o punham já fora da mentalidade militante e oficial dos católicos dos dois séculos anteriores. Veja-se, por exemplo, o contraste: um padre envolve Atala (sem que ela tenha consciência do que isso significa e implica) num voto estúpido (manter-se dedicada à Virgem e à Igreja), que a proíbe na prática de amar e a condicionará para o resto da vida como se ela não pudesse ter vida própria e, portanto, não tivesse alma própria; um missionário, pelo contrário, não se sente obrigado a forçar Chacta a converter-se, respeita o seu paganismo embora lhe estenda a mão (ou seja: a possibilidade de conversão), aceita-o na sua nobreza e dispõe-se a ajudar os amantes mesmo depois de saber do voto espúrio. Este foi o mais sublime Cristianismo que o Romantismo pôde conceber e ainda hoje cativa a muitos.

A estória conterá também uma crítica à colonização, mais acentuada com a sua sequência (René). Por aí se reforça o nacionalismo romântico – pelo menos na versão que lhe deu Chateaubriand – em que o amor à nação é fator universal e não conduz à defesa da colonização, quer dizer, não legitima o esmagamento de outras nações e civilizações. Ou seja: um nacionalismo não-imperialista, que por isso mesmo foi aplicado facilmente fora da Europa. Isso deve ter calado fundo nos protonacionalistas angolenses, orientando-os no rumo que procuravam com vista, pelo menos, à autonomia. Não só: o reconhe­cimento da (e consequente respeito pela) grandeza e beleza das tradições pagãs, pré-cristãs, estimularia mais os nossos nacionalistas e protonacionalistas a legitimar o estudo e o amor às tradições locais pré-cristãs (e, portanto, pré- e para-coloniais), o que veio a fazer Cordeiro da Mata, encorajado pelo missionário Héli Chatelain mas também pelas recolhas de literatura popular ao longo do século XIX europeu (algumas delas – de Portugal e da Alemanha – circularam por Angola nesse tempo).

Atala constitui, com René, uma medalha de face dupla em vários sentidos. Num deles, o que tenho vindo a perseguir, René vai da mentalidade europeia para a ‘selvagem’, perseguido por uma curta biografia de juventude melancólica, onde se mesclariam sinais da própria estória de Chateaubriand, segundo alguns críticos; o Novo Mundo não lhe cura a melancolia, nem a companheira com que se junta ali, mas lá compreenderá, com a ajuda de Chacta e de um padre, a sua própria biografia à luz do Cristianismo. Por sua vez, Chacta vai da cultura ‘selvagem’ para a europeia retornando, já modificado, à primitiva cultura.

Mas as duas narrativas também se completam uma à outra como sequência uma da outra. Curiosamente, vamos encontrar em Augusto Bastos, na sua série de aventuras africanas e parcialmente no Repórter Zimbro, essas mesmas duplas (de estrutura e de personagem) e as narrativas que se completam como vindo uma na sequência da outra (o que é mais notório nas «Aventuras Africanas»). Não só: na série «Aventuras africanas» há duas estórias (Bastos, 1919; Bastos, 1919), sendo que a primeira sucede, no tempo diegético, depois da segunda, vindo na sequência dela, de maneira que, ao lermos uma, temos que ter lido a outra, prendendo assim o leitor à publicação da segunda narrativa, que se faz deste modo analepse da primeira mas também, pelo mesmo processo, nos religa à primeira. É de certo modo o mesmo que se passa com Atala e René: Chacta conta a sua estória a René e só depois René conta a sua, portanto ouvimos a primeira estória (neste caso anterior no tempo) sem sabermos quem é a pessoa a quem ele a conta, que só se nos revelará na segunda estória. Na primeira, o protagonista é o que vai da cultura tradicional pré-colombiana à europeia (e regressa); na segunda o protagonista vai da cultura europeia à pré-colombiana – e ambos encontram-se. Da mesma forma, em O caçador de leões vemos o filho do colono madeirense (já nascido e criado em Angola, falando perfeitamente “a língua do país”) acompanhar-se de um príncipe local (só depois o saberemos – e também que este príncipe fala perfeitamente o português) e salvando-o, com o que paga (não o salvou por isso, mas…) uma aventura anterior em que fora salvo pelo jovem príncipe local. Esta segunda aventura chama-se Debaixo dum búfalo e para ela se remete na primeira estória. Estas estruturas ficcionais de Chateaubriand, por assim dizer dobradas (e que já podíamos encontrar em novelas anteriores), que também constroem estórias sempre alicerçadas na relação entre pares, ou nas relações entre pares, em todos os níveis de emparelhamento são repetidas nas estórias do escritor benguelense (cuja formação decorreu no século XIX), incluindo nas viagens de duplo sentido entre uma cultura europeia e uma cultura local. Não duvido nada que Augusto Bastos, nascido em setembro de 1874, tenha lido com atenção Atala e René, bem como Les martyrs – tanto mais que lia e falava francês com facilidade.

René ou les effets des passions, a narrativa que se segue a Atala, é a do protagonista que lhe dá nome e chegou a hora de a resumir. Em resposta ao velho índio, que lhe contara a sua estória, René faz uma autobiografia pela mesma via (da oralidade). Fala-lhe da causa da sua melancolia, que o arrastara até ali e transformara um homem ‘civilizado’ num ‘selvagem’. Esse percurso deu-se muito em Angola e Moçambique, tendo-se tornado localmente famosas personagens de origem europeia que se ‘cafrealizaram’, como por exemplo o avô dos irmãos Albasini em Moçambique, ou uma personagem que Serpa Pinto encontra no interior de Angola, na zona do Bié e de que fala em Como eu atravessei a África. René fala ao seu interlocutor das suas paixões, do afeto muito forte que o unia à irmã e da decisão de trocar a França pela América ao mesmo tempo que a irmã entrara no convento, num desfecho romântico típico mas que alude a uma prática anterior. A obra parece ter algo de autobiografia e o seu cariz romântico não se resume ao que disse. Além disso, tanto quanto Atala, visa ela mostrar a grandeza do cristianismo, o seu génio reto e bondoso, compreensivo e universal, especialmente concentrado no papel do velho sábio índio e do padre jesuíta que ouve também a estória e depois repreende bondosa e carinhosamente o protagonista, explicando-lhe que fora o seu tipo de vida que o levara (e à irmã) àquela situação. Em contraste, mostra-nos o desenlace de René a violência do colonialismo: Chacta, o padre jesuíta Souël e o próprio René morrerão no combate contra os franceses que se segue ao final da estória de René – e na sequência do qual a tribo dos Natchez encontra o seu fim. Confesso que fiquei com raiva dos franceses…

As duas estórias podiam levar-nos a pensar na influência de Rousseau em Chateaubriand, sobretudo no que diz respeito ao mito do bom selvagem e à projeção da ingenuidade e pureza sobre a vida rústica. Mas o autor critica explicitamente o filósofo no prefácio a Atala. A diferença maior está em Chateaubriand considerar que o pensamento é que faz o homem, distanciando-se por isso da imagem do homem 'civilizado' que pensa como animal depravado. O grande prosador não é, portanto, “um entusiasta dos Selvagens”, o que de resto garante no referido prefácio. Mas isso não o impede de nos relatar o que de mais sublime e belo há nas culturas e nações pré-colombianas, incluindo nos discursos tipicamente analógicos, carregados de imagens e efeitos poéticos, apontando um sentido nobre e superior da palavra, da fala, da linguagem.

Apesar da presença comum da América, também não podemos associar Atala e René a Voltaire (inimigo de estimação de Chateaubriand, ainda que este tenha chegado a frequentar a marquesa de Villete, sua sobrinha, justamente no mesmo “hotel” em que o próprio Voltaire viria a falecer). O Cândido é uma narrativa onde o exótico surge para se caricaturizar e criticar o gosto pelo exótico; Atala e René retratam o exótico tornando-o humano, tão humano como nós e, portanto, anulando-lhe a estranheza sem deixar de saborear a especificidade. Mas a diferença principal assumida por Chateaubriand perante Voltaire prende-se com o Cristianismo. O advento dos Evangelhos é definido, em O génio do cristianismo, como a maior revolução da humanidade e o enciclopedista, condicionado pelas dominantes intelectuais do seu tempo e tendo em mente a recente história repressiva da Igreja, não se apercebeu disso, mas do contrário.

O lugar de Atala e René é, portanto, muito próprio e muito próximo do Romantismo. O lugar de Chateaubriand também. Mas ainda assim há nele marcas de retorno a uma espiritualidade anterior que o vão colocar em transição, sem dúvida genial, numa perspetiva profunda, aberta e inteligente, que o distancia, por motivos diferentes, não só de Castilho mas mesmo de Garrett, tanto quanto dos enciclopedistas. Talvez Alexandre Herculano ficasse entre um e os outros, em particular nas Lendas e narrativas e em A Harpa do Crente (Herculano, 1838). Ora A Harpa do Crente foi, justamente, um dos livros inspiradores do ultrarromantismo lusófono e circulou pelos mercados brasileiro e angolano ao longo do século XIX. Há sombras dela ainda mesmo num garrettiano como José da Silva Maia Ferreira.


Junto com estas obras, pelo menos até 1856, podia-se ler em Benguela Os Mártires, ou triunfo da religião cristã, pois constava do espólio do médico Joaquim Jozé Vieira de Carvalho. Importa relembrar que este médico era amigo de Maia Ferreira. O poeta angolano postou no seu Álbum uma composição em bipentassílabos, dedicada a uma bela mulher, que despontara “nos plainos ardentes do agro torrão” e que neles havia de florir eternamente, mesmo que fosse vítima de incompreensão… uma mártir do Amor, embora não do Cristianismo (e Cymodocée foi também mártir do Amor). O poema não parece inocente e vale a pena citar aqui o martírio que lhe diz respeito. Ele articula-se com outro, publicado a pp. 118-119 da primeira edição das Espontaneidades. Esse outro intitulava-se «Já não tenho fé» e foi colocado no álbum “da excelentíssima senhora / D. M. P. de Cravela”. Ora, J. Rodrigues Teixeira Cravela, funcionário público, era o seu marido, que a manteria “num horto privado das regas d’amor”, segundo o poema de Maia Ferreira na p. 84 dessa primeira edição, justamente o que foi colocado no álbum do “Illm.º Sr. J. J. Vieira de Carvalho”, o cirurgião-mór de Benguela, cuja campa ainda se encontrava no cemitério da Camunda em 2007. Este, jovem, instruído, romântico (a julgar pelos livros que possuía), foi flagrado em pleno adultério com a Sr.ª “de Cravela”. É possível que Maia Ferreira, a julgar pelo poema colocado no álbum dela (mas, com prudência, no final do seu livro), também por ela se tivesse apaixonado, não sei. Seria, de qualquer modo, relação já antiga, a do médico e da bela amante, pois Maia Ferreira publica os poemas, o mais tardar, no princípio de 1850… A instituição do casamento por via de acordos entre famílias, antiga na Europa, tinha asfixiado a realidade do Amor, o mesmo Amor que despontara na virgem e pura Cymodocée e a convertera ao Cristianismo, professado pelo seu fascinante Amado. Por acaso, ou por conveniência do autor, ela não era casada antes. Mas a esposa de Cravela era. Como típico do Romantismo, esse Amor romperia a barreira social, a instituição do casamento sem Amor, e reporia os direitos do afeto por via de um adultério assim legitimado ou, pelo menos, explicado. 

Retornando aos Mártires do cristianismo, houve uma tradução de Filinto Elíseo, de 1816, não sei se foi esta que levou para Benguela o jovem médico. De qualquer modo há de se ter lido anos mais tarde, mesmo na tradução de Camilo Castelo Branco, anunciada pela Livraria A. M. Pereira no Almanach para 1866.

Os Mártires aparece também nas outras fontes, quer no Rio de Janeiro (v., por ex., Jornal do Comércio, 18.3.1830), quer em Luanda (incluído nas Oeuvres). É um romance-poema-novela em muito comparável ao trio Atala-René-Le dernier abencerrage. Alguns paralelos podemos estabelecer entre ele e a nossa literatura do século XIX. Do que dou somente mais um exemplo:

Num poema que já diversas vezes referi, mesmo neste livro, «Felicidade», Cordeiro da Mata nos aponta uma definição escondida que resulta nisto: Felicidade / Perfeita Realidade. Foi justamente assim, embora usando o termo “Beatitude”, que Chateaubriand a definiu, sublinhando (como no poema de Mata) que no mundo ninguém a frui. Visto que hoje é um termo pouco usado, transcrevo a definição de Beatitude no Dicionário Houaiss:
estado permanente de perfeita satisfação e plenitude somente alcançado pelo sábio [A felicidade beatífica foi buscada e refletida por uma longa tradição filosófica que remonta a Aristóteles (384-322 a.C.), e que terminou por condicionar o significado religioso da palavra.]
Chateaubriand afirma que só quando “a alma do cristão fiel abandona o seu corpo” conhece então “a verdadeira beatitude”. No Houaiss, como em outros dicionários, “beato” e “feliz” dão-se como sinónimos, ou “beatitude” e “felicidade” – sempre relacionados com uma realidade perfeita, ou seja, que não se desfruta no mundo físico. Na verdade houve um tempo em que o feliz era o beato; nesse tempo, feliz era aquele homem bafejado pela fertilidade, que tinha muitos filhos, muitos frutos, muitos bens, “opulento e fecundo” para ainda citar o Houaiss. Aquele que hoje diríamos feliz, nesse tempo diríamos beato.

Cordeiro da Mata o que faz, nesse poema, é resumir a doutrina exarada por Chateaubriand (e a antiga tradição cristã) em Os mártires. O poema não deixa de resultar contemporâneo por isso, dado ser comum no nosso romantismo o já antigo tópico do lamento perante a infelicidade na vida, que é uma prova, uma passagem e, para muitos ultrarromân­ticos, um corolário de desgraças que nos vem dar a noção de ser aquilo a que mais aspiramos, a Felicidade, uma Realidade Perfeita, ou seja, inalcançável aqui.

Outros paralelos haverá mas, por agora, vou concentrar-nos em Os mártires, para perceber uma relação mais funda das três novelas-poema anteriores com a especial condição de fronteiriços culturais vivida nas urbes coloniais do século XIX – e hoje.

Em Os Mártires ou o triunfo da religião cristã, de 1809, encontra Villemain um assunto menos adequado à contemporaneidade do autor e da obra. A diferença imediata nos vem da localização espácio-temporal da intriga – o tempo das últimas perseguições aos cristãos no Império romano, já a caminho do fim, cuja última grande luz se apresenta como a de Constantino (272-337), amigo do protagonista. Parece-me, porém, significativo que Chateaubriand vá buscar esse tempo – do fim do Império romano e do fim do Classicismo – quando se trata de substituir o Neoclassicismo pelo Romantismo. Acresce que, se a época histórica retratada não é das que o Romantismo privilegiou, o discurso parece oscilar entre o Romantismo e qualquer coisa anterior, cuja sublimidade o grande escritor quer demonstrar e acha adequada à nova sensibilidade. O ‘assunto’ é um termo vago; não sei se Villemain reparou no tópico do amor fatal, tão romântico e estruturante em Os mártires… Facilmente veremos que Os mártires é também uma obra romântica, não só por eventuais projeções autobiográficas (fazendo a ponte para as lutas contemporâneas pela liberdade), mas pelas imagens e tópicos e por outros aspetos.

Quanto às imagens, o livro está cheio de frases-versos como estas:
L'astre humide et tremblant qui précède les pas du matin; cette autre planète qui parait comme un diamant dans la chevelure d'or du soleil
Repare-se também na impressão com que fica o velho sábio homérico, depois de ouvir a primeira parte da récita de Eudoro (o jovem cristão por quem sua filha se apaixona e que é o protagonista da estória): é a de que “a linguagem dos cristãos é uma espécie de poesia da razão”. A razão poética é, justamente, o que mais os filósofos românticos procuraram constituir, ou estatuir (se excetuarmos Hegel) e a frase do livro sintetiza o próprio pensamento de Chateaubriand sobre o ‘assunto’. Quando Cymodocée, a ‘filha de’ Homero, se confessa a Eudoro, seu herói, ela diz:
Tuas palavras são doces como mel e penetrantes como as flechas. Bem vejo que os cristãos sabem falar a linguagem do coração. Tenho na alma tudo o que disseste. Que a tua religião seja a minha, pois que ela ensina a amar melhor.(Chateaubriand, 1845 p. 202)
É, portanto, a linguagem do herói que tem o mérito supremo de convertê-la e isso acontece porque se trata da “linguagem do coração”. A poética do Cristianismo, para Chateaubriand, como se percebe por estas citações, reúne três tópicos bem românticos: poesia, amor e coração, sintetizando-se por uma ‘razão poética’, substituta da razão clássica, já esmorecida no fim do século XVIII.

Além do que citei, a maioria dos tópicos e motivos encaminha-nos para cronótopos românticos e entre eles se destaca o já citado, do fatalismo do Amor. Ele está em Atala, em René, em O último Abencerragem e neste livro é recorrente:

Tal é o perigo das paixões, que, mesmo sem as partilhar, vós respirais na sua atmosfera qualquer coisa de envenenado que vos intoxica.
(Chateaubriand, 1845 p. 167)
Também em Os mártires se estatui a perenidade do Amor, que une (romanticamente) os amantes além da morte:
Ainsi les nobles passions ne sont point éteintes dans le coeur des justes, mais seulement purifiées: les frères, les époux, les amis, continuent de s'aimer
O Amor é visto, finalmente, pelo prisma da paixão luminosa de uma virgem, como se tornou comum no Romantismo (incluindo em Maia Ferreira):
L'ignorance de son esprit s'évanouissait devant la raison du christianisme; l'ignorance de son coeur cédait à cette lumière qu'apportent toujours les passions. Cbose extraordinaire, cette jeune fille ressentait à la fois le trouble et les délices de la sagesse et de l'amour!
Note-se como fica bem marcada a fatalidade do amor, ou das paixões: “a ignorância do seu coração cedia a essa luz que trazem sempre as paixões.” Contrariamente, perante a razão do cristianismo a ignorância do seu espírito se desvanecia, se evaporava, atingida por uma forma de comunicação superior.

A Fé trazia uma linguagem nova, transformava a comunicação num milagre absoluto que nos extasiava, nos fazia falar além de nós. Isso é iconizado, em Os mártires, na longa mas animada fala do anacoreta Paulo a Eudoro na Terra Santa, o que se denota no fim, quando Chateaubriand escreve, ao retornar o anacoreta da sua inspiração:

Paulo deixou cair as mãos para os lados; o fogo que o tinha animado extinguiu-se. Regressado à normalidade, ele retomou a linguagem [como se, até ali, não fosse linguagem a sua fala]

(Chateaubriand, 1845 p. 190)

Complementar – inseparável – é o tópico do Amor que une as pessoas – e principalmente naquela passagem muito longa da autobiografia de Eudoro, que a sacerdotisa de Homero escutara encantada. O Amor entre duas pessoas de culturas diferentes, dando sequência à problemática já detetada nas novelas-poema anteriores, sustenta a própria transversalidade. A fatalidade dos preconceitos pode torná-lo impossível neste mundo, remetendo-se para o outro (o dos justos, o da Realidade Perfeita) a sua realização final, caso não se partilhe a Fé. Porém, o Amor possibilita a partilha da Fé, a conversão, quando a sacerdotisa, talvez por ser de Homero, se mostra apta a ouvir e extasiada perante a figura do Amado.

