Os clássicos gregos e latinos ocupavam lugar importante nestes mercados,
como era de esperar – e mais comuns os latinos do que os gregos, em particular onde havia Estudos Jurídicos e Eclesiásticos. Basta lembrar
que, para ingresso nos Estudos Jurídicos (de Olinda e São Paulo) previa a Lei
de 11.8.1827 “aprovação”, entre outras, nas disciplinas de “Grammatica Latina,
Rhetorica, Philosophia Racional e Moral” (Leopoldo, 1827). Muitos autores requisitados pelos
anúncios do Diário de Pernambuco foram,
de facto, gramáticos e retóricos, oradores e pensadores. Na proposta para a
criação dos Cursos, de 1825 (Cachoeira, 1825), especificava-se que “a philosophia
racional apura o entendimento e ensina as regras de discorrer, e tirar conclusões
certas de princípios”, enquanto “a moral, ou ethica, é como a base, ou antes o
primeiro degráo para o estudo do direito natural”. Ainda para os exames
preparatórios, deviam os estudantes, no âmbito da Filosofia Moral e Racional,
aprender a aplicar o raciocínio lógico “exato”, bem como “na metaphysica
perguntarão [os examinadores] pelas mais importantes, como a liberdade, e
immortalidade d'alma, a existencia de Deus, e semelhantes.” De onde se deduz a
importância de muitos clássicos, antigos e ‘modernos’, a par dos racionalistas,
para a preparação dos alunos de Olinda e de São Paulo. Mas não só da Filosofia…
Estipulava-se ainda que os alunos deviam, nos “estudos preparatórios”,
desenvolver “o estudo de rhetorica”, porque ele “é tambem indispensável” aos
que vão trabalhar num Tribunal, numa Assembleia, enfim, na Política e no Fórum.
Este estudo obrigava a conhecer bem os clássicos, quer os antigos (gregos e
latinos), quer os de séculos mais próximos, pois
no exame de rhetorica
perguntarão pelos preceitos em geral, e fazendo analysar alguns lugares dos
escriptores mais afamados tanto em prosa como em verso, inquirirão onde está o
uso dos preceitos da eloquencia, e poesia.
É neste ponto que entram os nomes interessantes para o meu levantamento: “escritores mais afamados, tanto em prosa como em verso” - que de alguma forma irão marcar, ainda quando negativamente, os examinados e futuros advogados, escritores vários deles.
Tinham, por igual, os candidatos, que estudar os clássicos para
aprender a língua latina:
uma boa instrucção litteraria, para conhecimento dos
livros clássicos de toda litteratura, é peculiarmente necessária para os
estudantes juristas.
O estudo desses clássicos, tão distantes no tempo e no
espaço, requeria naturalmente guias e manuais, traduções “ao pé da letra”,
anotadas, resumidas e quejandas (etimologicamente: do mesmo género). Mas, mais importante, os exames implicavam
traduzir
os melhores livros em prosa, e verso, por ser este o meio de se conhecer exatamente
o aproveitamento dos examinados na intelligencia da mesma lingua [a latina –
como também a francesa].
Na lista de ofertas onde surge o nome de Eusébio Matoso Coutinho
incluem-se alguns exemplares ilustrativos da representação que detinha, nestes
mercados, a literatura grecorromana, traduzida em parte pelos neoclássicos e
incluindo oradores, historiadores, filósofos, retóricos, gramáticos. É o caso,
entre outras, das obras de Cícero, que detém uma presença esmagadora nos
anúncios, representado pelas Cartas,
pelas Orações e pelo De oficiis – os dois primeiros em latim
ou português. É o caso, também, das obras de Horácio (mais frequente ainda que
Cícero), representado pela “arte poética”, em tradução de Cândido Lusitano e,
numa segunda oferta, traduzida por J. Soares Barbosa; havia ainda anúncios
relativos às Obras, ou às Oeuvres, bem como às Odes [em latim] e à lírica em geral.
Ovídio estava representado nos anúncios com mais de dezasseis referências,
incluindo uma à tradução de Castilho das Metamorfoses.
