Romantismo ingénuo: dois exemplos recifenses


A mistura dos ideais de beleza e dos modelos poéticos neoclássicos e românticos, confirmando a panóplia bibliográfica de que o mercado angolano dava tímidos sinais, nota-se mais facilmente em livros ingénuos de estudantes do Curso Jurídico da “Academia de Olinda”. É o caso da Oblação ao cristianismo: tentativas poéticas de António Rangel de Torres Bandeira, então aluno do 1.º ano (Bandeira, 1844) e que, ainda nesse ano, publicará o “romance” (em verso) O eremita de Jaffa (Bandeira, 1844).

O autor não foi insignificante no princípio do romantismo brasileiro, colaborando em revistas literárias prestigiadas, como a Íris (1848-1849) de José Feliciano de Castilho, já radicado no Brasil (curiosamente aí colaborou também Antónia Gertrudes Püsich, de Cabo Verde e de Lisboa). 

Segundo Benedita de Cássia Lima foi 

poeta, teatrólogo, jornalista e crítico literário. Nasceu no Recife em 1826 e faleceu em 1872. Foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro [fundado em 2.10.1838]. Escreveu O eremita de Jafa, poesia, 1844; Oblação do Cristianismo, poesia (1845)[1]; Um suspiro de Deus, poemeto, 1846, etc. Colaborou com diversos periódicos oitocentistas. 

Como já referi, colaborou num periódico literário do Rio, Íris (1848-1849), onde encontramos, de entre outros, textos de Gonçalves Dias, Joaquim Norberto de Souza e Silva, Manuel de Araújo Porto-Alegre, Emílio Joaquim da Silva Maia[2], e a lusocaboverdiana Antónia Gertrudes Püsich (Sant'Anna, 2010 p. 16).

A Oblação imprimiu-se em Pernambuco já em 1844, mas o título evoca nitidamente Chateaubriand. O poeta não ficou por aí: para além das obras citadas por Benedita de Cássia Lima, publicou A revolução de Novembro[3], À saudosíssima memória de S.M.F. a senhora D. Maria II: tributo de veneração e respeito (Bandeira, 1854). Esta evolução, porém, me pareceu sintomática do tipo de personalidade em causa e do meio no qual Maia Ferreira se terá apercebido da escola romântica. Por tudo isso, mais as possíveis relações em comum com o nosso poeta, incluindo com o seu irmão médico e historiador, temos que dar alguma atenção ao livro, de resto guardado nas estantes do Gabinete Português de Leitura do Recife.

Um tópico da época, usado igualmente por Maia Ferreira e que aparece no «Prólogo», é o da “lira” da “infância”: “minha lira, erguida do vergel da infância, ainda respirando o hálito que a bafejou mais cedo” (Bandeira, 1844 p. 12).

Já não seria tão incipiente, no jovem estudante, a consciência histórica da literatura, embora ainda mal delimitada. O aluno de Olinda afirmava que a poesia “de hoje”, a “moderna”, é romântica e dizia que o romantismo era um “género de transição”, embora “que vai reinando…” (Bandeira, 1844 p. 10). Manifestava, como se vê pelas citações, uma percepção confusa e distorcida do movimento romântico, isto cinco anos antes das Espontaneidades de Maia Ferreira.

O romantismo que revela é baseado na crença em Deus, d’O qual viria, “em última análise”, a própria poesia, associando pensamento poético e religioso de uma forma que recorda vagamente Domingos Gonçalves de Magalhães e Chateaubriand (Bandeira, 1844 p. 12). A visão é a mais nobre possível, mas parece apenas de imitação.

Depois ele dá-nos a verdadeira razão do seu romantismo, como de muitos na época (Bandeira, 1844 p. 11)
o romântico tem uniformado e também modificado o génio [que, pelos vistos, é uma coisa que se modela à vontade, não é transcendente, nem instintivo, nem espontâneo], porque traz a ideia poética do tempo [presente] diante de si, e, como sucinta linguagem dela, tem sido a salvaguarda do gosto, nas nações cultas. 
Ainda que absorvido por tão subidas salvaguardas, como Castilho aprecia “o génio”, que “não tem sido atado, nem lhe têm cerceado os voos”, mas acha que a poesia é “a arte do belo ideal, e o belo é filho do apuro e do aperfeiçoamento” (Bandeira, 1844 pp. 10-11). Junta, portanto, a defesa da inspiração (miticamente autêntica e de origem divina) com a do bom gosto, da contemporaneidade e a do apuro oficinal (absolutamente sublinhada pelos neoclássicos).