A transversalidade do Amor, como em Atala, coincide com a transversalidade do percurso do protagonista, que nos mostra que, sem Amor, a conversão e a comunicação não se realizam totalmente. Vale a pena detalhar:

Eudoro é um grego cristianizado que se vai instruir em Roma, onde hesita entre o cristianismo e os prazeres da corte, mas onde igualmente se maravilha com a diversidade de povos, crenças e costumes.

Dali, por intrigas palacianas e acasos místicos, vê-se obrigado a partir para combater os Francos, acabando por assumir uma posição de chefia no exército romano. Isso permite a Chateaubriand revisitar e ressituar uma origem mítica e a própria imagem da França. De notar que a situação é tal que os Gauleses, integrados no exército romano, enfrentam os Francos, federação de povos germânicos que dará nome à própria França; o herdeiro dos Francos enfrenta num duelo o descendente de Vercingetórix, o gaulês (o outro francês é o gaulês, ainda hoje e nas expressões mais comuns). Deste confronto podia vir uma dissociação, natural, entre gauleses (de origem celta pré-romana) e francos (de origem germânica para- e pós-romana). Porém, algo de extraordinário sucede no ‘inconsciente coletivo’ quando o franco vence o gaulês. Nesse momento, Chateaubriand escreve, “parecia que, com esta morte, o império dos Gauleses, escapando aos Romanos, passava aos Francos”. Em vez da divisão, da memória do confronto mortal entre gauleses e francos, estabelece-se, miticamente, a continuidade identitária e antropofágica entre os dois povos sem passar pelos Romanos...

Mas a mim me interessa agora mais o outro tópico, o da diversidade. Chateaubriand viveu num tempo em que a Europa também ganhava consciência da diversidade e foi sensível a isso. Era já um homem cosmopolita (aliás, viajado), embora ainda não pareça em processo de crioulização, porque põe barreiras intransponíveis entre culturas através, precisamente, do Cristianismo e apesar das linhas de continuidade que estabelece entre cristãos ‘puros’ e ‘nativos’ igualmente ‘puros’.

Muitas vezes os intelectuais, como o povo, consideram os ‘outros’ em bloco, como se os ‘outros’ fossem uniformes, todos o mesmo, com os mesmos traços psíquicos e físicos. O interessante em Chateaubriand é que ele não faz isso, pelo contrário, vai reconhecendo a diversidade cultural nos mais diversos cenários que nos representa. Mesmo internamente, o país dos Francos e, mais tarde na estória do protagonista, a Gália, são visionados numa grande diversidade cultural, étnica e política interna. De facto, historicamente, a origem dos celtas (e, portanto, dos gauleses), como a dos Gálatas na atual Turquia, é não só confusa mas indicando uma grande variedade logo na sua formação; também os francos se formaram como uma confederação de etnias diversas, ainda que todas de origem germânica. Mas os territórios do que veio a ser a França continham, para além de gauleses e francos, romanos e pessoas oriundas de todos os povos e nações que os romanos subjugaram e integraram nos seus exércitos. É neste quadro de dois mundos interiormente diversos, separados por uma fronteira definida e defendida com unhas e dentes, que vai desenvolver-se a paixão intensa de uma sacerdotisa gaulesa, filha de um druida, pelo protagonista, cristão vagamente apaixonado por ela – embora sentindo como opressiva a fixação dela sobre ele. O choque de culturas, repetidamente, impede a realização amorosa transversal, transfronteiriça. Não da mesma forma, repete-se mais tarde com a sacerdotisa grega, a protagonista, Cymodocée de seu nome pagão, que supera a barreira convertendo-se ao Cristianismo e abrindo, assim, portas à realização do Amor – imediatamente martirizado.

Apesar de intransigente quanto à necessidade de só se ligarem entre si amantes cristãos, não se efetivando relações sérias entre cristãos e não-cristãos; apesar de não ver nisso uma atitude agressiva (ou mesmo fanática) por parte dos cristãos; a consciência da diversidade leva ainda Chateaubriand a perceber a violência da imposição de uma cultura a outra. À semelhança do que se passa nas três novelas-poema comentadas atrás, a consciência da mistura, da diversidade, como da universalidade dos sentimentos e dos traços psicológicos humanos se acompanha de uma aguda consciência da agressão, diríamos hoje, colonial. Isso ocorre em Atala, por exemplo, mas também em Os mártires. Dias antes de uma batalha decisiva contra os Francos, comandado pelo pai do futuro Imperador Constantino (que era seu companheiro de juventude na corte), em certo momento de repouso meditava o jovem grego (Eudoro) sobre o seu “destino bizarro”. Vale a pena transcrever:
Eu pensei que estava ali, combatendo pelos bárbaros, tiranos da Grécia [os ‘romanos’], contra outros bárbaros [os francos] de quem não recebera qualquer ofensa [injure].
Apesar disso luta como um herói e acaba caindo, esgotado, sendo salvo e escondido por um escravo cristão (descendente de Cassius, um dos assassinos de César) e pela bondade feminina da recém-convertida esposa do Rei dos Francos. Recuperado se torna, ele próprio, escravo de quem combatera. Com o apoio da recém-convertida rainha, acaba se libertando e vai, mais tarde, ser enviado pelo Rei dos Francos para negociar a paz com os Romanos (uma inversão total de papéis: em vez do Oficial do exército agressor, Enviado de paz da nação agredida).

Em seguida se torna outra vez comandante (e herói) do exército invasor e vai governar militarmente a Gália, que nos descreve como sendo de uma intensa diversidade humana. Escreve ele (Chateaubriand, 1845 p. 149):
Eu empreguei muitos meses a visitar a Gália, antes de tornar à minha província [à província sob sua jurisdição]. Jamais país algum oferecerá uma tal mistura de costumes, de religiões, de civilização, de barbárie. Partilhado entre os Gregos, os Romanos e os Gauleses, entre os cristãos e os adoradores de Júpiter e de Teutates, ele apresenta todos os contrastes.
É neste rico cenário que se inscreve o episódio da paixão da sacerdotisa gaulesa pelo protagonista, paixão fatal porque absorvente, obsessiva, com a amante impondo a sua presença. Na teoria do Amor de Chateaubriand (e não só dele) tal tipo de paixões anula a felicidade e consecução das relações amorosas. É figurando isso que o desenlace levará o protagonista, entre outros motivos, a pedir o afastamento do exército e a regressar a casa. No relato da paixão destaco um momento crucial (crucial também para a própria concepção de poesia e de linguagem), aquele em que a sacerdotisa gaulesa diz ao protagonista:
Ah, se tu me amasses, como seríamos felizes! Encontraríamos, para nos exprimirmos, uma linguagem digna do céu: neste momento há palavras que me faltam porque a tua alma não responde à minha.
(Chateaubriand, 1845 p. 162)
Repare-se, de passagem, nestas exclamações típicas, ao mesmo tempo, das novelas do fim do século XVIII e, sobretudo, do século XIX, como também do teatro popular, comercial, do mesmo século XIX. Mas o que me interessa mais aqui são dois outros aspetos: primeiro, que toda a cena envolvente nos instila o sentimento trágico do Amor, da impossibilidade de um amor não correspondido, ou não correspondido com a mesma intensidade; segundo e mais importante, a diferença cultural entre os dois expressa-se também pela ausência da palavra comum, pois, não havendo Amor, essa diferença não é superada e a fala não atinge a sublime comunhão.

Com o par contrário a este (Eudoro e Ester, antes do batismo Cymodocée) passa-se o oposto. Apesar das diferenças culturais, o Amor correspondido permite e sustenta a comunicação que levará à conversão. Este par funciona várias vezes como antitético do que faziam Eudoro e a filha do druida. Enquanto, por exemplo, a filha do druida procurava constantemente Eudoro, impondo-lhe a sua presença, Cymodocée só por acaso encontra Eudoro. Veja-se, por exemplo, o segundo momento em que isso acontece (Chateaubriand, 1845 pp. 198-199). Mesmo o final é oposto: a filha do druida suicida-se para livrar o seu Amado da fúria dos gauleses (em face da paixão dela por ele); a sacerdotisa de Homero converte-se para que se realize o Amor de ambos. A realização do Amor é também a realização plena da linguagem e da comunicação, tanto verbal quanto anímica.

Mas, entre um desenlace e o outro caso, dá-se o regresso do protagonista às terras de seu pai. O regresso processa-se, por um acaso da intriga, passando por Roma mas também pelo Egito, proporcionando-nos alguns instantâneos mais onde se vinca a diversidade cultural, nesse mundo que só o Cristianismo vai reunir, através de uma confissão única (é o percurso que dará conteúdo ao Itinerário de Chateaubriand). Mas é também a passagem do protagonista pela Terra Santa e por vontade própria, na qual se purifica e é batizado por um velho anacoreta (Paulo) com a água (por acaso, ou por realismo, lamacenta) do rio, para se aproximar do exemplo de Cristo. Há, no percurso, se não uma iniciação mais profunda, uma purificação mais profunda do herói. Só depois é que ele encontrará o Amor. A sequência da viagem de purificação não deixa de ser sintomática: primeiro de Roma para o Egito (pátria da sabedoria antiga, também dos ‘padres do deserto’ ou eremitas), um Egito pleno de diversidade; depois a travessia do deserto (portanto: nem univocidade nem diversidade, mas o despir-se disso tudo) na qual se reúne à essência do Cristianismo.

Se este segundo passo, de forma geral, não parece ter inspirado os nossos poetas, o primeiro foi por eles vivido a vida inteira, não de Roma para o Egito, mas da Igreja romana para a Angola quotidiana.  


As obras completas de Hugues-Félicité Robert de Lamennais (29.6.1782 Saint-Malo – 27.2.1854 Paris) completam o quadro iniciado com Chateaubriand. Elas vendiam-se no Recife e apareceram em dois espólios de Benguela (de 1855 e 1856) as Palavras d’um crente (1834, escritas no ano anterior), provavelmente na versão de Pedro Cyriaco da Silva (1796-21.4.1856), também tradutor do preconceituoso Volney e da História do Brazil, de Beauchamp. A sua tradução de Lamennais veio a público em 1836, mas houve outra, “publicada pelo mesmo tempo” segundo Inocêncio, que me parece ter sido a de Castilho. Os títulos são diferentes e o que li no Inventário de Órfãos de 1855 e no de 1856 coincide com a versão de Pedro Cyriaco. A tradução de Castilho (1836 também) considera-se um dos marcos da sua entrada no romantismo literário, o que reforça a importância que teve para nós (v. abaixo).

Lamennais protagonizou, numa fase inicial, uma corrente que defendia o Estado teocrático, preocupado ao mesmo tempo com os pobres e fundamentando essa preocupação na concepção teológica do “princípio divino” (Lamennais, 1954). No contexto da constestação da revolução, dos traumas do período do Terror e das guerras napoleónicas e sob influência de escritores em reação, como Xavier de Maistre, o próprio Hugo e antes dele Chateaubriand (para citar sensibilidades e posturas políticas bem diversas), considerava a Igreja (uma Igreja do e pelo Espírito) como única força capaz de consolidar o progresso, orientar os dirigentes e educar o povo, defendendo a superioridade da Fé e da Doutrina Católica face à Ciência, bem como a autoridade absoluta do Papa (na dicotomia, citada a propósito de Gonçalves de Magalhães, entre Fé e Ciência, ele extremava-se no polo da Fé, enquanto Gonçalves de Magalhães articulava os dois polos, colocando um no seguimento do outro). Ao mesmo tempo combatia vigorosamente o pensamento liberal, procurando mostrar que, em última análise, o pensamento individual conduz ao caos e à supremacia da força – único factor, para além de uma tradição coletiva sancionada por Deus, capaz de superar a indecidibilidade a que nos conduz o relativismo.

Lamennais atuava aqui em favor da herança cristã no Romantismo, mostrando-se um inflamado romântico dentro do cristianismo. Nesta junção de cristianismo e de romantismo reacionário lembra a postura de João de Lemos na política portuguesa, embora só nesse aspecto (João de Lemos foi sempre um talassa, defensor do antigo regime, sem nunca ter sofrido nenhuma revolução; Lamennais não). O radicalismo, a exacerbação, a veemência e a insulana ligação à Igreja por via familiar, sobretudo do irmão, mais velho (com quem chegou a escreve uma "Resposta às objeções dos ateus", segundo Agostinho da Silva (2003, p. 18) fizeram dele um padre incómodo e marginal no contexto político e intelectual da época (Silva, 2003). Isso lhe trouxe dissabores também por parte da hierarquia da Igreja. As reações de grandes figuras dessa hierarquia contra o excesso de zelo de Lamennais acabariam por lhe mostrar que a própria Igreja não estava preparada para o tal Estado Teocrático e que a sua religiosidade era a tal ponto íntima, interior, que o levaria a romper com essa hierarquia em nome do sentimento que a sustentava – ficando, nisso, mais próximo dos liberais e da anarquia do que desejou. Mesmo o Papa, que o recebeu com deferência, diria em privado que estavam perante um exaltado, um sentimental, que se devia levar pela sensibilidade para a razão da Igreja (e do mundo) mesmo quando se lhe elogiassem os textos polémicos e a doutrina (Silva, 2003 p. 37). Ou seja: o que mais tarde o marxismo chamaria de um ‘idiota útil’. 

A partir de 1830 (e em plena interação com os acontecimentos políticos desses anos) começou a defender explicitamente a separação entre a Igreja e o Estado, muitas outras liberdades (de Imprensa, de ensino, política, de religião) e também a ideia de que a salvação podia ser obtida no âmbito de qualquer culto praticado com pureza. Tais propostas abriam-se a partir da concepção que tinha da vida religiosa: uma vida em constante ligação direta entre a pessoa e a divindade, sendo a partir da divindade que emanavam, tanto a vida, quanto as orientações para vivê-la. 

Separando a vivência religiosa e o princípio divino dos seus “envoltórios”, que o tempo gasta e são formas exteriores criadas pelos homens para sancionar desigualdades e hierarquias, ele anulava igualmente a importância e o significado dos cultos e das religiões institucionais, dos costumes religiosos que resultam só de adaptação a uma época e lugar. O que o levava a deixar cair, em boa parte, a legitimação da autoridade eclesial, do aparelho institucional e político da Igreja, pela Tradição de que ela seria a verdadeira face. Tudo fazia parte de uma espécie de casca indiferente que separava o interior humano das relações sociais. A casca é o que se gasta, quebra, parte, cai, por essa perda de relação com a seiva. Como diz em O livro do povo: “o tempo gasta o envoltório do princípio divino mas não gasta o princípio divino” (Lamennais, 1954 p. 91). Esta vivência pura do “princípio divino”, Lamennais não a abandona nunca e ela é que dá fundamento ao seu propalado ‘socialismo’ e ao seu religioso ‘liberalismo’ – que tanto incomodou as hierarquias eclesiásticas. Deduzimos isso, por exemplo, a partir do que escreveu nas famosas Palavras de um crente: “vós sois filhos de um mesmo pai [Deus][7], e fostes alimentados pela mesma mãe [a Terra]; porque, então, não vos amais uns aos outros como irmãos? E porque vos tratais uns aos outros como inimigos?” (Lamennais, 1954 p. 10) Com tal mistura, Lamennais antecipou um golpe de propaganda que os marxistas usaram em todo o mundo até muito tarde e consistia em associar a mensagem de Cristo às propostas igualitárias, para tirar daí uma legitimação rápida e consensual junto do povo, marcado pelos princípios cristãos. Só que, baseado nos mesmos princípios, Lamennais defendia como valor supremo o da liberdade e a liberdade pessoal, apoiada na conceção de que todos somos criação divina. Por tanto, opunha-se aos ateus e, por extensão, aos marxistas Por sermos todos criação divina é que somos todos iguais uns perante os outros. Essa é a fundamentação do seu ‘socialismo’, da crítica às desigualdades e à monarquia: “É por isso que os reis e os príncipes, e todos aqueles a quem o mundo chama grandes, foram malditos: eles não amaram seus irmãos e trataram-nos como inimigos.” (Lamennais, 1954 p. 10) Os marxistas incorporaram esta posição (os reis e os príncipes não amaram o povo e trataram-no como inimigo), mas desligando-a do 'princípio divino', considerado alienante, opiáceo.

Os livros que venho citando são uma espécie de panfletos poéticos. Ou, melhor escrito: poéticos panfletos, porque primeiro são poéticos, proféticos, religiosos e na sequência disso é que são políticos (e retóricos). Muitos dos seus trabalhos saíram no jornal L’avenir, onde um grupo de intelectuais liberais e crentes católicos (de que ele era o nome mais saliente) se afirmou a partir de 16.10.1830. O Papa Gregório XVI, com o qual instantemente procuraram falar, desautorizou as suas opiniões (e do seu grupo) na Encíclica Mirari vos, de 15.8.1832 (XVI, 1832). Parece que o ponto principal estava, precisamente, na ideia da salvação mesmo fora da Igreja (Martins, 1989 pp. 42-45), nas liberdades que a ideia fundamentava e na separação entre a Igreja e o Estado. A Igreja institucional não abria mão do seu poder político, nem do conluio com as monarquias autoritárias e isso tornava mais interessante a leitura das Palavras de um crente em Benguela, nos confins do Atlântico e da África Ocidental, onde judeus, maçons e ateus estavam mais à vontade para ler, pensar e agir. Nessa altura, apesar de o grupo de Lamennais (ele também) ter aceite a autoridade papal e encerrado a publicação, entendendo a Encíclica como ato de governo e não como matéria de fé, Lamennais entrou na fase revolucionária, passou a atacar o Papado e as monarquias europeias abertamente, defendeu a religião da Humanidade e já não o cristianismo. Datam desta fase as Palavras dum crente, pelas quais o conhecemos (v. anexo), como Joaquim Nabuco (Nabuco, sd p. 3) e, bem antes, o Alexandre Herculano de A voz do profeta (1836), que se tornou pública no mesmo ano em que Cyriaco e A. F. Castilho traduziram a obra de Lamennais.

A visão idílica de um tempo virginal em que a natureza, os homens, os animais, todos viviam harmoniosamente e não era necessário trabalhar, excita-nos esperanças de retorno ao mundo paradisíaco, sobretudo pela religião vivida na sua pureza e pela superação dos opressores. É um mito que Lamennais desenvolve agregando várias ideias da época, algumas das quais aparecem nos livros de Marx, outras terão saído da pena de Rousseau – um dos escritores mais lidos nos mercados que estudei. Mas é também idílio presente no mais recuado mito do Império do Espírito Santo, ou da Terceira Idade (de Joaquim de Fiora), Império ou Idade (conhecidos no Brasil) em que os homens, a natureza, o cosmos, voltariam a viver em harmonia tanto quanto imaginava Lamennais. Esse mito, não se tendo originado aí, desenvolveu-se muito em Portugal e pode estar articulado ao facto de a poesia portuguesa, mesmo a mística, registar em muitos autores (quase todos) uma tão forte ligação à natureza que dificilmente encontramos um poeta ascético. Os poetas portugueses parece que são todos franciscanos…

Esse mito encontra afinidades também com outro de que já falei, que é o do Santo Kasola, Francisco Kasola. Casando crenças animistas, recorrentes entre falantes bantu de Angola, com mitos cristãos, ou cristianizados, como o do Império do Espírito Santo; juntando o que sabia da tradição cristã com tradições de povos de fala bantu, ele fazia aparecer nas aldeias e casas comida, bebida, parece que até chuva, antes de visitá-las. Ele pregava também que o trabalho era desnecessário, que as pessoas não deviam ter privações (como por exemplo a da carne às sextas-feiras), porque os alimentos, dados pela natureza, são sempre bênçãos. Para algum leitor angolano, ou vivendo em Angola, que minimamente conhecesse essa rede complexa de mitos e crenças paradisíacos ligados à natureza, isso era uma fonte mais de atração que despertava a mensagem profética de Lamennais em Palavras de um crente.