Saltando para a Retórica, aparece-nos o venerável Quintiliano, que tinha
igualmente uma presença importante nos anúncios do Diário de Pernambuco, atravessando todo o período estudado. Tito
Lívio, o historiador, era outra das presenças esmagadoras nos anúncios e que
ainda constava da lista de ofertas de Eusébio de Queirós, como também Virgílio,
em português “ao pé da letra” e a “Iliade”
de Homero, “em portuguez, ainda sendo usada”. Sobre isso, porém, o quadro que
anexo ao livro é suficientemente elucidativo para dispensar uma enumeração
exaustiva aqui. Retenha-se, tão somente, o largo arco disciplinar que, para
estudos de Retórica, ia da Poesia à História, naturalmente passando pela
Oratória.
É certo que os estudantes, como se vê pelo futuro ministro, se
desfaziam dos livros, o que podia significar que deixavam de os ler, ignorando
a partir dessa altura o que aprenderam. Mas o que aprendemos em grande parte
fica, ficam os exercícios, o treino, o domínio dos truques retórico-literários,
as informações e opiniões. Leiam-se discursos elucidativos da poderosa oratória
de Eusébio de Queirós, anos e anos depois dos estudos no Recife, para se concluir
alguma coisa de mais seguro acerca do assunto. Para além do que se vincava na
memória, possivelmente escolheriam novas edições de livros ou de autores
prediletos. Escolheriam, talvez até, exemplares novos das mesmas edições, visto
que adquiriam usados enquanto estudavam, que sempre eram mais baratos e tinha
que sobrar dinheiro para a boemia, para os amores e os licores, os teatros e as
cortesãs, bem como para os fatos elegantes que, por vezes, haviam de pagar-se
muito lentamente…
Partindo para a análise dos dados recolhidos em Recife-Olinda, comparo-os
com as considerações de António Pereira, censor oficial, num manual que devia
ser lido pelos estudantes dali e com dados oriundos de outras fontes. Em geral,
verifica-se um alto nível de concordância, como dá já para ver pelas
referências da lista de ofertas de Eusébio Matoso Coutinho, publicada em 1831.
Possivelmente isso quer dizer que o mercado era muito condicionado pelo ensino,
particularmente o universitário. No entanto, comparando estes dados com outros
da segunda metade do século em Portugal, igualmente marcados pela academia,
noto algumas mudanças, que podemos observar olhando para uma obra que faça o
contraste. A verdade é que mudaram alguns cânones no próprio ensino superior…
Na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda (antiga biblioteca da
Câmara) encontra-se um exemplar caraterístico.
Trata-se da Miscellanea
Hellenico-Litteraria offerecida aos estudantes da segunda cadeira do Curso
Superior de Letras pelo professor da mesma cadeira António José Vialle do
Conselho de Sua Magestade Sócio effectivo da Academia Real das Sciencias (Viale, 1868). Foi publicada
em Lisboa, pela Imprensa Nacional, em 1868 e adquirida por um aluno, Thomaz
Sequeira, que assinou o exemplar em “Novembro-2-1868”. Não sei se o comprador
era de Angola, nem como o exemplar ali apareceu. Pelas anotações e sublinhados
parece-me ter sido um aluno que recorreu ao livro principalmente para estudar
para um exame. Ele próprio terá escrito, no ante-rosto, com letra quase
ilegível: “aula do Ex.mo Conselheiro A. Jozé
Viale” (1806-1889). A página final – em branco – tem muitas anotações deste
aluno. A maioria das anotações e sublinhados são a lápis, talvez para que o
exemplar não perdesse valor comercial. De maneira que deve ter vindo parar às
mãos de outra pessoa assim que o aluno precisou de dinheiro mais que do livro.
Talvez tenha sido esse o caminho para a circulação do exemplar na colónia.