Mais adiante compara a poesia à pintura, na linha de Horácio, mas, para “prova do que digo”, avança títulos sintomáticos: Camões e D.ª Branca, de Garrett (marcos frágeis do início do romantismo português, devendo-se muito os versos de Camões ao neoclássico Filinto Elíseo), com a Adozinda atrás (primeira manifestação do interesse de Garrett pelas “tradições populares” portuguesas), mais aquela patética pastelice castilhiana que são Os ciúmes do bardo, com A noite do castelo no horizonte. Castilho foi, precisamente, o árcade do romantismo e a sua influência quadra bem, neste jovem, com a dos autores neoclássicos. Quanto a referências por assim dizer extravagantes, fala do “grão Milton” (adjetivo que talvez traga de Os lusíadas, mas a expressão é de André Chénier: “le grand Milton” (Chénier, 1907 p. 8)). O mesmo Milton de que se vendia o Paraíso perdido na loja do Sr. Bez… e que talvez assome na lírica de Cordeiro da Mata.

Com efeito, o nosso poeta inicia um “Improviso” composto «Na véspera de S. Pedro» (Matta, 2001 p. 106) com este verso, de ressonâncias huguianas se tratasse de Saturno:
Se o mundo imerso em horrorosas trevas
A continuação da estrofe constrói uma imagem igual à que Milton compõe, no Paraíso perdido, para o mundo do “Chaos”, vizinho do Empíreo. A imagem das “horrorosas trevas” é recorrente nessa obra (encontrei-a seis vezes) e houve uma tradução para português reeditada em 1830 em Lisboa (Milton, 1830). Milton (ou o tradutor) usa uma vez, exatamente, “horrorosas trevas” e outra vez “trevas horrorosas”. O poema de Cordeiro da Mata, escrito no Tombo em 1881, é uma violenta crítica ao catolicismo, ou cristianismo, chamando “intrujão” a São Pedro. Possivelmente a obra de Milton (na tradução desse “padre vimaranense”) foi lida pelo nosso poeta, tanto quanto pelo estudante brasileiro no Recife, cerca de 40 anos antes.


A tipografia que imprimiu a obra de Torres Bandeira deu à luz os Ensaios poéticos de F. de Araújo Barros, idos de Pernambuco para o mundo em 1847  (Barros, 1847), ano a seguir ao dos Primeiros cantos de Gonçalves Dias, que viu sair também a muito requisitada tradução poética da Ilíada feita por Odorico Mendes – enquanto a Inglaterra já ouvia rugir O morro dos ventos uivantes e, embora com menos estrondo, o Manifesto comunista começava a ser escrito por Marx e Engels.

O livro abre também com o tópico da infância para cativar a condescendência dos leitores: “ei-las aí; as minhas poesias, as poesias de minha infância. Rudes, dissonantes talvez…” (Barros, 1847 p. V). Diz que adere à “Escola romântica”, pelo que lhe devemos dar alguma atenção. O Romantismo caraterizava-se na obra, clássica e retoricamente, como um conjunto de topoi, vários dos quais anteriores: 
um volver d’olhos [“Um mover de olhos, brando e piadoso – Luís de Camões], uma expressão fagueira, um gesto feiticeiro, um nobre ademan [tópico medieval que veio até ao fim do primeiro romantismo pelo menos[4]], uma espada lampejante [Deutoronómio, 32:1-52], e brunida [polida], o trom da artelharia [Herculano, 1838][5], o nitrir dos corcéis
Este último verso é sintomático e merece mais umas linhas. O “nitrir dos corcéis” veio da Ilíada. Manuel Odorico Mendes usa exatamente esta expressão na tradução acima referida, que saiu neste mesmo ano. A expressão, a partir de Homero, disseminou-se por toda a cultura europeizada. Surge, por exemplo, na Jerusalem liberata (1581) de Tasso (1544-1595), que aparece nas nossas fontes e era vendida no Rio de Janeiro, no início do século, em tradução francesa (Abreu, 2003 p. 117); ressurge, ligeiramente modificada, no poema Camões de Garrett (Paris, 1825), que circulou por Angola e Recife (“De cavaleiros, e corcéis nitrindo”); finalmente nos Primeiros cantos de Gonçalves Dias, “Como um corcel a nitrir”. Bem dizia aquele jovem que o Romantismo “tem lançado” o seu fundamento “sobre os destroços da Escola clássica”. A palavra “destroços” não deve preocupar-nos muito, como também não o preocupou a ele. Os seus “cânticos”, costumava com eles “recriar-me nessas horas d’indizivel prazer, em que o espírito se apraz de sorrir às tempestades do mundo, para folgar com suas conceções” – amada poesia que, no ano seguinte, enquanto na França se tentava acabar de vez com a monarquia, lhe facultava ainda as doces Melodias.