As Palavras de um crente foram, com toda essa carga mítica, ou mítico-política, o poema-panfleto de resposta ao Papa e à Cúria. O livro viu-se, consequentemente, condenado na Encíclica papal Singulari nos, em 21.6.1834 (o mesmo ano da publicação), com o que em nada a sua leitura deixou de se fazer, em Benguela, no Recife, ou em Luanda. Lembremos ainda O livro do povo (1838), uma obra considerada republicana e socialista já em 1847, pelo periódico socialista recifense O progresso, mas escrita no mesmo tom profético, recorrendo às mesmas ambiências míticas e bíblicas, apenas falando muito nos direitos e nos deveres, criticando mais os opressores e defendendo a liberdade com maior acutilância. Entre tanto surgem, realmente, passagens esclarecedoras quanto ao ‘esquerdismo’ de Lamennais (e também quanto às influências de Rousseau). Por exemplo esta:
Se permitirdes que, a qualquer título, se criem entre os membros essencialmente iguais da comunidade categorias, classes investidas de certas prerrogativas com exclusão do resto do povo, vós sancionais a criminosa usurpação do poder em virtude da qual alguém se arroga o direito de estabelecer semelhantes categorias, sacrificais covardemente vosso próprio direito e o de vossos irmãos, renunciais por eles e por vós à qualidade de homens, ajoelhais-vos sobre as ruínas da verdadeira sociedade, aos pés da tirania.
As denúncias de Lamennais são avançadas para a época, no que à lusofonia diz respeito – embora não inéditas. Ele critica o poder dos homens sobre as mulheres (antecipando Stuart Mill) e os filhos (em Do passado e do futuro do povo, de 1841) e denuncia a propriedade como resultado do exercício do “mesmo poder da força”.

De certo modo, o republicanismo antecedeu o socialismo, pois em 1829 publicara Progrès de la Révolution et de la guerre contre l'Église, onde atacava o Monarca e a Monarquia, defendendo uma “catolicização” do liberalismo que consistiria na igualdade de direitos aliada à diminuição do sofrimento dos pobres. Ainda nesse texto, combatendo os inimigos da Fé, mostrava-se ardoroso (foi de resto um homem de atitudes radicais, excessivas para o meio); mas o filtro da escrita lhe tornava classicizante o furor, o mesmo furor retórico dos latinos e gregos quando percebiam que o bom orador sente aquilo que diz. Tornou-se por isso ainda mais amplo, cheio de imagens, mais de tom profético o seu estilo já um pouco retórico. Viu Napoleão proibir uma das suas obras (as Réflexions) em menos de um ano após a saída (Silva, 2003 pp. 20-21), esteve exilado em Inglaterra (para onde fugiu apressadamente) e atacou de forma violenta a escola sem Deus nem religião, a escola napoleónica. Na crista da onda de 1848 tornou-se ícone da revolução, tendo sido eleito deputado pelo povo. No entanto, o estilo arrebatado e o excessivo número de frentes que abrira isolou-o em França, apesar de ter colaborado no Conservateur de Chateaubriand e no Défenseur, em que também escreviam Bonald (citado em epígrafe nas Meditations de Lamartine), Nodier (que faz a Introdução às Meditations de Lamartine) e o próprio Lamartine.

Em Portugal influenciou Alexandre Herculano, o que também tem significado para nós, porque Alexandre Herculano foi muito lido nestas plagas africanas. Sob o modelo das Palavras de um crente o grande historiador romântico redigiu o poema político A voz do profeta (Machado, 1986 p. 48; Machado, 1979 p. 83), em versos brancos. Esse livro era citado nos anúncios do Diário de Pernambuco, tendo-se incluído nos Opúsculos que circularam por Angola, com a longa introdução – contextualizadora – de 1867. A voz do profeta, infelizmente, não tem a doçura, nem a mobilidade nem a audácia veemente e política de Lamennais, porque o seu autor era, pelo contrário, pessoa austera, seca, rígida e contida – pelo menos na lírica. Mas foi com essas companhias, literariamente moderadas e classicizantes, que Lamennais encontrou leitores no Recife e em Benguela.

No caso do Recife, mais uma vez O progresso, periódico socialista[8], comenta, na secção literária de um dos números para 1847, O livro do povo (de 1838) positivamente, reforçando a conotação radical e esquerdista de Lamennais. O livro do povo foi traduzido pouco depois de publicado, em 1839, para uma edição lisboeta, que terá circulado pelo Nordeste brasileiro e de que há um exemplar na biblioteca do Gabinete Português de Leitura do Recife (Lamennais, 1839; Costa, 2009). No caso de Benguela, não me deparei – ainda – com referências a qualquer outro livro de Lamennais.

O mais interessante, neste jogo de textos, é que Lamennais, durante a infância, teve acesso aos mesmos livros, basicamente, que os primeiros românticos lusófonos e que vários dos nossos poetas em Angola. Como se resume na Enciclopédia New Advent:
At La Chênaie [sua terra de origem] there was a well filled library in which works of piety and theological books were mingled with the ancient classics and the works of the eighteenth-century philosophers
Lamennais soube misturá-los bem e, por ter a mesma base, o mesmo conduto, por usar a mesma matéria-prima compreendeu-se muito melhor essa mistura.

Finalmente, um aspecto curioso: depois de morrer, ele foi também colaborador, enquanto entidade espiritual (e, portanto, através de mediuns), entre 1860 e 1869, na Revista espírita, dirigida por Alan Kardec. Os textos ali publicados em seu nome podem ser transferidos a partir desta hiperligação. O espiritismo, não se podendo confundir com animismo, não deixa de se apresentar ao intelectual animista, ou criado num meio animista, como uma espécie de continuidade, modernização e racionalização relativos a crenças comuns e experiências idênticas. No seio da Europa ‘civilizada’ aparecia uma corrente que daria assim expressão ‘científica’ – aparentemente racional – a essas crenças e experiências. É possível, mas difícil de confirmar, que a leitura de Lamennais tenha beneficiado disso, visto haver notícia da circulação de literatura espírita em Angola no século XIX.


Alphonse Marie Louise Prat de Lamartine nasceu em Mâcon a 21.10.1790 e morreu em Paris a 28.2.1869. As suas Meditações poéticas (1820, 1823) marcaram o romantismo francês e projetaram-no além-fronteiras. As influências literárias principais eram de Horácio, Virgílio e Chateaubriand – um trio muito nosso conhecido, muito apropriado no mundo lusógrafo. Mas outras leituras suas coincidem com o nosso ambiente bibliográfico: para além da Bíblia[9], claro, Byron, Fénelon, Bernardin de Saint-Pierre, Mme de Staël, Racine, Voltaire, Dante, Petrarca, Shakespeare – que eram nomes comuns nas nossas fontes (Bertrin), com menor presença de Shakespeare, no entanto presente em Luanda e Benguela.

Lamartine estudou com jesuítas antes da extinção da Ordem, como sucedeu com alguns dos últimos neoclássicos lusófonos. Também estudou português com Filinto Elíseo em Paris, o qual assumidamente Lamartine diz que o levou a admirar Camões, nome canónico também no nosso meio. O convívio entre os dois poetas não se ficou por aí, tendo o neoclássico luso inspirado a meditação «A gloriosa – a um poeta exilado» (que era Filinto).

Em Portugal desfrutou de vasta influência (Garrido, 1871 p. 57) e, como já referido acima, o título de uma das suas obras (1838; na verdade, o primeiro fragmento de Jocelyn) repete-se em A queda de um anjo, de Camilo Castelo Branco – autor largamente referenciado nas fontes angolenses por mim consultadas. Esse título de Lamartine foi liricamente glosado por Maia Ferreira nas Espontaneidades:

Se eu fôra fadado dos magos accentos
Do só Lamartine, qu’em doce fragôr
A quéda de um Anjo sublime e brilhante
Nos cantos qu’enleva cantou com primôr

(Ferreira, 1849 p. 76)
Em concordância, Teófilo Braga afirma ser ele uma das influências notórias de O novo trovador (Cordeiro, et al., 1851-1856), que muito marcou a nossa poesia do século XIX (Braga, 1877 p. 16). O Almanach de lembranças incluía nos seus anúncios referências à sua obra (por exemplo a Graziella, fragmento das Nouvelles confidences traduzido por Bulhão Pato e publicado pela Biblioteca dos Dois Mundos). O Panorama abrigou também diversas referências elogiosas à obra de Lamartine. De facto, leu-se muito em Portugal e no Brasil, havendo uma coleção (1837-1842) em Benguela, num inventário de órfãos que já citei várias vezes. O Instituto (1852-1981), “jornal científico e literário” publicado pela imprensa da Universidade de Coimbra, trazia no seu volume primeiro, publicado em 1853, nada menos que oito poemas de Lamartine traduzidos, incluindo os mais conhecidos, como a «A meditação», a «A soledade» (como então foi traduzida a primeira Meditação, a abrir o primeiro número), «A noite» e «A imortalidade». Antero de Quental guardava na sua biblioteca uma edição parisiense (1866) das Premières méditations poétiques: la mort de Socrate – uma das obras que Teófilo Braga afirma ter influenciado Soares de Passos – e um exemplar das Nouvelles méditations poétiques, de uma edição também parisiense, de 1871 (Fraga, et al., 1991).

Ainda em Portugal, O estandarte traduziu um extenso comentário à sua obra, que saíra no El faro e no “Diário”. O texto considera as primeiras Meditações um “modelo”. De quê? Artístico: do “género religioso e elegíaco, e distinguem-se pela suavidade de inspiração, correcção do estilo e delicadeza do colorido”. Com extensão exata, só dois autores o comentador entende capazes de canonização: Anacreonte e, justamente, Lamartine.

Demonstrando o seu prestígio no Brasil, Lamartine foi traduzido logo na muito cortesã Revista nacional e estrangeira do Rio de Janeiro (1839-1840), portanto bem a tempo de Maia Ferreira o ler em português antes de ir estudar para Lisboa (Lamartine, 1840). Traduzida por J. J. Ferreira da Costa, essa foi a meditação que o poeta francês dedicou a Filinto Elíseo, sublinhando assim a Revista a ligação do vate francês à lusografia. Castro Alves e Álvares de Azevedo (que possuem algumas afinidades métricas e estróficas com o nosso romantismo) também foram fortemente influenciados pelo poeta francês. Na Biblioteca Pública Estadual de Pernambuco há ainda um exemplar de «Ischia»[10], uma das meditações poéticas, traduzida “em Verso Portuguez por J. Soares de Azevedo, e seguida d’outra versão livre por J. C. Bandeira de Mello”, que nos deixou mais sinais da sua inclinação para a poesia lírica[11]. A versão e a tradução foram publicadas em 1843, portanto perfeitamente a tempo de serem lidas por Maia Ferreira, ou de transitarem para Angola antes de 1878. Tal como as traduções feitas em O progresso, num número (1846) que integra um longo poema indianista e, na secção literária, traduz duas Meditações: a XIII (O lago) e a XVII (p. 184).

Note-se, de passagem, que o poema de Maia Ferreira glosado por Valentim Augusto Monteiro da Silva e (com ironia) por Faustino Xavier de Novaes, referido já por mim várias vezes, tem o seu similar em O progresso. Trata-se do título «Um voto», publicado num número para 1847, com assinatura “M.M.” (M., 1847) e uma epígrafe de V. Hugo (poeta, ao que parece, bastante lido por Maia Ferreira e que talvez tenha popularizado a série de composições que refiro, onde se inscreveram também os nomes de A. P. Costa Jubim e, em 1855 (Silva, 2011), de Machado de Assis). A estrutura retórica é igual, distribuída da mesma forma pelas estrofes: oito para a exposição das variantes de “Se eu fora”; a nona para a exposição do que se oferece não se sendo. Esta coincidência aproxima-nos mais da possibilidade de Maia Ferreira ter lido o jornal e ter ali conhecido traduções e versões de Lamartine.

Salvato Trigo, numa passagem que já referi, considera Lamartine uma das mais fortes influências recebidas pelo nosso poeta. Se compararmos, métrica e rítmicamente, Jocelyn com a lírica das Espontaneidades veremos que elas estão mais próximas do que do alexandrino mecânico de Hugo, por exemplo. Maia Ferreira tanspôs, como os românticos lusófonos em geral, o alexandrino para o decassílabo e, também no geral, o dodecassílabo composto (6’6) passou a decassílabo composto (5’5). Mas em Jocelyn surgem versos alternativos e destacam-se, entre eles, o decassílabo heroico, bem como o octossílabo. Ambos eram praticados por Maia Ferreira, embora não marcantes na sua lírica e, sobretudo, não foi nela marcante o octossílabo com cesura na quinta sílaba (5’3), muito usado por Lamartine também nas Harmonies (Lamartine, 1834), de que não vi mesmo nenhum exemplo em Maia Ferreira (há muitos pentassílabos, mas isso articula-se com a preferência por decassílabos compostos, que revela uma inclinação forte por metros e ritmos populares, como os de cinco e sete sílabas).

A sombra de Lamartine pode se ter projetado por via conceptual ou visual, não sonora (as coincidências rítmico-métricas associam-se a vários poetas desse tempo, incluindo franceses e lusófonos). Sem dúvida, entre outros aspetos, o anjo de que tanto fala Maia Ferreira não era só o de Garrett, nem só o da época, mas especificamente o de Lamartine também.

O politeísmo de que o autor foi acusado, a propósito do ‘episódio’ Jocelyn (Lamartine, 1842 pp. 16-17), pelo que ele mesmo explica talvez não tenha fundamento, mas a palavra deixou-me no ar outra suspeita. Coincidência significativa para o nosso contexto, Charles de Pomairols, na segunda edição do seu estudo sobre Lamartine, refere-se ao “animismo angélico” do autor (Pomairols, 1908 p. 133). É, sem dúvida, um filão para explorar, com subtileza, cautela e tempo – até mesmo porque, sobretudo em Maia Ferreira, esses anjos vindos do Céu não deixam de ser adorados com desejos muito humanos...

Outra intersecção, mera coincidência, com as nossas culturas banto pode ser deduzida a partir do poema «Le desespoir», a sétima das Méditations (Lamartine, 1860 pp. 115-121). O poema foi suscitado por um momento, como diz o título, de desespero pessoal e se desenha no âmbito da semiosfera europeia do seu tempo. As diferenças serão, por tanto, muitas, mas o que nos interessa aqui é a semelhança estruturante que, ligada por Lamartine às religiões bíblicas (em parte nos recorda o livro de Job), permitia à nossa elite intelectual e, particularmente, eclesial, estabelecer aproximações mais flexíveis com a teoria animista da criação do mundo. O ‘animismo’ de Lamartine, porém, mesmo que ele nos comentários se penitencie, não sendo neste caso ‘angélico’, não deixa de coincidir com o nosso, quero dizer, com o que podemos encontrar, por exemplo, no Cuanhama. A parte comum da conceção consiste em pensar que Deus criou o mundo mas dele se retirou depois, deixando-o ao seu arbítrio. Daí a importância que terá, dentro da lógica animista, o culto dos espíritos antepassados, numa articulação entre pessoas mortas e vivas que permita reequilibrar os desmandos que nós mesmos cometemos, usando e abusando do livre arbítrio, ou que outros espíritos cometam por nós, através de alguns de nós. Se Deus está ausente, é entre pessoas vivas e os espíritos que os conflitos se podem regular, pois os restantes seres e suas entidades é que estão ativos. Uma tal conceção torna lógica a presença do Mal e é por aí que Lamartine a vai, também, explorar. O poema pode mesmo ser lido como explicação do Mal e do sentimento de abandono perante as arbitrariedades. Ele começa por contar esse início em que Deus (ele acusa a Sua obra de imperfeita) se zanga e se retira, ou seja, ele começa pelo mesmo fundamento da crença animista que vamos encontrar em várias tradições culturais angolanas. Esse fundamento estrutura e atravessa todo o poema.

O “episódio” Jocelyn, publicado em 1836, circulou por Angola pelo menos até 1856, quando foi inventariado num espólio em Benguela. O mesmo título foi também muito lido no Brasil, por exemplo por Álvares de Azevedo. No Porto foi cultuado pelos poetas de A grinalda (onde colaborou Cândido Furtado), que tomaram Lamartine por modelo. Mas a influência foi, como já vimos, além da de Jocelyn e Maia Ferreira partilhou-a com os amigos em Lisboa, com Luís Augusto Palmeirim e com Bulhão Pato, por exemplo. Recorde-se, ainda, que, nos livros de crítica literária de Lopes de Mendonça de que tivemos sinais em Angola, o nome de Lamartine figura com distinção, reconhecido modelo de vários autores proeminentes seus contemporâneos, pelo que, também por essa tabela, esteve presente. Sublinhe-se, ainda, que Lopes de Mendonça, por exemplo falando em João de Lemos, credita Lamartine como a principal referência da geração de O trovador – aquela de que fez parte Gonçalves Dias e cujos autores publicaram, na sua maioria, ou quando o próprio Maia Ferreira publicou, ou mais tarde.

No entanto e infelizmente, em nenhum dos nossos poetas encontramos equivalência para a simultânea doçura e elevação das Meditações, ao mesmo tempo contidas e inspiradas, harmoniosas e reflexivas, por vezes intensamente místicas e, no entanto, sensíveis. Houve, quando muito, alguns arroubos patéticos entre namoros concretos de quimbundo e português.

Lamartine teve também uma carreira política ativa. Foi preso nos anos do Terror, escapou à guilhotina, fez parte do governo provisório de 1848 (ministro do Exterior) e candidatou-se, mesmo, a Presidente da República – porém, com fraco resultado. Reuniu a sua experiência e reflexão crítica em a História da revolução de 1848, cujo primeiro volume se mantinha ainda nas estantes da Biblioteca do Governo Provincial de Luanda (2 ex’s), quando as investiguei. Talvez a esta obra Joaquim Nabuco se referisse ao falar no entusiasmo que, em 1866, o tomou lendo livros relacionadas com a revolução francesa e citando, como primeiro autor, Lamartine.


Em Angola, num arco temporal mais vasto e posterior ao pesquisado no Recife, encontrei várias referências a Victor Hugo (1802-1885), dos escritores mais influentes em todo o século XIX e em toda a lusografia. Há, na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, um exemplar de uma edição de 1846 e outro da de 1866 das Œuvres, mas não tenho informações sobre a história dos livros (quando lá chegaram, sobretudo). Havia, num espólio de Benguela de 1855, duas outras obras: Han de Islândia – um livro de juventude, melhorado em 1823, quando saiu – e Nossa Senhora de Paris (Hugo, 1831), um livro que aborda essencialmente, segundo o autor, o problema da superstição, mas que se desenvolve sobre uma intriga gótica e novelosa – convergência que terá atraído bem maior número de leitores e de leitoras. Curiosamente, ambas eram narrativas em prosa, género em que Victor Hugo tem uma linguagem mais corrida, natural, e em que a visualização da estória muitas vezes aproxima-nos da de um filme. 

Han de Islândia é particularmente importante, não só por se tratar da novela que lançou o jovem escritor como, sobretudo, pela sequência de pequenos capítulos ou cenas, ou episódios, estrutura que veio a ser a dos folhetins em jornais. Essa sequência contrasta perspetivas e visões diferentes das mesmas personagens em situações diferentes, ou em situações idênticas e vistas por outras personagens, conduzindo a narração, a partir de cenários divergentes, para um mesmo ponto. Trata-se de um tipo estrutural atuante em posteriores narrativas suas e, particularmente, em Les misérables, a obra de consumação, também constante das nossas fontes em edição atualizada. Penso que veio a ser uma organização narrativa muito comum no folhetim e no romance dos séculos XIX e XX, apontando-a Fidelino de Figueiredo como tendência dominante nas narrativas escritas entre 1918 e 1939 (Figueiredo, 1944). Embora não a tenha criado nem desenvolvido (já se desenvolvera com as novelas do século anterior e as do seu tempo), Victor Hugo deve ter contribuído fortemente para tal sucesso.