No texto inicial, intitulado «Homero e Dante», o autor justifica por
razões de estilo (para trasladar o estilo e não só traduzir) que se apresentem
versões em vez de traduções. Essas versões, para além do gosto pessoal, dão-nos
uma ideia do que se estudava no Curso de Letras: os clássicos iam até Dante (o
que se tenta justificar no texto inicial), começando em Homero, claro, seguido
pelo mesmo Dante, Hesíodo, Píndaro, Eurípides, Sófocles, Simónides, Bacchlydes,
Safo, Apolónio Ródio, Melinno ou Erina, Proclo. O conceito é muito abrangente e
o livro inclui ainda, misturado com as versões, um manual de história literária
grega (seguido pelo cónego Caetano Fernandes Pinheiro, no Brasil, em 1872 (Pinheiro,
1872[?] p. 42)) e um “Cânon
alexandrino dos escritores clássicos gregos” (há ainda uma oração latina,
epitáfios e uma inscrição, tudo em latim e escrito pelo autor). O manancial
grego representado nesta obra não teve, como disse já, grande circulação na
colónia de Angola na época estudada, ainda que não fosse completamente
desconhecido. Curiosamente, há pontos em comum entre as três fontes (o manual
de António Pereira, as minhas fontes e o manual de Viale) que são comuns pela
ausência. Cito um exemplo:
Nem Viale nem o manual que a seguir vou comentar nos falam de Lysias.
Mas de Lysias há, na antiga biblioteca da Câmara Municipal de Luanda, as Oeuvres complètes, traduzidas para
“François” pelo senhor abade Athanase Auger (1734-1792), Vigário Geral da
Diocese de Lescar e padre em Paris, da Académie des Inscriptions & Belles
Lettres de Paris e de Rouen, mestre em Artes com candidatura recusada à
agregação em Belas-Letras, discípulo de Rousseau e apoiante moderado da
Revolução. O exemplar foi impresso em Paris e publicado por De Bure, Théophile
Barrois e Alexandre Jombert em 1783. Foi encadernado em Lisboa pela Lisboa
& C.ia, Livraria
Internacional, Encadernadores – que selou o verso da capa (julgo ter
funcionado, esta empresa, na segunda metade do século XIX). Ali se reúnem os
discursos de Lysias, alguns dos quais pronunciados por ele próprio e outros
não, como era comum no seu tempo. A retórica de Lysias seria, creio, o motivo
principal que o trazia para Angola.
Quanto aos autores comuns (ao manual de António Pereira e aos anúncios)
há dois assuntos a explorar, bem mais interessantes que uma listagem
ressequida. São eles:
1) Como eram lidos os autores clássicos na época?
2) Em que medida eles foram importantes no século XIX e, particularmente, no século XIX angolano?
Tanto quanto me permita uma enumeração que não posso dispensar (porque nenhum livro a dá), tentarei, pelo menos, esboçar respostas às duas perguntas
enquanto sigo a enumeração e as considerações de António Pereira, autoridade
intelectual, pedagógica e moral.
O Diálogo
sobre os autores da língua latina, do Dr. António Pereira, “com o juízo
crítico às suas Obras, Idades, Estylos, e Impressoens” e sendo “para o uso das
escolas da Congregação do Oratório” (António Pereira era oratoriano) constrói,
em poucas linhas e num estilo de exame oral, um verdadeiro cânone latino,
explicando-se porque motivo são excluídos determinados autores e não outros.
Apesar de se destinar às escolas “do Oratório”, servia também fora delas, como
se percebe lendo os anúncios do Diário de
Pernambuco. Daí que nos mereça uma atenção particular, apesar do
esquematismo que nele paradoxalmente mata qualquer veleidade de eloquência,
mais ainda de personalização. Por outro lado, o facto de se centrar nos latinos
coincide com a escassez de títulos de clássicos gregos em fontes angolanas e
brasileiras consultadas.
Claro que nesse tempo terá havido opiniões divergentes, mas o cânone é
neoclássico, embora venha até ao período romântico, marcando-o. O neoclássico
filtra os clássicos gregos e latinos por um critério cuja definição passa pela
visão que se tinha da própria literatura e pelo sistema de valores que ela
vinculava. O Romantismo veio fazer uma filtragem posterior, mas condicionada
por esta, ou misturada com ela mesmo sem dar por isso, acrescentando-lhe uma
preferência por oradores empolgados e com uma biografia interessante. A importância do critério neoclássico, no
contexto da investigação realizada, vem daí, de ele ter definido o que havia
para ler dos autores antigos e de se dar mesclado já com o Romantismo.
O autor e o Diálogo
servem-nos, então, para visitar imagens precisas das filtragens por que passava
o legado clássico tal como chegou ao romantismo lusófono e nele se transformou.