As epígrafes são, entre outros, do antecessor Torres Bandeira, de Castilho (p. 14), de Lamartine (uma citação inócua para quem já conhecia a Bíblia: “Le jour où, séparant la nuit de la lumière”[6], mais três (Barros, 1847 pp. 23, 43, 47, 108)), de V. Hugo (inexpressiva também: “il faut nous suivre”  (Barros, 1847 p. 69)), de Gonçalves de Magalhães, de Byron, Chateaubriand (p. 93) e uma de Gonçalves Dias (para variar: a «Canção do exílio» (Barros, 1847 pp. 43-65), numa versão (Barros, 1847 p. 40 «Canção imitada») muito mais fraca do que a de Maia Ferreira). Faz também traduções de Lamartine e Vítor Hugo (Barros, 1847 pp. 139-145), cuja obra ainda não se anunciava no Diário de Pernambuco. O xarope deve ter tido sucesso, pois no ano seguinte publicaria as suas Melodias enxertando as mesmas referências. Significativo que tenha acrescentado sobretudo, relativamente ao título anterior, epígrafes clássicas e neoclássicas. Listo os autores todos das epígrafes, para que o leitor informado avalie por si: o Caramurú, Alexandre Dumas, Eugène Sue, Fénelon, Milton, Alvarenga, Shakespeare (Hamlet), Virgílio (duas vezes citado) e os Ciúmes do bardo Castilho. Era esta amálgama qe circulava no ambiente literário do Recife, do Brasil e de Angola quando Maia Ferreira construiu os seus versos, em verdade mais românticos do que estes.

No nosso caso, a circulação de títulos de clássicos e neoclássicos deve ser levada em conta, pelo menos, até ao aparecimento de Pedro Félix Machado com os Sorrisos e desalentos (Machado, 1892), inédito para a cena literária angolana. Incluindo no rigor formal dos sonetos, pois esse rigor é uma das caraterísticas que os parnasianos admiram nos neoclássicos e no helenismo. Mas estas referências dão, sobretudo, corpo ao que disse antes sobre um lastro neoclássico mantido posteriormente e não só por via dos padres. Acho que os primeiros românticos de Portugal, do Brasil e de Angola deram sinais desse neoclassicismo nos seus versos e só muito lentamente o fomos perdendo.









[1] Creio que esta data não está certa. Pelas minhas anotações, foi em 1844.
[2] Nasceu no Rio de Janeiro. Não pertence à família de Maia Ferreira.
[3] “Publicado no jornal A União, de Pernambuco, ns. 300, 303, 314, 315, 329, 331, 332, 333, todos de 1850” (fonte: Universidade Federal de Santa Catarina. Literatura brasileira: catálogo. [consulta em 4-2-2010]. Disponível em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?id=198674.
[4] V., para e por exemplo, Almeida Garrett, «Fernam Rodrigues: Canto I». Revista literária: periódico de literatura, filosofia, viagens, ciências e belas artes. Porto. 1:1 (1838) 339s.
[5] Leia-se, nesse livro, «O soldado».
[6] O interesse vem de estar incluída num «Hymno ao sol» (o primeiro poema do livro: p. 1).

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