Nossa Senhora de Paris: 1482 era mais conhecido como O corcunda de Notre Dame, o que marcava um tipo maioritário de apetência no mercado leitor. Sendo igualmente uma reconstituição histórica, o autor gasta muitas páginas com isso, logo desde o início, reproduzindo de quando em quando frases em francês antigo (parece-me que até em jargão antigo – não sei onde foi buscá-lo) e recorrendo, necessariamente, a muitas descrições. Por sua vez as frases, em geral curtas e rápidas na prosa inicial de Hugo, são ali, frequentemente, mais compridas, colocando-se vírgulas onde se podia colocar pontos, requerendo uma retenção na leitura que a torna mais pesada. Isso tudo faz alguns trechos do livro cansativos, pelo menos para um leitor que não esteja interessado na componente histórica, nem em frases com demasiados detalhes e vírgulas. O leitor saltaria, possivelmente, alguns dos períodos ou parágrafos mais longos, ou pelo menos havia de lê-los por frases curtas, ignorando as vírgulas e marcando as pausas pelo seu próprio ritmo de pensamento. A narrativa passava, então, a viver do exotismo endógeno (de que o romance histórico romântico muito se sustentou), da intriga novelesca e das sugestivas caracterizações físicas e psíquicas das personagens, bem como da filmagem das suas ações. A propósito, a “revista de Edimburgo” resumia assim, em 1833, as considerações acerca do livro:
Notre Dame de Paris, que foi muito admirada, contém rasgos de génio, uma bela pintura da arquitetura da meia idade [leia-se: Idade Média], grande barulho de homens e de costumes [a entrada da multidão no romance era assim vista pela revista escocesa], que se diz pertencerem aos tempos antigos, e que realmente não são de tempo algum. Aqui, como em todas as obras de M. Hugo, as belezas dos pormenores volteiam em roda d’uma impossibilidade: um centro absurdo e ilógico serve de eixo a uma fábula que não deixa de ter interesse. Han d’Islande vos oferecia um monstro meio urso e meio homem, com braços como uma aranha, e goela como javali; Bug-Jargal, um africano muito amoroso, batendo-se como os antigos cavalheiros, e votando-se ao amor puro. Notre Dame de Paris é animada pela presença d’uma heroína de meia idade, Esmeralda, tal como nunca, sem dúvida alguma, em 1400 viram os becos de Paris. Esta imitação da Mignon de Goethe e da Fontenelle de Walter Scott teve muitos partidistas. Com efeito, há beleza dramática na mor parte das cenas em que ela aparece; porém essa alta civilização em uma Bohemia, porém essa brandura e elegância de costumes em tal século, porém essa Taglioni transportada para uma época bárbara, são, em nosso entender, o cúmulo da inverosimilhança e do absurdo […/…] N’estas descrições [refere-se à narração do episódio mais dramático do romance] achareis M. Victor Hugo todo inteiro[12]; mas são fragmentos e o todo de suas obras está longe de oferecer a unidade e harmonia que caracterizam os primores da literatura.
(Redação, 1839 pp. 157-158)
Todas as outras obras de que vi referência, ou que li mesmo lá onde as encontrei, são publicadas de 1863 em diante. Desse ano há um exemplar da edição de Paris, da Hachette (2 volumes), de Les contemplations (que abre com um equilibrado poema dedicado a André Chénier[13], o qual é o V na edição de 1856, a primeira). Esta edição será similar, provavelmente, à que possuía Antero de Quental, que era de 1868 (Fraga, et al., 1991 p. 22). De 1866 havia, na antiga Biblioteca Municipal de Luanda, uma edição de Les misérables, em dois volumes também, que foi a primeira ilustrada e começou a distribuir-se por encomenda ainda em 1865. Todas vieram a público a tempo de serem lidas pelos poetas e prosadores do Jornal de Loanda (incluindo Pedro Félix Machado, se aí o quisermos incluir), mas nenhuma antes das Espontaneidades, que, em termos de linguagem, estão mais próximas de Hugo do que os primórdios do romantismo em Portugal e no Brasil. Podemos dizer que em Angola, julgando pela pesquisa feita, ele começa a ser lido a partir dos anos 50 do século XIX, ou melhor, há provas que atestam a circulação da bibliografia de Victor Hugo desde, pelo menos, 1855. Mas estes dados são, como tenho dito, relativos. A diferença entre o lido, o registado, o anunciado e os livros que, provadamente, circularam, subsiste. Por exemplo, antes de 1855, Maia Ferreira leu Victor Hugo e é possível que tenha posto a circular alguma da sua poesia quando em Luanda e Benguela. O pai de Pedro Félix Machado, muito provavelmente também, numa das suas inúmeras viagens ao Brasil terá comprado o Bug-Jargal, ou as Oeuvres que o filho leu depois em Luanda.

Uma leitura do fim do século XIX que particularmente me interessa referir aqui é a de Os operários do mar, obra que isoladamente aparece em duas bibliotecas de Luanda com edições contemporâneas. Foi também referência no Brasil e em Portugal. Talvez a palavra operários tivesse já ganho uma conotação mais forte, não sei, mas o título original era Les Travailleurs de la mer e dele temos um exemplar na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda. Por isso, penso, Machado de Assis o traduziu como Os trabalhadores do mar, em título publicado (em folhetim e depois em volume (Hugo, 1866)) no ano em que chegou ao Rio a sua futura mulher, havendo ainda uma terceira tradução do mesmo ano, Os homens do mar (Hugo, 1866).

Um dos exemplares encontrados em Luanda mostra como o livro e a literatura estavam disseminados por toda a colónia. A edição foi feita em Lisboa (na Imprensa Tipográfica), em 1890, a partir de uma tradução de Francisco Ferreira da Silva Vieira (Hugo, 1866). Ora, na primeira página há um carimbo: “João Ferreira Duarte Leitão / Mossamedes” (hoje Namibe). O exemplar guarda-se no Arquivo Histórico Nacional. Portanto foi de Lisboa até Mossâmedes (não sei se diretamente) e daí veio para Luanda (não sei se diretamente).

Na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda encontrei a edição francesa com “desenhos de Chifflard”[14]. Curiosamente, a maioria dos volumes de Hugo ainda existentes na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda é de edições francesas, mesmo quando havia traduções em português. Isso mostra que a Angola urbana desse tempo colonial não se resumia a degredados ignorantes, aventureiros iletrados e escravos analfabetos. A literatura, mesmo lida em francês, era comentada e repetida oralmente em português, ou em português e quimbundo por exemplo, transportando assim provérbios, imagens, poemas, analogias, conceitos, entre a semiosfera escrita predominantemente europeia e a semiosfera oral predominantemente banto, como também no sentido inverso, que depois se havia de inscrever, mais ou menos subtilmente, na escrita até que o gesto se tornasse claro sinal de nacionalidade e de nacionalismo, cerca de cem anos mais tarde.

Outra leitura importante foi a do Bug-Jargal, que Pedro Félix Machado repetiu várias vezes quando estudante, segundo Nelson Pestana (Pestana, 2012 p. 9). Bug-Jargal surge também na sua narrativa: é o livro que o protagonista da estória – o filho adulterino – entrega à promitente amada. Nele vão colocando as secretas mensagens do seu amor, o que não me parece ter significativa relação com a intriga do Bug-Jargal. Importante também porque, segundo o próprio Hugo, esse “episódio” (inicial na carreira do escritor, escrito dois anos antes de Han de Islândia, mas publicado só três anos mais tarde) se inspira na “revolta dos escravos de São Domingos de 1791” e foi reescrito, com mais informação, por volta de 1826, ano de publicação. Nas nossas fontes o título não aparece isoladamente, mas estaria inserido nas Oeuvres.

Pergunta incómoda e extraliterária a deixar: os disfemismos de Hugo no Bug-Jargal, embora baseados em testemunhos reais, terão contribuído para tornar mais cruel o século XIX em Angola? Terão contribuído para a sua futura defesa da civilização da África pelos franceses e pelos ingleses? Para a formação do seu conceito de africano como brutal e selvagem? Relação com a literatura: terão contribuído para tornar mais prudente o ‘protesto crioulo’ (Oliveira, 1997) na poesia? Trata-se, quanto aos conteúdos, de uma obra ambígua: por um lado representa como bárbara, selvagem, sem princípios nem critérios, a revolução haitiana desse tempo. Deve tê-lo feito lembrando-se, também, do Terror em França, contra o qual se posicionou. Mas, no meio de líderes sem escrúpulos e de um povo ignorante, facilmente manipulável, esculpe com escrúpulo e critério um herói negro, a partir de certo ponto da narrativa digno de qualquer etiqueta cavalheiresca da Europa medieval, tão coerente como o herói branco e muito mais prudente que ele. No entanto, é verdade, há personalidades contrárias à generalidade dos seus povos e os povos são constituídos por personalidades muito variadas…

Bug-Jargal, como Han de Islândia, é uma narrativa incisiva, com frase curta e sem detalhes inúteis. Esta característica, inicialmente agradável, atingirá o seu cume (já menos agradável) em Les misérables, na descrição do quarto do bispo Myriel (capítulo VI), que se resume à enumeração das peças e do seu posicionamento relativo, como se fosse indicação de cenário para teatro (Hugo, 1862). Ou seja: em certos momentos o autor, pecando por exagero, transformará a vantagem, que é o seu domínio das formas curtas, em desvantagem, acumulando frases breves e sem detalhes umas sobre as outras, mas em parágrafos muito longos. É o que repetirá várias vezes nessa obra, por exemplo no começo do capítulo quatro, depois de nos dar a notícia da morte de monseigneur Bienvenu. Referindo-se à dedicação fraternal extrema, gasta bem uma página enumerando gestos, situações, atitudes, solicitudes em minudências e exclamações que não faz falta nenhuma estarem todas ali, muito menos acumulando-se entre vírgulas em parágrafo longo. Mas o tipo de frase (curta, incisiva, sem detalhes) é o mesmo dos livros iniciais, onde foi bem trabalhado.

Les misérables é uma súmula, sem dúvida, a súmula das virtudes e defeitos de Hugo, do seu faro certeiro de escritor impulsivo e dos exageros do que pretende impressionar, havendo, por isso, de se tornar repulsivo para mais do que um leitor. O livro tem frases longas como curtas, breves e incisivas como alongadas e meramente retóricas. Os seus episódios também são, geralmente, esticados para puxar ao máximo possível o efeito de suspensão, a expectativa, e dar quadros pormenorizados ao desenrolar da ação. Em Bug-Jargal e Han de Islândia, pelo contrário, predominam episódios relativamente breves, ou mesmo breves, criando um suspense de folhetim ou de novela, valendo-se muitas vezes do acaso (o que era comum nesses subgéneros, ou nessas espécies), ou do capricho de personagens, como de um deus-ex-machina que tornava natural uma sequência forçada, ou melhor, uma sequência para a qual o autor não encontrou motivo lógico e intrínseco. Tanto numa quanto em outra destas narrativas, porém, se notavam já sinais dos defeitos que lhe apontaria a Edimburgh review.


Infelizmente Victor Hugo marcou o romantismo angolano nos aspetos menos interessantes para poetas líricos. O nosso romantismo não viu nele o mesmo que Antero de Quental (Machado, 1986: 85), ou a poesia realista (Figueiredo, 1924 p. 87), ou O Aristarco portuguez, para quem Os miseráveis eram “o primeiro poema social deste século” (Anónimo, 1868 p. 6). Surgem, mesmo na lírica, poemas panfletários em Hugo (que influenciaram vários portugueses, por exemplo Mendes Leal), cheios de menções a situações abjetas, extremos de injustiça resumidos a duas ou três frases dramáticas, invetivas e exclamações retóricas que deixaram (má) escola nas literaturas lusófonas até muito tarde. Mas havia, sobretudo, um discurso, já não lírico, meramente palavroso, quando não denúncias sociais que se resumiam à sugestão de dramalhões para impressionar imediatamente, rapidamente, como sucede no poema XVIII («Intérieur») do Livro Terceiro (dedicado às “Lutas” e aos “Sonhos”, melhor a “Les Luttes et les Rêves”), ou no (mais cansativo ainda e pesado) poema II do mesmo Livro, intitulado «Melancholia»  (Hugo, 1856).

Chamo de infeliz a sua marca entre nós porque se consumou mais pelos defeitos do seu estilo, pela artificialidade, o facilitismo sustentado no exagero, o egocentrismo, a falsa humildade e o autoelogio em que se enreda querendo fazer da poesia uma espécie de “memórias de uma alma” de poeta (Hugo, 1856), mas de uma alma que delira na sua autopromoção (leia-se, por exemplo, o poema «VI - La vie aux champs», de 1840 (Hugo, 1856)). Vargas Llosa, comentando Os miseráveis, que é sem dúvida a sua grande obra e uma obra superior do seu século, retratou muito bem o narrador:
Omnisciente e exuberante, o narrador é também um narcisista, um exibicionista nato. Não consegue parar de mencionar-se, de citar-se, de lembrar-nos que está ali e que é ele quem decide […]. Sua silhueta se antepõe continuamente à dos personagens, até apagá-los. Suas artimanhas para exibir-se são múltiplas. A mais comum: a falsa modéstia, dizer-nos que não quer estar ali ou que as opiniões que ouvimos são de um personagem, não as suas […]
Estas caraterísticas não se devem só ao narrador específico de Les misérables – um narrador interventivo, que interpela constantemente o leitor e a si próprio, denunciando muitas vezes a narração, parcialmente ao jeito de Sterne, parcialmente ao jeito das crónicas medievais, em particular as peninsulares (e não por acaso Hugo foi criado em Espanha, de onde trouxe muitas leituras, tendo se exilado, mais tarde, em Inglaterra – e dessa marca da cultura espanhola, sobretudo a popular, nos trouxe várias passagens para Les misérables e Notre-Dame de Paris).

Os traços característicos desse narrador, ali comentados por Llosa, aplicam-se perfeitamente à encenação enunciativa do poeta lírico em Les contemplations. Esse é o sujeito que se compraz em acertar em cheio na imagem visual, ou na analogia, que funciona como um dito ou aforismo (“Tout feu qui brille est une âme” (Hugo, 1856)) que o público espera (e há fogo que não brilhe? E é tão velha e repetida essa conotação entre a chama e a alma, até dos mortos) que, no entanto, funciona como chave de ouro porque o poeta nela se revê genial em face de um leitor (ou leitora) que espera mesmo isso dele: a brilhante repetição do já dito. Falta-lhe a compreensão (pelo menos a intuição) das ligações entre analogias de longo alcance e o sentido mais profundo da religação, quer unindo os poemas por um fio de sentido inusitado, quer entre existência (representada pelas imagens) e ‘mais além’ (representado pela impossibilidade ou limite da imaginação, quer dizer, da realidade visual). Era o fazia, por exemplo, Lamartine, nas Harmonies e nas Méditations. As analogias orientadas (pelo que chamei de “sentido mais profundo”) sugerem aos leitores um alcance semântico para lá da própria linguagem, no qual a vida, coletiva e pessoal, aparece como em um caminho longo, ou num todo, aberto mas com rumo, inclusivo, totalizante mas indizível, indescritível – e, no entanto, orientado. Este é o sentido que dá o ‘fecho’ a um grande poema, o que nos atira para mais além do que sugere ao longo das linhas, ou no final dos versos, como faz o próprio Hugo no número VII do Livro Sexto de Les contemplations. Na sua ausência teremos, talvez, as variações em dó menor que são os poemas de autopromoção e vanglória.

Aquilo em que penso foi melhor dito, comparando Göethe e Hugo, por José Marinho (neste aspeto fundamental superando a análise demolidora de Baudelaire e Benjamin). Segundo o filósofo português, o poeta alemão tinha uma natureza sensual mas cognitiva, ardente mas compreensiva, ao passo que o francês era um invertebrado, apenas emoções (“l’esprit, c’est le coeur” (Hugo, 1856)). Faltava-lhe a ligação das emoções a uma razão mais funda que lhes apreendesse o sentido e as religasse a uma visão englobante e inquiridora. Penso que isso resulta da (ou se ilustra na) conceção de lírica exarada no prefácio à primeira edição de Les contemplations (Hugo, 1856 pp. 16-19), que seria a francesa e não a belga. Resulta nessa conceção e não se supera no poema-manifesto «Réponse a un acte d’accusation» (poema VII do primeiro livro de Les contemplations), nem nos que lhe dão continuidade (VIII-IX). Ali, o elogio da palavra não passa da palavra e da palavra ao mesmo tempo, miticamente, inspirada e livre, autónoma, religiosa por si própria e em si própria, autárquica. Leia-se, por exemplo, o poema VIII, «Suite» (Hugo, 1856), do livro inicial, pelo seu pathos, pela passagem que ela dá (“Le mot, c’est Dieu” reiterará no fim (Hugo, 1856 p. 179)), não se pressupondo que uma visão holística venha englobar as palavras através da sintaxe doutrinada, orientada, formalizada para uma abertura com sentido original (ao ler “original”, atente-se ao peso etimológico da palavra na obra de José Marinho).

É, de resto, sintomático o uso e abuso que a lírica de Hugo faz das perguntas retóricas, saturando os poemas (atente-se ao primeiro da sequência IX, «À la fenêtre pendant la nuit», do Livro Sexto (Hugo, 1856)). É que ele não quer saber a verdade, essa já a terá adquirido e vai comunicar-nos com muitos pontos de exclamação (herdados em parte por Maia Ferreira). Nada mais era de esperar dessa personalidade que nos assegura, a propósito de Delavigne[15]: “nós tornamo-nos artistas ou poetas pelas coisas que encontramos em nós”. Esse poeta-super-homem “tira de cada coisa um ensinamento e uma explicação”, que nos dará a ver como inspirado, vate, dono da sabedoria (Hugo, 1875). Não nos concentra nunca numa verdadeira pergunta, mas em palavras-imagens que são respostas acabadas, perfeitas, a nenhuma pergunta e a qualquer uma. Não parece haver nele essa inquietação com a verdade, ou acerca da verdade, que nos leva a deixar em sugestão, suspensão, completável o final do poema. Isso faríamos se, em consciência, em reflexão, em speculum, não tivéssemos maneira de expressar uma resposta cabal, nem tivéssemos essa resposta, mas apenas a intuição ou inquirição de um rumo. É o que o próprio Hugo faz no poema VII (sem título) do Livro VI («Au bord de l’Infini»), de Les contemplations, poema escrito em “Jersey, septembre 1855” e que termina assim:

Il vit l’endroit sans nom dont nul archange n’ose
Traverser le milieu,
Et ce lieu redoutable était plein d’ombre, à cause
De la grandeur de Dieu.

É certo que, mesmo então, o poeta ainda é suficientemente sábio e convencido para nos dizer (em vez de sugerir) o que está onde ninguém chega. Mas o que está lá são sombras, pois a grandeza de Deus não permite ver ali bem, nem mesmo a um vate. Ficamos, então, finalmente, perante o grande ponto de interrogação, a pergunta que nunca se resolve: quem é Deus?