O P.e e Dr. António Pereira de
Figueiredo (1725-1797) terá
sido um dos autores da reforma da educação feita pelo Marquês de Pombal em
Portugal, o que desde logo lhe comete uma autoridade extraordinária. Foi tradutor
da Bíblia, no todo e por partes, acrescentando-se assim a autoridade religiosa e moral à pedagógica.
Livros seus circularam em Benguela, Luanda, Rio de Janeiro e Recife. Em Angola,
o seu Novo metodo da gramática latina,
por determinação do Comissário responsável pela reformulação do ensino, Dr.
João Delgado Xavier (Juiz de Fora de Luanda, Procurador da Coroa, Desembargador e Juiz
Presidente do Senado da Câmara), substituía a partir de 1765 os velhos
métodos dos jesuítas. No Recife anunciava-se, em outubro de 1831, a História sagrada em 23 volumes, não
ficando claro se era dele ou se o nome dele indicava simplesmente uma obra cujo
título não se mencionou; procurava-se, em Maio de 1840, o seu Novo testamento e anunciava-se a sua Bíblia. A 24-3-1837 e a 15-1-1842
anunciava-se a sua “Arte Latina” também no Recife. No primeiro caso (1837), a
3.ª impressão, corrigida, feita em Lisboa em 1759 – o mesmo ano em que saíam na
mesma capital os “Elementos da Invençam,
e Locuçam Retorica, ou Principios da eloquencia / Escritos, e illustrados
com breves notas por Antonio Pereira”, impressos na “Officina Patriarcal” de
Francisco Luís Ameno. No Arquivo Histórico Nacional, em Luanda, estava a sua Coleção de palavras familiares latina e
portuguesa; em Benguela, no inventário de um espólio (1855), onde constam
vários dicionários e gramáticas, foi mencionado o Novo método da gramática latina, que teria sido enviado para Angola
também por uma remessa de 1852 (pedida em 1848), organizada pela Igreja (de que ficou uma relação guardada na Biblioteca Nacional em Lisboa, Ms. 216, n. 43). O
livro era igualmente negociado na praça do Recife, portanto havia alunos e
professores da Faculdade de Direito e dos colégios locais a precisarem dele. No
espólio de Benguela dá-se uma referência mais completa, mas não sei se mais exata:
Lisboa, 1752.
O facto de, nas fontes angolanas, predominarem as obras do latinista
não nos afasta da literatura. Sabemos que as Instruções para o ensino do Latim previam,
quando os alunos possuíssem já “alguma luz da língua” (a suficiente para
conhecerem “a beleza da poesia”), o estudo dos poetas (entre os latinos se
destacando Horácio e Virgílio) e da poesia, a diferença estilística entre
“poesia” em verso e “prosa” e tudo quanto diga respeito aos aspetos formais, em
particular associados à qualidade dos versos. Aqueles que se sentissem
vocacionados fariam, depois, exercícios poéticos no âmbito da aprendizagem. Os
autores estudados, a partir de uma seleção do P.e Caetano de
Mesquita e por esta ordem, são: Plauto, Terêncio, Fedro (cujas fábulas, com as
de Esopo, eram usadas para exercícios de retroversão), Ovídio, Virgílio,
Horácio, Juvenal, Áulio Pérsio Flacco e as sátiras de Lucrécio (Andrade, 1981 p. 283). Todos eles foram
devidamente comentados por António Pereira no livro que uso como tábua de
comparação.
Dada a posição canónica dessas obras do retórico e latinista português,
não é de estranhar que deparemos, no futuro, com alguma referência a este Diálogo, ou aos Elementos da invenção, num contexto estritamente angolense. Acresce
que o Padre Dr. António Pereira foi “Deputado ordinário da Real Mesa Censória”,
“Oficial de línguas da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da
guerra”, “bem conhecido em toda a Europa pelos seus escritos”, segundo a nota
de falecimento publicada na Gazeta de
Lisboa.
Mas as suas obras servem-nos aqui para resumirmos o que era o Neoclassicismo
em língua portuguesa, esquematicamente falando, e vermos de que modo se pode
perceber a sua influência pesquisando a bibliografia que circulava em Angola no
período romântico. Ao mesmo tempo, vamos desfilando as referências do
classicismo latino que circulavam pelos mercados angolense e pernambucano da
época e vendo que possíveis interesses elas teriam para os leitores do século
XIX entre nós.
António Pereira divide a literatura latina em quatro idades, míticas e
bíblicas: ouro, prata, bronze e ferro. Cada uma delas é conotada com valores
cuja positividade vai diminuindo, numa visão pessimista da história literária
latina e mundial. Na fase áurea publicaram-se os mais conhecidos ainda hoje,
entre os quais os que mais visitam as nossas fontes: Virgílio, Horácio, Ovídio,
Catulo, Terêncio, Plauto, Propércio e, na prosa, Tito Lívio, Catão, Cícero,
Júlio César, Cornélio Nepote – entre outros. A divisão é entre “poetas” e
“prosadores”, iconizando o espírito de uma época, um momento crucial da
biografia comparativa dos termos «literatura», «poesia», «verso», «lírica»,
«prosa».
Os prosadores agrupam muito do que nesse momento se chamava de Belas
Letras: a Oratória, a História – sobretudo essas duas. Veja-se para exemplo o
título anunciado, junto com “livros jurídicos”, a 8 de outubro de 1831 no Diário de Pernambuco: “Lectures on Belles Lettres and Logic by
the late William Bawon”. Os poetas eram aqueles que escreviam em verso, em qualquer género.
Revelando os sintomas da mudança semântica sofrida ao longo dos séculos XVIII e
XIX, a poesia era já de uma nebulosa definição, entre a lírica e o verso (Silva, 1984). Mas o conceito de
«poesia» albergava ainda a epopeia e, por isso, parece que o mais forte nessa
dualidade era a distinção entre prosa e verso, que não era a única da época (pensemos
em Diderot, o enciclopedista). Só no Romantismo a conotação da prosa com a
narrativa e do verso com a lírica se tornará absoluta.
Apesar das inesperadas nebulosidades conceptuais, a intenção canónica
do Diálogo e seu cânone são
reiterados e assertivos: “...tirando vários arcaísmos de Catão, Plauto [referência
do teatro da época em Luanda], Varrão, Lucrécio [cuja biografia, por Lagrange,
aparece num espólio de Benguela de 1856 e que foi também glosado por Byron no D. Juan (Vera, 1999 p. 470ss)]; alguns poucos
de Terêncio, e Catulo, cada hum destes Autores é no seu género um perfeito
Modelo da pureza, propriedade, e elegância que nas nossas composições
latinas devemos imitar”. Os sublinhados são meus. Servem para realçar,
não só tal intenção, também os valores estéticos dominantes (o que “devemos
imitar”): atualidade (as palavras caídas em desuso são “arcaísmos”), “pureza”,
“propriedade” e “elegância”. Aplicando-se às “nossas composições latinas”, ia
certamente influenciar também as escritas em português – e, no nosso caso,
principalmente Manuel Patrício Correia de Castro.
Uma linguagem onde essa poética atinge o seu contido esplendor é a de
Filinto Elíseo, amigo de Lamartine em Paris (a quem deu explicações), que o
refere (a Filinto) no poema «La gloire» das Primeiras
meditações poéticas. Os valores estéticos partilhados, a julgar pela
prolongada popularidade (pelo menos entre os escolares) das obras de António
Pereira, terão influído no primeiro romantismo lusófono, uma vez que alguns dos
seus poetas se formaram com a circulação dessas obras, aprendendo eloquência e
latim com elas, ao mesmo tempo em que ainda liam Filinto Elíseo e muitos o
faziam com agrado. A influência destes valores vai mesmo por quase todo o
século e vemos ainda em 1872 o cónego Fernandes Pinheiro defendê-los no Brasil:
“estamos naturalmente predispostos a reconhecer como mais espirituoso e
civilizado o povo que com maior elegância e clareza se exprime” (Pinheiro,
1872[?] p. 10).