Mas esta pergunta não é transversal à sua poesia, não a sacode nem a atravessa ou liga toda, acende e apaga à semelhança das estrelas e dos pirilampos. É fatal a ausência de um pensamento profundo, orientado mas interrogativo, que reunisse os achados felizes das imagens perguntando-lhes por um sentido comum, espargindo sobre elas, atuando com elas e suscitando a interrogação. Victor Hugo parece falar, por exemplo, como se soubesse muito bem quem é Deus, como se conhece, como atua, etc.. Essa ausência de inquietação, também de perquirição de rumo, faz da sua autobiografia sentimental uma lírica mole, viscosa, que ora diz uma coisa, ora outra, ora aponta num sentido ou numa definição, ora em outra, que não tem coluna vertebral, é como um oceano criando linhas de espuma aleatoriamente. As imagens-alegorias atingidas, muitas vezes extremamente eficazes em si próprias (eficazes esteticamente), são meras ebulições, ou bolhas de sabão que se desfazem no ar. Apesar de programada, a reunião de poemas em livro não consegue resolver isso e nos dá, sob a justificativa de biográfica transparência, uma sucessão que se perde entre reiterações e inconstâncias sem que a programação prévia da sequência, que parece dominar o começo das Contemplations, esteja garantida por uma teoria, uma visão global que organiza as imagens em função de uma dispositio sugestiva. Assegurando o afeto do leitor a partir de imagens emotivas e concludentes, ele descura a nóia aristotélica, vertente fundamental, não só da tragédia, mas da poesia. Aproxima-se talvez dela em alguns poemas do fim dessa pretensa autobiografia lírica, mas ainda são florações momentâneas, impulsos e reminiscências que tiveram tónus para se manter à tona por algum tempo.

Dada a presença das Contemplations entre nós e a metalinguagem recorrente nelas, escolhi esse título para considerar possíveis aproximações e afastamentos com a lírica produzida em Angola no século XIX. De resto, o caráter antológico e autobiográfico da obra integra e resolve as parcelas anteriores. Atente-se agora, com algum pormenor, à sua programação.

Primeiro ele nos explicará que o livro se foi compondo no dia a dia, por alguém romanticamente concebido como “l’être incliné qui jette ce qu’il pense” (ou sente, supõe-se (Hugo, 1856 p. 167)). O poeta iria coando para dentro dele as emoções marcantes da vida, desde a juventude à velhice como se de um morto, já, se tratasse (quem o diz é o autor). Em seguida, Hugo dispenderá dois parágrafos a repetir que essa vida é a “dos outros homens também”, na medida em que trata poeticamente o percurso e os sentimentos habituais da juventude, da maturidade e da velhice. Sábia apreciação, destinada sem dúvida à conquista do mercado e não representando o mito romântico do génio, antes apregoando aquela falsa humildade que os poemas depois tratarão de desmentir conotando-o com “o poeta” e o poeta com o que revela a verdade, aponta o caminho, sonha pela humanidade… e

N’importe: je m’assieds, et je ne sais pourquoi
Tous les petits enfants viennent autour de moi.
Dés que je suis assis, les voilá tous qui viennent. 
 
(Hugo, 1856 p. 9)

Seria mel, certamente, o poeta como rebuçado, ou a série de baboseiras que escreve a seguir.

Concentro-me no começo do livro porque ele é sintomático. A primeira parte do primeiro volume, «Livre Premier – Aurore», começa por três poemas: o inicial é dedicado à sua filha. Segue-se outro em que se exalta a si próprio pela figura do poeta, o sonhador, que toda a natureza saúda maravilhada quando o vê chegar. O terceiro foi dedicado às “minhas duas filhas”. O primeiro vem datado de “Paris, octobre 1842”, o segundo de “Les Roches, juin 1831” e o terceiro de “La Terrasse, près Enghien, juin 1842”. Um quarto poema nos mostra a infinita harmonia da natureza e vem datado de “La Terrasse, avril 1840”. Os poemas seguintes, incluindo o V (a André Chénier) são metapoemas, ou seja, desdobram-se em teses acerca da palavra (poética, certamente), do poeta (o próprio, claro, mas apresentado como geral) e da obra poética.

A sequência dos poemas e das datas revela uma conceção de conjunto que parece intencional e não é cronológica. Suporíamos que fosse, porque ele nos houvera dito, no prefácio, que o livro se compôs naturalmente no decorrer da vida, recolhendo poemas que lhe cairiam nas mãos como os dias no calendário. Há, realmente, outros critérios de organização, que sugerem estarmos perante um livro cujas concatenações haviam sido bem programadas. Isso mesmo se mencionou em tese recente de doutoramento em Paris (Vergé-Gryner, 2012 pp. 337-361), aventando-se a possibilidade de Baudelaire, em Les fleurs du mal (Baudelaire, 1857), ter sido influenciado pela concepção huguiana de uma recolha de poemas (Les contemplations) como sendo um livro, uma totalidade organizada, planificada, pelo menos quanto à sua edição, quanto à sequência dos poemas principalmente. Qual o critério organizador, ou critérios?

A referência à filha e às duas filhas não mostra só o extremoso amor paternal, apela a uma receção também ela emocionada e cuja afetividade se condiciona pela biografia do poeta, o seu exílio, a morte da filha em 1843 (o livro será lido a partir de 1856 e o motivo trágico dessa morte regressará mais para o fim do livro). Não pretendo sustentar discussões acaloradas e ridículas acerca do caráter de Hugo, mas observar que a disposição dos textos está feita numa ordem que suscita esta leitura previamente programada e programada neste sentido. O resultado é coerente, na medida em que o poeta escrevera que a sua lírica – pelo menos aquela – desfolhava as páginas da alma conforme elas caíam da agenda fatal para as mãos hábeis e sensíveis do escritor. A conclusão, portanto, era a de que não podia ler-se ignorando a biografia. Logicamente, os poemas biográficos começavam pelos factos biográficos mais fortes e conhecidos pelo público leitor - e, portanto, não ficavam no livro segundo a mesma ordem em que tinham caído no calendário.

Fazendo-o, Hugo estava, não só a ser romântico, mas a contribuir decisivamente para um paradigma que dominou o ultrarromantismo lusófono. Segundo ele, a poesia lírica seria uma sucessão de registos afetivos, subjetivos e expressivos de acontecimentos pessoais mais marcantes. Mesmo eventos coletivos estariam reduzidos à subjetividade e à biografia do poeta. Em Hugo isso ainda resulta, mas a tendência, na lusofonia, foi para reduzir a biografia aos seus aspetos comezinhos, a linguagem poética aos seus truques mais batidos e às suas palavras mais gastas e para sustentar a vaidade e o egocentrismo dos autores ou da receção. Maia Ferreira ainda escolheu, para falar de si, os amores ou paixões fulgurantes, fortes, e a ligação que manteve à terra, à infância, à mãe figurando uma forma embrionária de mátria. Mas a maioria dos colaboradores, por exemplo, do Almanach de lembranças, oriundos de todos os lugares onde se escrevia em português, tomavam qualquer motivo circunstancial e particular para inspiração, sua e dos leitores e, de seguida, faziam bacocamente poemas aos anos das filhas, das amigas, das senhoras fulanas de tais, com que esborratavam nos respetivos álbuns o verniz dos seus ais. Isso fizeram muitos em Angola também.

Mas voltemos a Victor Hugo. O critério programador de Les contemplations o levava, depois, a uma sequência de metapoemas onde enfatizava escolhas estéticas, sempre atravessadas por alusões e referências biográficas, obrigando o raciocínio a passar por fases da sua vida, rejeições circunstanciais, episódios e ódios particulares. Em vez de simplesmente se lamentar como um jovem mimado, ele podia comparar ou contrastar concepções e reconhecer a dignidade, ou os aspetos positivos, daquelas a que se opôs e em que medida foram pertinentes o suficiente para durarem e que raciocínio estético o levou a afastar-se de outras escolhas. A sua exposição ganharia se fosse além das frívolas queixas do estudante que queria namorar e tinha de ler um clássico Horácio por castigo. Até porque, entretanto, ficara nele, poeta, a certeza de uma “art infini, / dont jamais la loi ne change”, como escreveu no poema a Froment Meurice[16] (Hugo, 1856), reiterando (sem dar por isso?) o melhor fundamento para se defender e praticar um …classicismo, de resto exemplificado no próprio ourives e, mais uma vez, no poeta-Hugo:

Le poète est ciseleur;
Le ciseleur est poète.
Poètes ou ciseleurs,
Par nous l’esprit se révèle.

Para piorar as coisas, Hugo não veio só para leitura direta, estava embrulhado nos versos de outros e Cândido Furtado é um exemplo típico, importante porque precedeu de perto a geração de 1878, ficando mais tempo no território e criando laços filiais. Os seus versos amaneirados ondulavam cheios de gordurinhas desmazeladas como vermes impúdicos, inchados por autoconvencimento sob a capa de uma estudada humildade e autocomiseração, no meio de mimetismos surrados, inflados e com florinhas para as amigas das mais variadas cores (aí reside, nesse nível dos motivos femininos, o seu contributo estético decisivo e positivo).

O enfraquecimento da conceção huguiana das Contemplations estava também na previsibilidade e no prosaísmo da sua lírica (“prendre à la prose un peu de son air familier”, como diz no poema a André Chénier (Hugo, 1856)). No popular escritor francês havia já essa mistura de poético e de prosaico, gerando frases e versos que, alguns, nem soariam naturais no quotidiano, mas são prosaicos na poesia:

Autor de moi, nombreux,
Gais, sans avoir souci de mon front ténébreux,
Dans ce champ, lit fatal de la sieste dernière
Des moineaux francs faisaient l’école buissonière.
C’était l’éternité qui taquine l’instant.
[…]
Je criai : - Paix aux morts! vous êtes des harpies.
– Nous sommes des moineaux, me dirent ces impies.
– Silence! Allez-vous-en! Repris-je, peu clément.
– Ils s’enfuirent; j’étais le plus fort.

A princípio ainda hesitamos, pois há momentos de fala nobre ou trágica, do que seria uma fala nobre na Odisseia de Homero por exemplo. Mas logo tudo se desfaz nesse meio-termo que, não sendo propriamente fala quotidiana, também não chega a ser poesia e, para rematar, a prosaica jactância fecha o breve episódio: “j’etais plus fort”.

Apesar disso, ele próprio se vangloriava de trazer o prosaísmo à lírica, de forma extensa e explícita em «Réponse à un acte d’accusation», poema datado de “Paris, janvier 1834.” (Hugo, 1856) Nesse poema-manifesto de ataque à poesia académica (“guerre à la rhétorique et paix à la syntaxe!”), que vai ribombar ao longo de outras páginas em ecos metrificados, ele se vangloria de mudar a língua poética juntamente com o estilo e, aí mesmo, usa versos meramente prosaicos, que submete ao ritmo trucidante e autoritário dos alexandrinos, tão diferentes dos ágeis, elegantes e variados de André Chénier, que muito o marcara tecnicamente (mas a graça não se adquire) e que já tinha introduzido uma fala prosaica no verso. É claro que teria havido romantismo e prosaísmo em França mesmo que não tivesse havido Victor Hugo e esse romantismo iria mudar o estilo praticado pelas gerações antecedentes, mas ele tem de se colocar no papel de O Protagonista. Isso é que centralmente organiza a sua textualidade.

Tanto assim está que nem repara numa incoerência gritante: critica a mecanização e os grilhões da rima e do ritmo na poesia anterior, oferecendo a alternativa da inspiração nos ritmos vivos e populares, mas cai também, como Guerra Junqueiro muitos anos depois, no facilitismo proporcionado pelo uso e abuso de dodecassílabos compostos (no caso de Junqueiro, e da poesia portuguesa, decassílabos compostos), que, podendo ser muito franceses, não eram propriamente ritmos do povo, me parece. Para mim, porém, o mais importante é o efeito estético, neste caso o enfraquecimento do efeito estético pela repetição mecânica do verso que, junto a prosaísmos menos poéticos, o levava talvez ao limite da própria estesia artística. Seleciono apenas um exemplo dos prosaísmos a que me refiro. Está no começo do poema «Lise», também da Aurora (do seu poema XI) das Contemplações (e datado de “Mai 1843”):

J’avais douze ans; elle en avait bien seize.
Elle était grande, et, moi, j’étais petit.
Versos sem poesia nenhuma, com uma ponta de ridículo até, longe da sugestão estética destes outros, menos prosaicos sem dúvida, mas poéticos:

Le jour s’enfuit des cieux; sous leur transparent voile
De moments en moments se hasarde une étoile;
La nuit, pas à pas, monte au trône obscur des soirs
(Hugo, 2001)

O prosaísmo, na lírica de Hugo, era salvo geralmente por uma articulação habilidosa de todas as componentes de um poema, que levava o leitor de um cenário corriqueiro a um sentimento ou emoção paradigmáticos, imaginados num quadro final de feliz coincidência de elementos como nas alegorias. Nos seus imitadores este prosaísmo cairia, inevitavelmente, na mecanização geral de articulações consagradas e esperadas, na poesia de robot que atola e entulha a história da literatura. Entre os não-imitadores, mas fortemente influenciados por Hugo, no Romantismo, já não se passa tanto isso, principalmente se pensarmos nas Folhas caídas de Garrett (sem dúvida mais poéticas do que as “de Outono” do francês (Hugo, 1831), expostas e concebidas, também elas, como uma parte da autobiografia lírica do poeta. Podemos igualmente pensar no prosaísmo ágil, muitas vezes coloquial e adaptado a jogos rítmicos dinâmicos, enfim, na lírica, bem menos essencial é certo, de Bulhão Pato, ou na sátira corrosiva, chocarreira por vezes, de Faustino Xavier de Novaes, em que o prosaísmo tem função fulcral para despoletar o riso.

Há também na poesia de Hugo uma mistura de prosaico e de arcaico, “au gouffre obscur des proses”, como diz no poema «Suite» (Hugo, 1856), sintetizado o arcaico no terceiro destes versos do poema-manifesto que citei:

J’ai fait plus: j’ai brisé tous les carcans de fer
Qui liaient le mot peuple, et tiré de l’enfer
Tous les vieux mots damnés, légions sépulcrales
“legiões sepulcrais”, hoje, tornar-se-ia gótico e, de certa forma, já o era nesse tempo, sobretudo referindo-se com a expressão as “mots damnés”. Porém, Victor Hugo realizava essa mistura, muitas vezes, ainda com uma ironia fina: “André, c’est vrai, je ris quelquefois sur la lyre”, como escreve, em tom familiar, no poema a Chénier (Hugo, 1856). Essa ironia, não sempre, mas muitas vezes incidia sobre o quotidiano, (politizado quando nobre ou burguês), o popular e o rural (ou marítimo) que tão bem retratou, com vivacidade, em alguma da prosa narrativa, da qual Cândido Furtado podia ter sido uma enfatuada personagem ridícula. Gasta, aliás, muitos parágrafos a grafar os tiques e os toques do quotidiano mais ou menos citadino ou suburbano (“Bah!”), exibindo o seu conhecimento desse nível da linguagem com o egocentrismo de sempre. Vangloriando-se de ter sido o precursor (em trinta e quatro anos) de Balzac e de Sue, ao “fazer seus personagens usarem jargão no romance” (Llosa, 2012 p. 31), ele começara já “a nivelar a diferença entre as palavras da linguagem corrente e as da linguagem elevada”, aliás na sequência dos poemas de Chénier, que fez o mesmo com mais moderação e mais elegância. Mas a linguagem corrente do nosso Furtado (e, por vezes, a de Hugo) sabia também ao ranço de outras eras, com saudades de casticismos esquecidos. De maneira que, apesar de Hugo ser “o primeiro a dirigir-se à multidão”, bem como a trazer esse “objeto novo [a multidão] na poesia lírica” (Benjamin, 1989 p. 56), mesmo em títulos como Os miseráveis e Os trabalhadores do mar (ambos constantes das nossas fontes em edições francesas), a sua fala não era sempre urbana, corrente, apesar das frases curtas e da coloquialidade, nem era propriamente a multidão sua personagem (foi, de maneira intermitente, em Nossa Senhora de Paris), mesmo que tais narrativas lhe permitissem “competir com o romance de folhetim”. E aqui a principal razão de ser da sua influência: ela compete com o romance de folhetim.

Compete incluindo na linguagem, mais próxima de Salústio, se não do latim vulgar de Plauto, do que de Cícero, entre os modelos romanos comentados por António Pereira e a que fiz referências atrás. Na prosa narrativa, sobretudo na inicial, ele recorre sistematicamente a uma linguagem incisiva e breve, que diz só o que é preciso para o avanço da estória e lhe traz, assim, um ritmo que, infelizmente, mesmo com todos os prosaísmos, Hugo não conseguiu no verso, prolongado ou acantonado em alexandrinos compostos por inércia. Nos romances de frases, períodos e parágrafos mais longos, os períodos e parágrafos escandem-se, frequentemente, por unidades sintático-rítmicas mais curtas que, separadas embora por vírgulas, acabam simulando períodos curtos. Exemplifico, numa passagem que serve também para explicar porque falei em Salústio:
Puis ils allèrent à Saint-Cloud par le coche, regardèrent la cascade à sec, et s’écrièrent: cela doit être bien beau, quand il y a de l’eau ! déjeunèrent à la Tête-Noire, où Castaing n’avait pas encore passé, se payèrent une partie de bagues au quinconce du grand bassin, montèrent à la lanterne de Diogène, jouèrent des macarons à la roulette du pont de Sèvres, cueillirent des bouquets à Puteaux, achetèrent des mirlitons à Neuilly, mangèrent partout des chaussons de pommes, furent parfaitement heureux.
A par disso, aumenta as apostas na criação de suspense (do que a passagem acima não dá exemplo) e de enredos embrulhados, entrecruzados, labirínticos quase, como sucede com certos folhetins populares. Assim continua a rentabilizar caraterísticas do folhetim (e da novela setecentista) para manter cativa a leitura, compensando a distensão e o alongamento sintáticos.

Entre nós, só figuras de exceção (não estou a falar em figuras excecionais), como Pedro Félix Machado (que foi o escritor mais diferenciado da sua geração), com intermitências Cordeiro da Mata (que desenvolveu diferenciações líricas sem sair do modelo), ou Silvério Ferreira (já realista e republicano), escapavam à leitura fácil do lírico V. Hugo, quando nele dominava a linguagem comezinha, ou a retórica sentimental e balofa ao mesmo tempo, caseirinha e pretensiosa, cheia de exclamações, invocações, interjeições e invetivas dramáticas, com todos os conteúdos autocentrados ou dramatizados – o piorio, entretanto, bem embrulhado e harmonioso para o leitor não sofrer indigestões, ou, sofrendo-as, a sobremesa doseada por um humanismo ideal aparece logo em seguida, sem soluções práticas, a flor rimando com o amor e a natureza feliz esmerando-se muito para além da raiz, “la paix de la grande nature” (Hugo, 1856) – como se na “grande nature” os animais não se comessem uns aos outros. A idealização da natureza, tornada emblema de paz e de harmonia, só era possível para uma classe que não cultivava o campo nem tinha que defender a cultura. Ela vinha já do século anterior e o Romantismo, uma parcela do romantismo (a que não entronca em Bocage), levou-a a um extremo que só pode ser ridículo visto à distância, mas era o ponto de fuga para a neurastenia e a hipertensão das cidades europeias ao tempo da revolução industrial. É esse tipo de compensação que faz o macropoema «Saturno», o terceiro do Livro Terceiro de Les contemplations, em particular na sua segunda secção (Hugo, 1856). A idealização ridícula da fera na composição «Insomnie», integrada no Livro Terceiro e datada de Junho de 1842, constitui outro exemplo de compensação satisfatória que torna cómodo e familiar o perigo, doméstico seja ele qual for. O poema fecha com uma das imagens-conceito perfeitas, acabadas e belas de Hugo, mas ela ficaria melhor acabando um poema de amor feliz do que esse outro em que se retrata o leão. Sintomaticamente, não fala da mesma fera o nosso Maia Ferreira, mas de um leão bem mais real, o mesmo que, mais de um século antes, deve ter sido avistado pelo capitão Cadornega.  