É claro que tal influência veio misturada, sobretudo no segundo quartel
do século XIX lusógrafo, com o processo de libertação relativamente à necessária
existência de um bom gosto, de regras
universais que o definissem e de técnicas universais que o garantissem. Tal
tese (a do necessário, coletivo e único bom gosto) era defendida, por exemplo,
por Francisco Freire de Carvalho, cujas Lições
de eloquência nacional e cujo “resumo da poética” foram comerciados no
Recife, em 1842 e 1845 pelo menos. Ele partilha muitas das posições de António
Pereira. Mas não só. Por circularem nos mesmos espaços com essas funções, há
uma zona larga e viva de intersecção partilhada pela poética neoclássica, as
obras de António Pereira, a poesia de Filinto Elíseo, a retórica do francês
Villemain e os poetas e críticos românticos. É esse território integrativo que tenciono
farejar, investigando como se transformava e mantinha o legado clássico nestes
mercados literários.
Quanto aos “dotes” sublinhados pela sua classificação dos autores
latinos, realçava António Pereira os escritos de “Terêncio, César, Nepote,
Cícero, Virgílio, e Horácio”. Excetuando César (entretanto referido por Manuel
Patrício Correia de Castro, o nosso deputado em Lisboa) e Terêncio (provavelmente
um berbere nascido em Cartago em 190 AC e que se vendia no Rio de Janeiro
também), todos os outros nomes se repetem nas fontes angolanas, mesmo depois de
1850 (e Terêncio consta dos anúncios no Diário
de Pernambuco, pelo menos entre 1837 e 1845). Terêncio foi referido por
Ubiratan Machado (Machado, 2001
p. 205) entre os
autores da biblioteca do Convento de S. Francisco em Olinda (a biblioteca
fundou-se em 1833). Curiosamente é a Terêncio que o autor vai colocar ainda
reticências, devidas a “algumas poucas vozes, e frases, que já no tempo de
Cícero se davam por antiquadas”. Não nos deve admirar este uso antiquado:
parece que as margens de um dado domínio linguístico se mantêm mais próximas
dos termos antiquados do que os núcleos emissores – e mesmo por isso, por serem
mais recetoras que emissoras, não se ‘atrevendo’ a inovar. É, de resto, um
processo com paralelos no mundo literário, pois também os literatos das margens
da globalização euro-americana não se sentiam suficientemente à-vontade para
inovar…
É sintomático, em alguém que vem de uma das pontas do mundo
grecolatino, esse recurso às frases e “vozes” antiquadas. Os limites das
semiosferas apresentam com frequência tais arcaísmos, o que explicará o sabor
antiquado que nos fica ao lermos alguns dos nossos autores do século XIX,
colocados na zona de interseção e transição entre duas semiosferas,
radicalmente diversas, e estimulados pelos medievalismos românticos (que
apontavam para outra semiosfera, já caduca). Arcaísmos que, de resto, me parece
terem de ser pensados de outra forma: como resultado de, nessas comunidades, a
evolução linguística ter conservado palavras diferentes das que se mantiveram
no uso quotidiano na comunidade de origem da língua. Não se trata, sempre, de
arcaísmos, mas de arcaísmos que diferem de comunidade para comunidade. Isso nos
fará retirar algumas leituras preconceituosas de certas passagens em poemas de
Maia Ferreira.
A preocupação canónica
de António Pereira, minuciosa, nos indica as edições existentes e as ótimas
para cada um destes autores (o que devia ser perguntado nos exames). Tais
indicações potenciam largamente o exercício comparativo com as edições lidas em
Angola e Recife. Ao mesmo tempo compara António Pereira os ditos autores com
mais pormenor. Por exemplo: “Plauto excede a Terêncio na agudeza, e festividade
cómica; Terêncio excede a Plauto na elegância, e na nobreza, e suavidade, com
que exprime os afetos”. Por aí vai reforçando valores estéticos que,
resumidamente, expusera antes: elegância, agudeza, nobreza, suavidade. E
ficamos a saber que, a julgar pelas fontes angolenses consultadas, preferimos a
“agudeza” e “festividade cómica” de Plauto à “elegância”, “nobreza, e
suavidade” de Terêncio.