Como diz W. Benjamin, que alimentava uma nítida má-vontade contra o romântico francês, o próprio 
frémito cósmico em Victor Hugo nunca teve o caráter de espanto nú que visitava Baudelaire no spleen. Vinha, para o poeta, de um espaço de mundo em harmonia com o interior em que se sentia como em casa.
Este sossego doméstico, esta familiaridade é fatal para a poesia, na medida em que falsifica a própria dimensão da harmonia, porque a substitui por um sonífero, portanto neutraliza-lhe as tensões de que vive e que proporcionalmente equilibra. Ora, o que os imitadores e divulgadores de Hugo geralmente apanharam em Angola foi o sonífero.

Sirva de exemplo – para vermos o quanto perdíamos nessas glosas – a “versão livre” que nos dá Cândido Furtado do poema «Relligio» (Hugo, 1856). A peça é daquelas, a meu ver, onde a lírica típica do estro huguiano atinge um momento quase de perfeição, contendo-se o ímpeto para não ir além do necessário e conduzindo-nos a sensibilidade para a imagem final arrebatadora, icónica, imagem-chave de compreensão do seu paganismo, se é que assim posso falar, ou da sua religião cósmica, ou do seu panteísmo – que tudo são glosas também, com as quais a pretensão reduz a um pobre conceito uma imagem superior que não se desenvolveu.

O leitor agora pode consultar, além de Les contemplations, a versão de Furtado, constante no anexo II. Da comparação resultará uma conclusão de tal maneira evidente que dispensa comentários. Perpassa por ela, malgré lui, esse “frémito cósmico” tipicamente huguiano, mas tão esbatido como o encarnado numa pintura que perdesse a cor. O glosador, ou versionista, justifica à irmã (no poema original Hugo justifica a Hermann) porque não reza: porque Deus é o cosmos, ou está nele (“O templo é esse... o espaço infindo!”, versão de Cândido Furtado para “l’église, c’est l’azur”). Logo a seguir lhe explica também qual é o sacrifício religioso: “«O sacrificio... vê!» ia  surgindo / a lua toda envolta em casta luz!” (versão de
[…] et quant au prêtre… —En ce moment le ciel blanchit.
La lune à l’horizon montait, hostie énorme.)
Hugo não menciona o sacrifício, mas o padre, o sacerdote, o oficiante oculto fazendo surgir a lua; e a cerimónia: a hóstia enorme subindo. É claro que a hóstia simboliza o corpo de Cristo e, por um tanto já longínquo, o sacrifício, mas Hugo não precisa de mencioná-lo, nem isso lhe dá jeito, pois iria perturbar a coerência do poema, diminuindo simultaneamente a sua capacidade sugestiva. A lua é a hóstia só, para nos concentrar a imaginação na analogia meramente visual entre a hóstia e a lua, ambas vistas, não como sacrifício, mas como rito, ofício no sentido nobre da palavra e, também nesse sentido, como dádiva – mas sem nada se ter sacrificado, nem sequer o desenho circular das duas (hóstia-lua). Sacrifício, para Cândido Furtado, é sinónimo de hóstia. Ele faz equivaler um conceito, ligado à estória trágica e dolorosa da morte de Deus-filho, a uma imagem que não tem identidade visual suficiente para isso. Hugo soube aproveitar melhor a frase “este é o meu corpo”, pois através da Lua ele está a dizer que Deus nos oferece o próprio universo como Sua realidade e, observando-o em respeito, estamos a oficiar com ele, que nos dá o seu corpo a ver. Isto é coerente, forte, sugestivo. Mas, no discípulo, a lua-sacrifício é a “hóstia imensa” (ainda próxima do original: “hostie enorme”) e, “ao vê-la”, sorria “toda a criação”. Sacrifício sorridente? Estragou tudo. Hugo fala numa vibração que atravessa e une toda a natureza viva nesse instante, o discípulo diz que a natureza toda sorria ao ver a “casta luz” da lua. Os substantivos concretos enunciados pelo mestre (“le pin, le cèdre et l’orme, /Le loup, et l’aigle, et l’alcyon») são ressequidos para substantivos abstratos, ou que indicam realidades muito gerais, muito extensas para a pequenez de “os arbustos”: “o mar, a fresca aragem, / O céu, a terra”. Hugo nomeia três espécies vegetais por nomes concretos: o pinho, o cedro, o olmo; depois nomeia dois animais, igualmente concretos e, com o terceiro, pássaro sagrado caro a Tétis como diz Chénier (Chénier, 1907 p. 50), uma entidade mítico-literária, que porém corresponde a uma das estrelas das Plêiades, estrela que seria o ‘sol central’ para os Maias e, anos mais tarde, andaria com Vénus no paraíso terreal d’Os Lusíadas. Furtado substitui a nomeação concreta por “os arbustos” (os arbustos em geral) e, portanto, retira corporeidade, visualidade, concretude à imagem. Depois introduz-lhe “o mar, a fresca aragem”. É o seu momento feliz, digamos assim, e combina bem, quer com o verão quente de certas regiões de Portugal, onde a população ia nesse tempo junto ao mar beneficiar da “fresca aragem”, quer com a paisagem litorânea de Angola. A junção de “mar” e de “fresca aragem” sugere-nos uma concretude maior, mas ainda assim vaga, indefinida. Para não nos restarem dúvidas sobre a tendência, logo em seguida o discípulo nos atira com “o céu, a terra”, na vez de dois animais concretos e fortemente simbolizados já pelas tradições europeias: “o lobo, a águia”. Para fechar o quadro cósmico, então, Hugo levanta-nos os olhos para Alcyon, mas o nosso versionista fecha aspas e, substituindo mais uma vez uma visualização concreta (“Lui montrant l’astre d’or sur la terre obscurcie”), não conseguindo simbolizar, atira-nos com um prosaísmo pedante, que diz diretamente o que quer que a gente pense: “em mystica linguagem / tudo ostentava ali grata oração!”. Para que o desastre seja completo, no final substitui
Courbe-toi. Dieu lui-même officie,
Et voici l’élévation.
por
Ajoelha, amiga!... ‚ Deus que sacrifica
«eis immensa nos ceus sua oblação!!!
Tudo se ergue para a pobre surrada lua numa “oblação”, consignada com três lanças espetadas no chão, talvez por causa, ainda, da morte de Jesus Cristo. A palavra «oblação» já pouco se dizia fora da Missa ou, talvez, do tribunal, fosse ela religiosa ou literária (já destoava no título de Torres Bandeira antes citado). Nem se arranjou uma rima para colocar ali palavra mais comum e mais efectiva, que se mantivesse viva e de sugestão mística, por exemplo «oferenda», sinónimo de «oblação». Claro que, no meio disso, vão-se espargindo reticências a acomodar o sono do leitor e trocando os passos rituais pelos pontos de exclamação, espalhados no texto com pinguinhos de chuva, a pedir aos recetores a emoção e capacidade sugestiva que fugiu ao versionista enquanto re-escrevia. Foi esta a influência de Hugo entre nós. Repito: infelizmente. Foi assim que chegou até nós.

Por via das palavras oblativas, que se ofereceram a si mesmas e mais nada nos deram, haveria por vezes, na semântica lírica de Hugo, aquela ausência de vida, ou a memória esclerosada que fica nas coisas, não velhas, mas abandonadas pelo viço dos anos verdes e de que resta apenas a retórica de um metrificado eco, de um estafado oh!, necessariamente com ponto de exclamação e, podendo ser (sempre pode), com reticências... Portanto, embora em «Relligio» Hugo soubesse evitar isso, principalmente no final, em muitos dos seus versos ele apela assim, descaradamente, a uma emoção que foi diluída por alexandrinos monótonos.

No entanto, na poesia do mestre, ao menos, vibravam certos ecos antigos e instantes entre os cacos do classicismo. Havia, contrapondo-os e compensando-os, ecos de alguns gritos de rua nos seus versos. Ecos de que Silvério Ferreira apanhará a denúncia veemente, embora descascada: “é um roubo”. A frase parece tirada dos discursos de Hugo, coincidindo num quotidiano indignado, que não precisava de poetas para se exprimir em tabernas. Como dizia Baudelaire, que sempre quis rivalizar com Hugo mas lhe percebeu algumas virtudes, “o destino levou-o [...] a transformar a ode antiga e a tragédia antiga [...] até aos poemas e dramas que dele conhecemos” (Benjamin, 1989 p. 80). De maneira que o seu prosaísmo faz com que, segundo Péguy, em Os miseráveis (um livro que o seu autor, em nota introdutória a Os operários do mar, nos diz que trata do problema do preconceito), “as tavernas do subúrbio de Saint-Antoine se assemelhem às tavernas do Aventino erguidas sobre a gruta da sibila e associadas a sacras inspirações; as musas dessas tavernas eram quase tripés, e Énio fala do vinho sibilino que lá se tomava”. São procedimentos que em J. Cândido Furtado resultam muito menos sugestivos ainda, retirados os ecos míticos e o jargão das tabernas: “me arfava o coração, ébrio d’amor!”, “vinha a lyra afagar-me” – e nunca na taberna, oh geração do pudor! Quando Baudelaire se propôs “em primeiro lugar [...] rejeitar as escórias, os impedimenta que, na maior parte das obras do passado, acinzentam o seu clarão” (Raymond, 1933 p. 19), tinha em mente, sem dúvida, Victor Hugo. Foi um tal “fundo cinzento” (Benjamin, 1989 p. 81) que os nossos versejadores recolheram no não-revolucionário francês. Aquele cascalho que alonga escusadamente os episódios, os comentários e as prédicas mesmo nas narrativas. Salva a honra da casa que teremos lido mais as narrativas huguianas (e muito em prosa) do que a sua lírica, bem pior neste aspeto e, entre as narrativas, as melhores.

Baudelaire, depois de Poe, distingue a poesia da paixão, “que é a embriaguez do coração” (o romantismo...) e a da verdade, “que é o pasto da razão”. Escreveu isso numa “passagem célebre” de «Art romantique», num artigo dedicado a Th. Gautier (1811-1872), a grande referência do parnasianismo (Raymond, 1933 p. 19) – e, supõe-se, de Pedro Félix Machado – escritor ao qual também Hugo dedicou um poema sintomático. Alguns dos nossos ultrarromânticos apanharam uma estudada embriaguez do coração e tentaram misturará-la com a poesia ‘racional’ de Gautier, que também esteve presente em ambos os lados do Atlântico. Muito poucos. Dessa dupla influência, de origem bífida mas onde a sombra de Hugo acinzenta mais do que as outras, vem-nos a fixação num efeito prosaico, intelectualizado por vezes mas banal, ou frio, sem sensibilidade (como no poema à memória do Barão de Barth), que amortece o “enlevo de alma”, a “aspiração humana a uma Beleza Superior”, “o fim e o começo da poesia” (Raymond, 1933 p. 19)  que me parecem presentes naquele quadro final da «Relligio» de Victor Hugo. De onde que o brilho do rigor formal e da exatidão vocabular do inspirador do parnasianismo se perdesse também entre as inexpressivas frases de huguianos como Cândido Furtado e a autocomiseração dos versejadores do quotidiano familiar.

O romantismo dos líricos angolenses, ou dos residentes, aparentemente, mecanizou essa intelectualiza­ção e o arrebatamento, mecanizou sobretudo o “enlevo de alma”, por exemplo enfeudando-se a expressões, metáforas e termos todos muito parecidos, que traziam uma falsa veemência a assuntos que a não pediam e a versos que nunca passavam do previsível. O resultado foi, como em França, que “a pequenez, a puerilidade”, a falta de curiosidade (“incuriosidade”), a “fatuidade”, uniam o artista “mimado” e o seu público numa contentinha mediocridade (Oliveira, 2006 p. 31). A linhagem mais marcadamente estética e “psíquica” iniciada, para a francofonia, por Baudelaire, ficaria fora do nosso século XIX, apesar de em França As flores do mal se terem tornado “um clássico” na segunda metade desse século. O mesmo (o afastamento da linha baudelairiana) sucedeu – com menor intensidade, é certo – com as três gerações românticas brasileiras (salvo raras exceções) e com o ultrarromantismo português. Teófilo Braga, arvorado em arauto dos realistas portugueses, ainda menorizava Baudelaire, vendo-o apenas pelo prisma do ‘mal do século’, que ele relia nas Odes modernas de Santo Antero: “um pessimismo à Baudelaire, fácil de imitar e mais fácil em iludir o gosto dos que aspiram a uma ordem nova” (Braga, 1877 p. XVIII). Desconfio que essa tal ordem nova, a julgar pela poesia do próprio crítico, se reduzira por sua vez à lágrima lamecha da velhinha dobadoira, com muito menor interesse e acutilância que o verdadeiro mal do século. Águas passadas...

Veja-se agora uma “tradução” que “Furtado d’Antas” faz do poema «Desejo», do seu grande mestre: 

Quando à noite no meu leito
eu sosinho repousar
oh vem tu, anjo adorado,
vem assentar-te a meu lado,
vem meu rosto contemplar:

E se immersa em sonho triste
então minh'alma chorar
verás logo, ó virgem pura,
um sorriso de ventura
em meus lábios despontar!

Se depois, sonhando ainda,
sentir rapido passar
sobre a face o teu bafejo,
e com um terno e casto beijo
de repente despertar..,

Serás tu, candida virgem,
que virás então fixar
minha crença e meu destino,
virás meu sonho divino,
neste mundo realisar!!


What a wonderful world! cantaria, estetizando uma voz disfémica, Louis Armstrong, muitos anos depois. Eu também queria anjinhos destes à minha volta, pese embora a leve sugestão de pedofilia. O que não queria era rimar “bafejo” com “beijo”, para não me lembrar do bafo das vaquinhas no presépio de Belém, que não parece muito próprio para o cândido “leito” – e daí para baixo não vou, já foi Camilo: “que vaporoso de frase!”. Mas contenhamos o nosso próprio excesso e vejamos que o desejo não pulsa nestes versos, em que o cenário apela à concentração no rosto do próprio autor (“vem meu rosto contemplar”). Eles não nos sugerem sentimentos efusivos, mas uma estudada estultícia. Até porque isto é a previsão da realização do pequeno egoísmo abusando do nome do Amor com uma facilidade, uma previsibilidade, que gelam qualquer desejo e tornam ridículos os dois pontos de exclamação finais!!

Um pequeno e despretensioso poema publicado alguns anos mais tarde, no Almanach de lembranças, elucida-nos pelo efeito contrastivo. Está subscrito por “Rogado”, personagem que assina três curtas composições sobre a mesma temática (a terceira, aliás, parece uma versão do primeira) e esta, que é a segunda, expressa o mesmo tipo de situação:.


Eu era o pharisatico, o descrente,
o detrator da excelsa divindade;
o riso a abrir-me os labios já dormentes
semelhava o sorrir da tempestade.


Do céo um anjo desce e eis-me[17] diz:

Sorri á vida, vá, que a vida é linda,
E eu meio acordado julgo ainda
f'lecidade de mais p'ra ser feliz.

 
Como disse é um poema despretensioso, aliás ingénuo e pobrezinho. Transmite-nos no entanto maior vivacidade, mantida pela tensão entre sorriso e tempestade e mesmo pela hesitação agitada com que o final nos deixa: “felicidade demais para ser feliz”. Além disso, sugere-nos uma personalidade e uma estória (a da mudança através do amor de salvação) que sentiu a inquietação, a descrença, e que se entusiasma com alguma inocência (ou seja: falta de ciência), mal acreditando no que lhe acontece. Ao invés de ter a certeza de que tudo será maravilhoso, caso o anjo desça, e dormir assim descansado, ele apresenta-se exaltado pela realização da felicidade e ela (o anjo) diz-lhe palavras simples, que realmente ouvimos na vida comum (mesmo aquele “vá”, que ajuda à métrica mas é bem castiço). O próprio poeta as usaria no seu quotidiano, vá lá. Não é um grande poema nem um grande poeta, mas aqui pulsa alguma centelha de vida, ainda que tosca. Uma centelha bem mais viva e bem menos tosca «N’um batuque», que é o seguinte no Almanach e dá início ali àquela série de versos dialógicos em que se introduz o quimbundo em convívio com o português. E há uma mensagem de raiz espiritual, embora banalizada, nem intelectualizada, mas ainda artística: é deduzida por nós a partir da transformação que se conta (segunda estrofe) e justifica, torna verosímil e carnal a imagem do anjo, pois se deduz que o surgimento de uma figura feminina, que nos ama, nos alenta como se fosse o acontecimento um milagre enviado pelo "ceo" para salvar-nos da descrença.

Não é que entre nós houvesse, nesse tempo, no território angolano, grandes místicos. Se houve não deixaram sinal, para além de um assomo de Cordeiro da Mata sob a sombra da palmeira no Tombo sussurrante – um poema, de resto, a pedir atenção melhor, principalmente pelo trabalho de ligação que faz entre a penumbra do som e da luz e o sentimento religioso. Alguma corrente perpassava naquelas brisas. E, se entre nós houve qualquer coisa próxima de um propósito espiritualizante, não foi na esteira de Cândido Furtado, nem muito menos na de Baudelaire, que só deve ter sido falado aqui no finalzinho do século, quando muito. Antes era algo intuitivo, como no caso – raro – deste poema de “Rogado”, ou então recursos de radicação barroca, uma aposta na transmissão da suposta verdade por habilidades e artimanhas que o leitor esperto havia de adivinhar ao decifrar as charadas, mas achando um resultado prosaico ou de enciclopédia, não se levando o decifrador a um ponto de reflexão mais profundo, que era tudo só para passar tempo.

Entre nós havia também um substrato ou adstrato (conforme os casos) banto a reforçar o caráter adivinhatório de certos poemas, a dar a tais barroquismos e agudezas um vigor que tinham perdido na Europa racionalizada, prática, burguesa e liberal. Os logogrifos e as charadas assumiam assim papel mais apelativo do que nos almanaques. A mecanização do sentimentalismo via-se compensada, portanto, pelo sentido oculto da verdade explorado formalmente, pois este obrigava o leitor a entrar no texto, a descodificá-lo, garantindo uma envolvência que, em termos de conteúdo explícito, não se justificava. A realidade era entre nós, nesse tempo, uma convenção, um parti-pris em cima do qual se elaborava uma desnaturação operando com pensamentos e imagens corriqueiros, comuns, mas aproveitando-lhes as letras para ocultar um significado. Era um processo ao contrário dos hieróglifos: estes operam sobre letras que são imagens e produzem conceitos ou mensagens; aqueles operavam sobre mensagens estereotipadas usando as letras que as escreviam para ressignificar um segredo. Integravam-nas num sistema poético para o qual a forma, alguma fórmula de cálculo e a circunstância, conjugadas, davam o sentido, que por sua vez era um segredo comum, partilhado por uma comunidade específica e reduzida, a sugestão de uma intriga, quando muito um provérbio ou máxima consensual naquele meio e que, perante um acontecimento fortuito (que entretanto caía no esquecimento), ganhava uma acuidade especial.