A presença destes autores no território colonial
angolano não era dispicienda. Um espetáculo programado pela «Associação 31 de
Outubro», por exemplo, consistia numa “récita” dada pela «Associação Alunos de
Plauto». Isto em 29.1.1874, praticamente no último quartel do século
XIX. Plauto (Marco Accio, ou Tito
Maccio) nasceu em Sarsina
(Umbria, hoje Itália) por
volta de 254 AC (tenho lido várias datas, desde 224 até 259 AC). Tornou-se
famoso como sátiro, “o primeiro cómico latino” segundo Fernandes Pinheiro (Pinheiro, 1872[?] p. 53). Ele seguia os
temas, cenários, intrigas e personagens da antiga Grécia, como os seus colegas
da mesma época (Lívio Andrónico, Cneio Évio, Quinto Ennio), tentando igualar
Aristófanes e outros. As literaturas engatinham os primeiros passos e
desenvolvem-se por imitação de outras e Roma não foi exceção, mesmo que a
Itália tivesse tradições dramáticas consideradas locais. Plauto era muito
popular no seu tempo (e, como vemos, a partir daí até ao fim do século XIX),
tendo contribuído para isso o recurso a uma linguagem viva, a reprodução (sem
qualquer eufemismo) da imoralidade vigente, um domínio completo da língua
latina, particularmente da língua vulgar. Isso tudo encaixava, como reforço
positivo, nos cânones românticos e numa comunidade literária titubeante ainda
nas margens do colonialismo português em África. Não os poemas, mas as
polémicas em jornais (algumas com secções em verso) do nosso novecentismo se
caracterizaram pelas mesmas qualidades atribuídas a Plauto, com uma única
diferença: o domínio da língua portuguesa em vez do domínio da língua latina.
Sobreviveram do sátiro latino as 21 comédias que
Varrão se deu ao trabalho de expurgar, todas versões-traduções de peças gregas.
Algumas delas podem ser lidas em linha em várias línguas europeias.
Claro que estes autores não eram seguidos
cegamente, nem considerados sem mácula. O que é importante é a persistência da
memória deles e da sua influência, como também de um diálogo em que eram
superiores, mas não perfeitos. Por isso diz ainda o P.e A. Pereira o
que deve ser evitado em cada um. Os defeitos apontados seriam perigosos para um candidato a escritor, ou a leitor categorizado, mesmo no seio do Romantismo
e na pequena e titubeante colónia literária de Angola. De Plauto havia que
recusar os arcaísmos e “certas frases escuras”, “certas vozes inventadas para
riso, e divertimento do teatro”, “certas metáforas vazias usadas com o mesmo
fim” (não as evitámos na lírica, mas fizemo-lo na sátira). As metáforas mortas,
ou “vazias”, eram portanto já criticadas aqui, a sua rejeição não se iniciou
com os românticos, eles é que talvez as tenham perseguido com os olhos (ou
corações) mais abertos (pelo menos no início do movimento na Alemanha), mais
articulados ao seu quotidiano. A vivacidade da retórica francesa da Revolução e
da primeira metade do século XIX colhia destes bons exemplos, como se vê por
Villemain, ultrapassando a cristalização de outros neoclássicos e apesar de
opiniões como a de Walter Benjamin, ou de Baudelaire, que o integravam no
cinzentismo académico.
Sobre Catulo (Gaius Valerius
Catullus; 84AC- 54AC, que são datas prováveis) realiza António Pereira uma
dupla apreciação, moral e estética: “os seus Epigramas são elegantes, tão
suaves, tão puros na frase, como obscenos no assunto”. A contradição aparente
entre valor estético e valor moral havia de chegar aos nossos dias, ao
abjecionista português Luiz Pacheco no século XX, por exemplo, que tem uma
linguagem clara, elegante e pura quanto à sua construção, cujas referências são
veiculadas por um vocabulário adequado, com a palavra certa para o objeto certo,
no momento oportuno, e que, no entanto, representa os “assuntos” mais
“obscenos”. A reprovação da obscenidade limitava a criação poética e foi uma
das barreiras que o Romantismo tentou romper – se bem que, no caso português e
mesmo lusófono, acho que não decididamente. Mas o elogio da elegância, da
suavidade, da pureza gramatical e lexical, encontram-se na obra de Villemain,
na de Freire de Carvalho e nos mais variados românticos. O que os românticos
fizeram foram transformações no campo semântico das palavras, que lhes trouxeram
conotações novas e mais fortes, principalmente à palavra “pureza”, associada
agora (também) a uma identidade nacional e popular linguisticamente bem
expressa, também conotada com a infância (tópico antigo o da pureza da criança) e com a vida ‘primitiva’ – na linha de Rousseau.