Havia de comum com Baudelaire e, talvez, Hugo, uma “floresta de símbolos” e um sentido oculto a decifrar. Mas aqui os símbolos eram apenas signos e o sentido, embora oculto, era para uns demasiado previsível e para outros demasiado invisível, razão pela qual perdeu interesse no leitor de hoje. Não se percorria a floresta da mesma forma, nem se vislumbrava o mesmo sentido e os textos assim construídos só tinham legibilidade completa no espaço-tempo em que eram produzidos. Daí a clara diferença que separa Baudelaire do romantismo angolano – para além, é óbvio, da intensidade e da verdade estética do grande poeta francês face aos nossos comerciantes, militares e funcionários públicos, que eram poetas nos tempos livres, nos álbuns dos amigos que facilitavam a vida prática e nos das senhoras que também se pretendia que o fizessem.

No entanto, este romantismo de apontamentos íntimos e aparentes, de álbuns ao mesmo tempo ingénuos, amaneirados e cheios de pequenas malícias, a par da reafirmação de morais consabidas e requentadas, de recordações e emoções estilizadas, tinha aí mesmo a condição particular da atenção ao escondido, portanto à superação do real banalizado, meramente visível. O fastio com que os lemos vem de não possuirmos os segredos implícitos partilhados por aquela pequena comunidade, porque eram eles que davam um segundo sentido, por aí capacidade sugestiva, às peças escritas pelos angolenses ou pelos residentes. A banalização mecânica dos sentimentos e dos valores não os afetava porque a sua moral era ainda regulada por uma analogia com a natureza (muito à maneira de Hugo) e porque a poesia de referência também caiu nisso em grande parte. Contrariamente à de Baudelaire e, depois, à dos surrealistas. O segredo estava no seio dessa natureza e através da banalidade é que era sugerido: verdades inevitáveis, princípios incontornáveis, contra os quais era ridículo rebelarmo-nos, ainda que um vulcão fervesse debaixo das pedras – o sentido oculto. A floresta de símbolos podia, portanto, ser substituída por um sertão de fórmulas que refletiam o conhecimento consensual da natureza. Em tamanho pequeno, 3x4, no nosso caso. As perceções conduziam-nos “a comunicar com o oculto”, como diria Baudelaire, mas aqui era por aquilo mesmo que nos parecia evidente, banal, ultrarrepetido, que o oculto se manifestava - muitas vezes ele também um oculto corriqueiro, um 'mexerico', um mujimbu.

Entretanto me interrogo: porquê repetir tanto a evidência? Baudelaire tirava palavras do quotidiano mas colocava-as num contexto verbal que desatava uma infinidade de sugestões e as elevava muito além da banalidade. Nós não fizemos isso. Presos demasiadamente à circunstância, era preciso que a banalidade se mantivesse para o leitor desconfiar de que havia alguma coisa por trás da sua mera e aparente repetição. Ainda hoje acontece muito, pessoas com idade avançada falarem connosco de uma forma aparentemente inócua. Fazem-nos por exemplo uma pergunta e repetem a nossa resposta acrescentando-lhe apenas: “não é?” Por exemplo, a gente diz: “sim, está tudo bem”, ou “tudo em cima”. Uma velha interlocutora responde: “é, está tudo bem, né?”, ou “tudo em cima, não é?”. Claro que então pensamos numa circunstância que não tínhamos em mente e que nos leva a uma segunda leitura, também evidente (perante essa circunstância), da mesmíssima resposta inicial (é que ela, afinal, sabia que nem tudo estava bem, referindo com subtileza uma dificuldade qualquer, ainda em segredo - melhor: em estado de rumor). É uma retórica popular, acredito que não só em Angola e que não em toda a Angola, mas é dali também e articula-se, por seu turno, à lírica meio bacoca e requentada do nosso romantismo. O que fizeram os românticos angolanos foi acrescentar aquele “não é?” só pela repetição, o que nos obriga a pensar se não haverá algo escondido (em que não pensámos) numa afirmação ou descrição óbvia repetida. Algo pouco místico, geralmente… Para isso, Hugo servia-lhes e Cândido Furtado ajeitava-se.

Mas falávamos de Hugo e afastei-me sem reparar. Uma segunda coincidência entre a poesia de Hugo e a de Cândido Furtado, para além deste cinzentismo, desta banalização que pode esconder o oculto (no caso de Hugo), é a aparente superficialidade que daí (em parte daí) resulta. Na política o poeta francês era também assim, segundo os seus críticos. Posicionando-se à esquerda, acusaram-no de votar sempre à direita nas questões fundamentais. A crítica não teria sido assim tão justa, sobretudo se nos lembrarmos de alguns discursos reunidos em Actes et paroles (Hugo, 1875). Recordemos, por exemplo, a máxima até hoje inquestionável (ainda mais na França da época, “après trois révolutions”), de que o bom governo aborda “de boa fé o problema da educação para a criança e do trabalho para o homem!”. Recordemos, entre vários outros, os discursos que fez em defesa da liberdade de imprensa (onde essa máxima ficou exarada), afogada indiretamente por uma lei fiscal (o discurso pronunciado a 9.7.1850) e contra a pretensão de Luís Bonaparte em mudar a Constituição republicana para se perpetuar no poder (discurso pronunciado a 17.7.1851, com o autor prestes a romper, por esse e por outros motivos, com a lista conservadora em que se elegera e com o nóvel mandatário que apoiara (Ribeiro, 2004)). Também será de realçar, para a lusofonia, que felicitou o pioneirismo português ao abolir a pena de morte (para os crimes civis), em 1867 e a sua defesa de uns Estados Unidos da Europa, quem sabe, significou para alguns angolenses uma esperança remota na substituição parcial dos colonizadores por outros tecnicamente mais avançados. Assumiu, no entanto, por exemplo no primeiro daqueles discursos, uma clara rejeição das revoluções, fossem elas de que sinal fossem. Parecia perseguir uma espécie de quietude democrática e, nessa medida, conservadora. Escrevia, em Os trabalhadores do mar: “as consequências dos excessos revolucionários são incalculáveis.” (Hugo, 1866 p. 14) Páginas adiante reafirmava: “os vulcões arrojam pedras, as revoluções homens.” (Hugo, 1866 p. 19) Mas a França tinha passado pelo Terror e o Terror foi o fruto imediato da Revolução…

Com uma carreira bem-sucedida na política e na literatura, ele “via as coisas como as colocavam à sua frente”, não passando, ou raras vezes passando, da “opinião superficial do presente”[18]. Penso que Benjamin exagerou, não terá levado em conta o sentido do oculto em Hugo, mas parece-me que muitos destes versejadores, angolenses ou residentes, olhavam para aspetos políticos e sociais de forma idêntica. No caso deles porque, realmente, o prazer do segredo residia nas intrigas de pequenos meios provincianos e tais intrigas só funcionavam porque a moral era, continuava a ser, a das aparências e sempre a mesma. Havia provavelmente nesses poetas – como se evidencia em Cândido Furtado – uma separação entre o que diziam defender e o que na prática faziam. A expressão “politicamente correto” reporta-se a pessoas assim, que adormecem a consciência repetindo o que parece a todos inteligente, razoável e honesto, mas atuam de acordo com interesses imediatos e preconceitos arraigados. Assumida a posição correta publicamente, “o dinheirinho é cá p’ra mim”, como disse à televisão um Prémio Nobel…

Victor Hugo, infelizmente, não levou sequer os nossos poetas a conceberem-se como vates do seu povo. Só Maia Ferreira parece ter-se apercebido de que o lugar estava vazio, mas também não o ocupou. De resto, em Hugo, o papel do vate é inseparável do auto-elogio, mas os nossos poetas, não desfrutando da sua aura e da sua popularidade, não podiam reclamar-se como vates. Em que nome pensaríamos, pergunto, que pudesse auto-idolatrar-se como Hugo em 1849:
Peuples! Écoutez le poète!
Écoutez le rêveur sacre!
Dans votre nuit, sans lui complète,
Lui seul a le front éclairé
(Ribeiro, 2004)
Alguns dos nossos poetas independentistas e revolucionários, sobretudo os da segunda geração nacionalista (década de 1950), esses sim, foram huguianos neste aspeto. Imitaram, como de resto a poesia militante, esse estilo desnudado, crú, que endeusava o poeta na medida em que o poeta, para o povo, era quem dizia a verdade, ou seja, o que eles queriam que ela fosse. Eles, que de místicos não tinham, propositadamente, nada, jogavam com essa crença popular e recorrendo ao mesmo estilo direto, discursivo, prosaico e simultaneamente enfático do Hugo poeta político. Também neste aspeto, o lírico francês não deixou nos seguidores angolanos um fermento de beleza, deixou sim o ‘pão duro dos dias’, que sempre é um verso um bocadinho mais bonito para “o operário / que esmerila seu dia de aço / e carvão” (como escreveu Ferreira Gullar em «Não há vagas», de 1963). Do pão duro dos dias havia de sair, então, nesses anos posteriores, o pão duro do verso.


Uma última semelhança, que embora tosca é uma semelhança, não diretamente entre Hugo e os nossos poetas, mas entre as nossas culturas (urbanas ou rurais) e Hugo, prende-se com a noção de espíritos, as referências à feitiçaria, qualquer coisa entre espiritismo (europeu) e animismo (banto). Walter Benjamin lembra que “o contacto [do poeta francês] com o mundo dos espíritos [...] atuou em Jersey com igual profundidade sobre a sua vida e sobre a sua obra” (Benjamin, 1989 p. 59). Depois de Jersey, o famoso poeta apresentou mesmo uma teoria fantasmática e espiritista da criatividade, embora sublinhasse sempre que os seus versos não foram ditados por “mesas falantes” e que o poeta é a própria trípode de Deus, portanto recebe d’Ele diretamente a inspiração (Martins, 2006: 279, 280). Mas ainda “as peculiaridades da fé no progresso e do panteísmo de Hugo se afinam com as mensagens das mesas dos espíritas” e dos espíritos com que a sua poesia se mantinha em “comunicação contínua” (Benjamin, 1989 p. 176). O que é estranho é que isso em nada o perturba…

Esta visão não coincide, propriamente, com as crenças animistas de Angola, mas também não colide, apresenta zonas de intersecção. Leia-se, por exemplo, o poema «Escrito sobre um exemplar da Divina Comédia», o primeiro do Livro Terceiro (Hugo, 1856) e também o poema II de «Saturne», do mesmo Livro, que expõe já uma teoria da transmigração das almas e mostra bem as diferenças e possíveis semelhanças entre as duas crenças. Se os nossos poetas estavam, por menos que o fosse em alguns casos, relacionados com o substrato ou adstrato banto e pré-banto, a visão espiritista huguiana seria mais um chamariz a levá-los à leitura do conhecido escritor francês.

Num dos livros que aparece na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, Os operários do mar, logo de entrada nos deparamos com descrições de casas mal-assombradas e de uma em particular (Hugo, 1866 pp. 11-12). Elas vão reaparecendo de quando em quando, como que pontilhando o espaço principal da narrativa e sempre vistas em duplo: na versão popular, crédula e na outra, normal ou cética. Refere, também no início, os “formulários de exorcismo” (Hugo, 1866 p. 14). A lista de crenças populares sobre acções de feiticeiros, em muitos pontos, coincidiria com alguma que se fizesse na Angola urbana nesse tempo (Hugo, 1866 p. 15).

O interesse pelo espiritismo mantém-se, de resto, na literatura angolana até hoje, como se pode ver em Puko o ngombo o Deus da verdade (Lussolo, 1997) e títulos mais recentes e na persistência de grupos espíritas no território nacional, ou na diáspora, alguns deles envolvendo poetas. No século que estamos a estudar, a presença de livros como o de Lules Liégeois, De la suggestion et du sonambulisme dans leurs rapports avec la jurisprudence et la médicine légal (1889), de que vi um exemplar na Biblioteca do Governo Provincial, a ter então chegado à colónia, demonstra a sensibilidade a esse tipo de assuntos, resultante de uma colocação intermédia entre a jurisprudência europeia e as culturas tradicionais. Uma posição que se conjuga, na nossa bibliografia, a outra referência bibliográfica: H. Mandsley, professor de Medicina Legal no Univ. College de Londres, Le Crime et la Folie –uma tradução de um exemplar da quinta edição, saída em Paris, pela Félix Alcan, em 1888. Em qualquer dos casos a questão central é: em que medida sou juridicamente imputável por um ato cometido fora de consciência? As práticas espíritas e animistas nos podem levar a questões jurídicas semelhantes.


Ao contrário do que se passava com figuras hoje canónicas, aparecem várias obras de Eugène Sue (Marie-Joseph Sue, 1804-1857), sendo especialmente famosos Os mistérios de Paris (1842-1843), que se anunciavam em 1845 no Recife (uma edição em quatro volumes) – e que foram traduzidos em folhetins no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro do ano anterior (1.9.1844 – 20.1.1845). Os mesmos Mistérios faziam parte do já citado espólio de 1855 em Benguela (uma edição em cinco volumes), depois reaparecendo em inventários de 1860 (dez volumes, que valiam 1$000), 1898 (dez volumes), 1899 (do naturalista José de Anchieta, quatro volumes) e 1900, no inventário de um empregado do posto fiscal do Lobito. No anúncio do Diário de Pernambuco não se refere o nome do autor, nem do tradutor, mas sabemos, por Ubiratan Machado, que Justiniano José da Rocha, personagem influente na vida política e literária carioca, fez uma tradução[19] (em três volumes) de Os mistérios de Paris e que ali se vendia outra (a julgar pelo número de volumes). José de Alencar alugou uma obra de Sue também, para a ler enquanto esteve de férias no Rio de Janeiro, em 1848, e mais tarde refere-o em Sonhos d’ouro. Segundo Antonio Candido, Joaquim Manuel de Macedo (o autor de A moreninha) foi também influenciado por Sue (Candido, 2002 p. 42). Uma peça teatral, A família Morel, extraída a Os mistérios de Paris, era representada em São Paulo por volta de 1860 (Gama, 2005 p. 11). Mas a receção do romance no Brasil está bem documentada e comentada em artigo de Nelson Schapochnik e para aí remeto o leitor (Schapochnik, 2010).

Nas nossas fontes, outras três obras ainda aparecem: Artur, no espólio benguelense de 1855, Os mistérios do povo (no mesmo espólio, numa edição em sete volumes) e O judeu errante (1844-1845) – rapidamente traduzido em Lisboa por José e Augusto de Castilho, numa publicação muito anunciada nos periódicos da época. Os mistérios do povo deviam estar a ser recebidos na altura em que o proprietário morreu, certamente não se tratando de toda a obra, pois foram publicados entre 1849 e 1857. Sobre eles diz Sampaio Bruno que vieram salvar o romance histórico enquanto “género em que a educação revolucionária se faz pela lembrança das atrocidades da tirania tradicional” (Bruno, 1984 p. 23). O judeu errante surge numa edição em cinco volumes, no espólio benguelense de 1855 e nas estantes da Biblioteca do Governo Provincial de Luanda.

Lopes de Mendonça, num livro que foi lido em Angola, é menos positivo em relação a Sue, prognosticando certeiramente que, “apesar de todo o talento nos Mistérios de Paris e no Judeu errante”, o autor não podia aspirar “a uma grande reputação no futuro”, pois “o tempo há-de quebrar esses instrumentos da revolução” (Mendonça, 1855 p. 218). A verdade, porém, é que, na época, Sue era muito popular e muito considerado, por motivos políticos também (mesmo apesar das críticas de Marx, duvidando do socialismo de Sue), mas em particular por vários escritores - por exemplo, já citado, José de Alencar (Alencar, 1893 p. 17). Por isso tudo, o seu nome não pode ser ignorado nas futuras investigações sobre a produção literária do século XIX em Angola, como não foi no Brasil. Agregado a ele vinha uma aura que hoje desconhecemos e que, apesar do retrato de Atar Gull como frio e vingativo escravo negro, assassino de um “pobre colono” e de toda a sua família (num título ausente das nossas fontes), teria outros aspetos menos negativos.

Eugène Sue foi dado por Walter Benjamin como “o mestre” do “romance de folhetim” no século XIX, tornando-se “fonte de uma espécie de revelação para o pequeno burguês”. O próprio Victor Hugo o seguiu e tentou superar com Les misérables. Ora, sabemos quanto foi para nós importante o “romance de folhetim”, de que Alfredo Troni, Pedro Félix Machado e Augusto Bastos foram exímios praticantes. E sabemos que, nesse particular também, não estivemos isolados, acontecendo o mesmo no Brasil[20] e em Portugal. Tal como Hugo e outros folhetinistas e narrativos franceses do seu tempo, também Eugène Sue, no entanto, caía facilmente no exagero dramático para impressionar o leitor, sendo por isso mesmo criticado(s) pela Edimburg review já em 1833 (Redação, 1839 p. 159).

Sue terá sido muito importante para o operariado, apesar da severa crítica do “jovem Marx” a Os mistérios de Paris. Pelo menos o demonstra, quer a eleição (1850), por grande maioria, como representante de Paris ao Parlamento (Benjamin, 1989 p. 114), quer aquele operário que se enforcou na casa do escritor por “que a morte” lhe “seria mais leve [...] sob o mesmo teto de um homem que intercede por nós e que nos ama” – episódio que Benjamin retira de Charles Benoist (Benoist, 1914 p. 667; Benjamin, 1989 p. 75). Num artigo relativamente recente, Dominique Jullien resume o tipo de preocupação (paternal, reformista e individualista) com os pobres que domina a obra, justifica o distanciamento de Marx e, simultaneamente, o apadrinhamento pelos desesperados da pobreza:

Touché par la misère du peuple, et décidé à remédier personnellement à l’injustice sociale, l’archiduc Rodolphe de Gerolstein, héros des Mystères de Paris, revêt la blouse de l’ouvrier pour descendre dans les taudis de la Cité y redresser les torts.
 
Um pouco mais adiante explicita: 

En revanche, dans les Mystères de Paris, le prince déguisé, s’il aide bien à compenser l’imperfection des institutions judiciaires — punition des personnages criminels, et aussi récompense des personnages vertueux qui rappelle le principe du prix Montyon — et à équilibrer les inégalités de fortune, le fait cependant sans menacer les pouvoirs en place. La scène du «carnaval révolutionnaire», où la populace déguisée attaque le carrosse du héros, montre même la révolution sous un jour uniformément néfaste. Dans l’espace du roman-feuilleton au message politique si ambigu, deux pratiques du déguisement se rencontrent et s’affrontent: le déguisement princier, qui serait à mettre du côté non de la révolution mais du réformisme social, et le carnaval populaire, où les masses rétablissent aussi la justice à leur façon, et où se brouillent les frontières entre le déguisement ludique et la violence politique
(Jullien, 2009)
 
O progresso de Pernambuco, tido em França como “novo órgão socialista do Brasil”, fala sobre um artigo de José Rodrigues Nunes Filho publicado em Mosaico da Baía e critica-o por comparar Sue a Walter Scott e outros nomes menos conceituados (O Progresso, 1846; 1847). O jornal estava muito bem informado sobre os “comunistas alemães”, ingleses, franceses e dos EUA.

Acredito que a defesa de Sue esteja relacionada com a sua carreira política. Por outro lado, a elevação do folhetinista Sue muito acima de Scott demonstra o que já vimos em momentos diferentes, que havia um divórcio entre o público em geral (para o qual nenhuma diferença significativa separava os dois autores, muito menos uma diferença de valor estético) e os intelectuais, escritores, enfim, o público mais especificamente literário, mais exigente, ora com a arte, ora com a política, ora com ambas – e foi talvez o mais comum.

Sue, médico da marinha para além de romancista, fez uma carreira política de sucesso. Foi eleito em 1850 como representante da cidade de Paris no Parlamento, como disse e, portanto, é de supor que os seus folhetins tivessem grande audiência lá. Os títulos assinalados são todos (exceto Artur, que deve fazer parte de algum dos outros volumes) da fase já voltada para o romance social. A multidão para que escrevia tinha uma das suas pontas em leitores angolanos, ou residentes em Angola no século XIX e acredito que tais leitores talvez nem sequer conhecessem Marx, ou lhe dessem qualquer importância. O tipo de linguagem que usava para agradar ao público terá no entanto reforçado o cinzentismo e a previsibilidade que a poesia de V. Hugo veio a ter para nós.


Alexandre Dumas filho (Paris, 29.6.1824 – Marly-le-Roi, 27.11.1895), é um escritor incontornável para o nosso contexto do século XIX.

A dama das camélias, seu primeiro sucesso (1848), em tradução lisboeta da Empresa Literária Fluminense, sobrevivia ainda num exemplar do Arquivo Histórico Nacional de Luanda. Em 1852 ele a transformou numa peça de teatro e começou a tornar-se então muito conhecida a obra. A importância que teve A dama das camélias para a composição da famosa ópera La traviata (representada pela primeira vez em Março de 1853) de Verdi (1813-1901), aumentou mais ainda a sua popularidade (Verdi foi nosso conhecido: a ópera O trovador – que estreou em Roma a 11.1.1853 – representou-se em Luanda, na Sociedade Dramática, a 12.1.1869). Coincidência, Armando Duval, o herói romântico do livro (talvez autobiográfico), aparece referido por Cordeiro da Mata (Pestana, 2012 p. 11). A obra representa, mais uma vez, o característico mito romântico do amor que tem de romper as barreiras da convenção, mesmo que isso implique trair um bom homem por uma relação que a comunidade olha como ilícita. E que geralmente não termina bem…

Dumas filho foi sobretudo um bom dramaturgo, com peças autobiográficas também (O filho natural – 1858; Um pai prodígio – 1859). Personalidade complexa como a do pai, reforçada por ser filho da relação do famoso escritor com a costureira do prédio vizinho, não foi menos controverso. Alexandre Dumas pai (24.7.1802 – 5.12.1870) nascera em Villers-Cotterêts, Aisne, França, filho de Thomas-Alexandre Davy de La Pailleterie (nascido no Haiti), neto do marquês Antoine-Alexandre Davy de la Pailleterie e de uma escrava (ou liberta, não se sabe ao certo) negra, Marie Césette Dumas, a quem seu pai foi buscar o apelido em 1786, sendo soldado no ancien régime (Antoine-Alexandre não queria o seu nome de família num soldado raso). Thomas-Alexandre tornou-se, sob Napoleão, o General Dumas, chefiando a cavalaria imperial na invasão do Egito. Antes, integrara-se numa espécie de ‘guerra preta’ da República (a “Legião Negra”), chefiada pelo compositor e cavaleiro Joseph Boulogne (também ele mestiço de branco e negro, nascido em Guadalupe). Boulogne, sem grande vocação militar, entregou praticamente o comando ao futuro General Dumas, abrindo-lhe uma carreira militar notável.

Alexandre Dumas, pai, em 1843, publicou uma interessante novela intitulada Georges, que chamava atenção para os preconceitos raciais e discutia a problemática dos ‘homens de cor’ em França. Foi considerada a sua narrativa mais ousada, com uma escrita fluida, mas, sobretudo, porque questiona, por via do confronto do jovem protagonista (nascido na Maurícia) com a sociedade francesa, a própria identidade e os eventuais complexos de inferioridade do pai, o famoso general. É de se ler, a propósito, a introdução de Werner Sollors à trad. de Tina Kover para inglês (Dumas, 2007). Alexandre Dumas pai faleceu em Puys, perto de Dieppe.

O livreiro J. Villeneuve, assaz conhecido no Rio de Janeiro, publicou traduções de uma das obras em 1839 (Dumas, 1839) e de duas outras logo no ano seguinte (Dumas, 1840; Dumas, 1840). Trata-se de estórias curtas, obnubiladas hoje pela notoriedade de romances como Os três mosqueteiros, mas a sua publicação demonstra que a popularidade do autor estava no cume por esses anos e na capital carioca, de onde partiam tantos barcos para Angola.

O pai de Alexndre Dumas, homónimo, era já lido em Angola e por angolenses. Maia Ferreira refere-se com admiração ao seu "dom narrativo"[21] (e ao de Nodier), numa carta datada de 12.9.1854, de Nova Iorque, para o jornalista e político Antonino J. Miranda Falcão no Brasil. Enquanto viveu no Rio de Janeiro, por exemplo em fevereiro de 1844, ele pôde ler o 'folhetim' A capela gótica, do celebrado romancista, no Jornal do Comércio, onde mais tarde Maia Ferreira tentaria colaborar, justamente a partir de Nova Iorque. Nesse período, aliás, no mesmo periódico, foram sucedendo-se folhetins de Alexandre Dumas pai, como Gaetano Sferra, que sequenciou A capela gótica. Mas a circulação dos livros de Alexandre Dumas pai era generalizada no tempo da formação do nosso poeta e suscitava um geral aplauso. Admiração partilhada com José de Alencar, que o leu em São Paulo, mais tarde no Rio "o que me faltava de Alexandre Dumas" (Alencar, 1893 pp. 12, 17). No extenso espólio de Benguela de 1855 podiam se encontrar vários títulos famosos: O Conde de Monte-Cristo (possivelmente escrito em colaboração), A Rainha Margarida (ambos de 1844-1845), Os quarenta e cinco (1847), Os mil e um fantasmas (obra no âmbito do fantástico e do terror, escrita no auge da Revolução de 1848 em Paris). A menção, num espólio de Benguela de 1857, ao título A filha do Regente pode bem referir-se a outra obra do pai Alexandre Dumas, Uma filha do Regente, cuja edição original é de 1845 também.

É possível que a ascendência mista dos Dumas, pai e filho, que resultavam da mistura do mais nobre sangue francês com o de uma escrava de S. Domingos (hoje dividido em República Dominica e Haiti), ajudasse a torná-los populares em Angola, mesmo para Maia Ferreira, que não sei por que motivo lhe chama “o ingrato Dumas”. Porém, em países onde isso não se revestia de nenhum significado particular, eles foram igualmente populares, sem dúvida graças aos enredos fabricados e à sábia manipulação do suspense, melhor e mais em geral, da tensão narrativa. A sua literatura quadrava bem com o espírito romântico e o horizonte de expectativas popular. As suas biografias, irregulares para a época e no entanto comuns entre as nobrezas europeias mais antigas, cujas genealogias estão cheias de importantes e menos importantes filhos bastardos, apenas reforçavam um poder de atração que seria anterior e posterior à divulgação dessa ‘irregularidades’, afinal comuns e transversais.

A par da mestiçagem dos Dumas, o surgimento, nas suas ficções, de personagens com nome português e de títulos que remetem para Portugal, atrairia também as atenções da burguesia colonial desse tempo (caso do proprietário do espólio de 1855). Afinal, associando lusofonia (ou lusografia) com ascendência negra e escrava, eles podiam servir para iconizar esses dois mundos em conflito e mistura dentro da própria colónia de Angola e ‘reino’ de Benguela. É uma pista a explorar, a de saber se nos trouxe consequências literárias uma tal ascendência. Quanto às caraterísticas estéticas das suas obras, elas usam uma escrita corrida, quase natural, o que muito importava para contrastar a nossa tendência novecentista para enfatuar a linguagem. Mas os críticos dos Dumas tendem a depreciar neles o pouco artifício, o estilo por vezes ‘bruto’, ou ‘em bruto’, a par do exagero melodramático já detetado em Victor Hugo. Essa posição dos críticos pode ser igualmente significativa para compreendermos a nossa opção pelo 'enfatuado', artificial para parecer artificioso.


Uma figura que vai caindo no esquecimento muito lentamente, mas que foi significativa para a literatura lusófona (sobremodo a portuguesa, por causa de Garrett), é a de Xavier de Maistre (1763-1852), poucos anos mais velho que Chateaubriand e com ele um dos responsáveis pela viragem da literatura francófona no sentido da sensibilidade romântica. O título Viagem à roda do meu quarto seguida da expedição noturna à roda do meu quarto (primeira e última das obras do autor) está representado com um exemplar no Arquivo Histórico Nacional de Luanda. Foi publicado em Lisboa, por David Corazzi, em 1888, na coleção “Biblioteca universitária antiga e moderna”. Trata-se de uma versão de Fernandes Costa, incluindo notícia biográfica do autor. A capa, em papel fino, tem três carimbos, dos quais o primeiro nos interessa: é de “António [?] de Miranda” que tinha “livraria e bilhares” em “Mossamedes”. Os outros dois carimbos são os habituais, do Museu de Angola e do CNDIH (Centro Nacional de Documentação e Investigação Histórica).

O liberal Almeida Garrett leu Le voyage autor de ma chambre (que saíra em 1795 em Lausana, Suíça, ironizando Sterne), escrito por um oficial que se exilara na Rússia para não servir o exército republicano e cujo irmão (Joseph de Maistre) encabeçava a reação moral e católica à Revolução, com sua verrinosa veia de polemista, em vários aspetos comum à dos nossos polemistas do século XIX. Ele cita-a nas Viagens na minha terra (nota A, vol. I). Numa carta que lhe foi dirigida a 10 de Agosto de 1843 por A. F. Castilho, este pergunta se Garrett recebeu a obra de Xavier de Maistre, que o autor das Viagens lhe tinha pedido através de um amigo comum (Honório, 2000 p. 49). A partir da obra de Garrett, cuja primeira edição é de 1846, o livro de Xavier de Maistre terá sido mais procurado em Angola, creio que mesmo em francês. Em Portugal ainda, Antero de Quental possuía esta obra, integrada nas Oeuvres choisies de 1876 (Fraga, et al., 1991 pp. 26-27).

Entre as muitas notas que o livro suscita, sublinho uma: a biblioteca do autor. Ele diz que é feita com “romances” e “poetas”, apreciando sobretudo os “da mais alta antiguidade” (p. 55). Cita Homero, Virgílio, Milton, Ossian – referência romântica típica e no entanto inexistente (a invenção foi de Mac Pherson (Cunha, 1979 pp. 46, 54)) – e fala nas viagens de Cook.

Não sei o que se passou, mas o exemplar interrompe-se bruscamente a meio do cp. XXXXIX, p. 126 – e ficamos sem o resto da viagem, de certo modo repetida à força por uma personagem recente (Vieira, 2001) de Arménio Vieira No inferno


Ainda menos conhecido hoje é Pierre-Jean de Béranger (19.8.1780, Paris – 16.7.1857, Paris), que A. F. Castilho, nas Estreias poético-musicais para o ano 53, coloca a par de Lamennais (não foi o único a fazê-lo – recorde-se que Lamennais nasceu em 1782) e de que Alexandre Herculano verte para o português «O canto do cossaco», na edição de 1850 da A harpa do crente. A comparação com Lamennais parece-me despropositada, mas a referência nas Estreias faz todo o sentido, pois Béranger foi mais um chansonnier que um poète. As suas canções, de recorte patriótico e político (mas, claro, também de amor), na época foram musicadas (com peças para piano, por exemplo), tendo-se tornado muito populares e chegando a ser citadas nos romances de V. Hugo. Entre outros, Gonçalves Dias andou à procura delas.

A primeira recolha de canções viu a luz em 1815, em 1821 a segunda, em 1825 a terceira e a quarta em 1828. As suas Oeuvres complètes vendiam-se no Recife, em 1845, em quatro volumes, talvez a edição de Paris de 1834 (Perrotin). A sua vida acidentada e de homem que subiu a pulso, misturada com episódios da Revolução, mais ou menos dramáticos, a que assistiu, faziam de certo modo parte das obras, como todos os dados biográficos que, mesmo por via oral, circulam com elas em halo. Nessa biografia se reviam certamente alguns dos escritores em formação, no caso de Angola Arsénio Pompílio Pompeu de Carpo é o mais saliente, embora não estivesse num período propriamente inicial da sua formação. De notar ainda que as Canções de Béranger, em francês, integravam a biblioteca de Antero de Quental, numa edição de 1860 que reunia as de 1815 a 1834 e as dez canções publicadas em 1847.


Frédéric Soulié (1800-1847) foi um prolífico e popular folhetinista e romancista francês. Escreveu também teatro e, no começo, alguma poesia lírica, não se destacando nesses géneros. O seu título mais conhecido é Les memoires du Diable (1838). V. Hugo fez-lhe um rasgado elogio fúnebre, por ocasião do funeral, em 28.9.1847. Filho de um filósofo tornado soldado pelo bonapartismo e perseguido por motivos políticos, ele próprio nutriu simpatias pelos carbonários italianos e, por isso, teve que ir estudar para Rennes, devidamente vigiado. Mais tarde se empenhou totalmente na revolução de 1830, ao mesmo tempo em que se começara a dedicar ao jornalismo cultural e a publicar folhetins (fez o primeiro folhetim do famoso jornal La Presse, de Girardin – o primeiro de grande tiragem em França).

Em Benguela, num inventário orfanológico de 1856, deparei com Le Bananier, publicado em 1843. Referiam-se dois volumes e não se facultava nem o nome do autor nem a data de publicação. Podia ser a primeira edição, na casa de Hippolyte Souverain (que abrigou também J. Lecomte, Balzac, P. de Kock, M. Masson), pois essa fez-se também em dois volumes.

O segundo volume abre tendo como cenário Guadalupe e, ao longo da prosa, vários diálogos surgem nos quais se discute a escravatura, a abolição, a ‘raça’ negra, apresentando as várias personagens pontos de vista diferentes. É a esse título (e a propósito de algumas colónias francesas) que aparecem referências a África. Por todos estes motivos é claro que assumia particular interesse a presença da sua obra entre nós.

Ainda em Benguela, constava de um espólio de 1855 o seu romance histórico Le Comte de Toulouse, de 1834 (anterior, portanto, à publicação dos famosos folhetins no Journal des Débats). A edição era possivelmente a de 1842, em dois volumes in 8º.

Na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda encontrei três tomos (I, II, V) de Les drames inconnues: Aventures d’un jeune cadet de famille; La vie sociale; Histoire d'Olivier Duhamel. Saíram todos em 1857, em Paris, na Librairie Nouvelle. Esta série de narrativas era mais conhecida que os dois títulos anteriores (dos quais o segundo, Le Comte de Toulouse, era o mais popular). A capa do tomo I ficou danificada.

Os episódios, ou romances, ou folhetins, embora autónomos, encontram-se ligados por várias vias. Uma delas é a repetição de certos nomes de personagens: Olivier, Molinos, Frobental, Meylan, etc.. Podemos encontrar motivos de comparação com as Scenas d'África de Pedro Félix Machado, mas não só neste aspeto. 

Quer na poesia de Cordeiro da Mata, quer na ficção de Pedro Félix Machado vemos uma rentabilização de recursos gráficos que os personaliza. No tomo I de Les drames inconnus joga-se com as maiúsculas e minúsculas, tal como sucedia em partes polémicos de textos jornalísticos. Por exemplo:

[…] sur ce papier, et y avait lus les mots suivants, écrit en gros caractère:

DEMAIN A ONZE HEURES / AUX CHAMPS-ÉLYSÉES

C’etait ce rendez-vous […]

O escrito, transcrito em grandes caracteres, é também destacado pelo isolamento espacial, ficando as letras do mesmo tamanho do título dos capítulos e do título no cimo da página. Este é o tipo que podemos encontrar também nas Scenas d’África.


Uma presença menos significativa hoje, menos ainda que a de Soulié, é a de Émile Richegourg (1833-1898). O volume III de uma versão portuguesa de A Avó, feita por “Lorjó Tavares” (Lisboa: tipª dos Editores, sd) encontrava-se nas estantes da biblioteca do Governo Provincial de Luanda quando por lá pesquisei. Deparei-me também com os tomos 5-6 em um só volume. Pelo que li, é um típico folhetim romântico, novelesco, destinado ao grande público. Aliás, Richebourg, “um dos grandes mestres do «roman de la victime»”, foi campeão de vendas e de folhetins. As suas estórias faziam subir a venda de jornais vertiginosamente, na última década do século XIX.

A avó (La grand’ mère) tem edições registadas na Gallica com datas de 1887 e 1890. A de 1890 foi ricamente ilustrada (por 157 gravuras), editando-se em Paris (J. Rouf), mas essa ficou toda em um só volume (com 1256 páginas). A anterior contava três volumes.

O romance-folhetim, incluindo a estória de uma família que vivera em Argel e todo o rocambolesco, peripécias, mistérios típicos das novelas de sucesso, estava incluído na série Les drames de la vie. A versão portuguesa teve pelo menos duas edições, em seis volumes, integrando-se na série Biblioteca Serões Românticos e integrando várias estampas em cada volume. Saiu em Lisboa, sempre sem data, como disse. Mais tarde se publicaria em fascículos, pela Belém & Cia, na sequência da publicação, também em fascículos, de O Selvagem (do mesmo autor e tradutor) logo no fim de 1895 e no começo 1896. 










[1] Gazeta de Lisboa. 3 (4-1-1825) 10.
[2] Note-se como o autor se coloca na posição de expressar o que os franceses querem.
[3] Cigarros baratos, que se vendiam em pacotes redondos de 300. Por extensão, usou-se também o termo indevidamente significando pontas de cigarro já fumado, ou cigarros só parcialmente fumados, ‘beatas’ em Portugal.
[4] Note-se o preconceito de Chateaubriand, que de todo o século XIX não abandonou: “sociedade” (Europa) e “natureza” (culturas e línguas ameríndias).
[5] Note-se como o hebreu se torna, por esta frase, tão estranho quanto o índio, exótico portanto. Em princípio porque o leitor ignora as duas línguas, uma tanto quanto outra; no fim, talvez ambas usem demasiadas figuras.
[6] Note-se o conceito de poema para o autor e na época: ele não narra, não tem “aventura”.
[7] M. António escreveria, mais de um século depois: “filhos que somos todos de um só Pai” (António, 1963 p. 138) e diria que não era.
[8] Recebido em França como “novo órgão socialista do Brasil” (Anónimo, 1847)
[9] Lamartine pertencia a uma família nobre e católica.
[10] Ichthys significa ‘peixe’. Aparece nas primeiras catacumbas de Roma mas é palavra bem mais antiga.
[11] Pernambuco: 1843. Tip.ª Santos & Cia.
[12] Repare-se na expressão (“todo inteiro”) para designar os momentos melhores dele como escritor.
[13] Se os meus apontamentos não estiverem errados, pois não tenho agora como consultar o exemplar. Acho estranha essa alteração, cortando os outros quatro poemas iniciais, mas é possível.
[14] François Chifflard, 1825-1890; ilustrou vários livros de V. Hugo, que conheceu em 1867.
[15] Jean-François Casimir Delavigne (1793-1843), dramaturgo francês.
[16] 1802-1855, famoso ourives francês, dos mais renomados do seu tempo, que se integrava numa tradição sincrética, reunindo legados do renascimento, do maneirismo, dos ourives islâmicos e, de certo modo (pela abundância de pormenores ornamentais), do barroco.
[17] Penso que seja gralha esse hífen. Deve ser “e eis [que] me diz”.
[18] Benjamin, Obras…, III, pp. 60-61.
[19] Em um mês! (Machado, 2001 p. 43). Foi a que saiu no Jornal do Comércio (Schapochnik, 2010 p. 604).
[20] José de Alencar, por ex., publica o Guarany no Diário, “dia por dia […] entre os meses de Fevereiro e Abril de 1857, se bem me recordo.” (Alencar, 1893 p. 19).
[21] Geralmente reconhecido como principal fator da sua popularidade.

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