A claridade, a clareza, referem-se à pureza da linguagem e do estilo,
sem passagens obscuras nem recursos ao desuso. Referem-se, portanto, aos
valores de atualidade e transmissibilidade, que a sátira e a polémica
mantiveram no século XIX, também entre nós. As passagens obscuras o Romantismo aceitava-as,
caso tivessem densidade emocional ou sugestão filosófica e não fossem em grande
número, mas o que tinha caído no desuso nem sempre (apesar dos medievalismos e,
nesses, o contexto frásico tinha que tornar a palavra viva). Este é, portanto,
mais um ponto da multímoda e complexa intersecção entre românticos e
neoclássicos no panorama bibliográfico dos mercados de Recife-Olinda, Luanda, Benguela.
Mas é Catulo, por essas caraterísticas do estilo e pela temática, elo de
ligação também com as escolas posteriores, constando os seus carmina da biblioteca de Antero de
Quental (junto com os de Tíbulo e Propércio, numa edição do famoso erudito C.
H. Weise (Fraga, et al., 1991 p. 45)).
Apesar de obsceno e do aparente pudor das donzelas românticas, Catulo mantém com o Romantismo esse ponto de ligação que é o de haver escrito
poemas eróticos (no sentido forte, sexual, da palavra) em Roma (ou ter-se
tornado famoso por isso), abrindo um caminho que muitos gostariam de ter
seguido, mas que só por metáforas e por obscuridades abordavam. Para lá do
erotismo obsceno e cru, Catulo não hesitava em zurzir impiedosamente sobre os
seus inimigos, denunciando abertamente as suas fraquezas e essa verve polémica
terá também animado o mercado bibliográfico do Romantismo, particularmente o
nosso, pois foi na polémica de imprensa que a escrita literária angolense
atingiu um dos pontos culminantes – quanto ao estilo, à capacidade de
comunicação, à eficácia na sugestão e à ironia – sempre que o sarcasmo lhe
desse espaço.
Catulo foi, além disso, não só dono de uma linguagem clara, rigorosa,
sem falhas, como também de um domínio técnico invejável, quer no epigrama que
salienta A. Pereira, quer na elegia, quer na ode. A variedade métrica por si
cultivada (apesar da tendência
para versos de 11 sílabas e para o iambo) agradaria particularmente aos nossos
primeiros românticos e veio caracterizar a lírica de José da Silva Maia
Ferreira, como bem notou Mário António.
Nos antípodas nos apareciam figuras como a de Virgílio. Junto com a
transmutação da épica, preparada pela proliferação de novelas e romances, mais
acentuadamente desde a segunda metade do século XVIII, mantinha-se a leitura
das epopeias clássicas, em parte graças às exigências académicas.
A promoção de Virgílio (Publius
Vergilius Maro, 70AC – 19AC) ao topo da hierarquia de autores do género deriva,
segundo António Pereira, de “ser a sua Eneida o mais belo, e perfeito exemplar do Poema heroico” (portanto
superior à Ilíada e à Odisseia, belas mas irregulares, capelas
imperfeitas). Podemos estranhar a afirmação, caso nos lembremos de que,
justamente, a Eneida não estava
acabada quando o poeta morreu e foi publicada assim mesmo, por exigência de
Augusto, que não admitiu qualquer ‘aperfeiçoamento’. A perfeição e o
acabamento, apesar disso, talvez estivessem já na maioria das passagens e dos
episódios do livro, pois o poeta media “sempre as palavras pela grandeza do
assunto”, sendo “tão sublime nas expressões, tão vivo nos afetos”, que vertia a
lição em admiração. Talvez o “sublime” e “vivo”, a par das imposições do
ensino, mantivessem ativa a epopeia virgiliana, apesar do seu rigor clássico e
das versões e traduções que a maculavam, ou a desvitalizavam. A par disso, a
forte aposta da Eneida na visualidade
contaria também para a sua fixação na mente dos alunos, alguns deles
interessados mais no que viam do que nas leituras dos calhamaços.
As diversas versões e traduções tornaram muitas vezes a Eneida pesada, perdendo justamente viço,
mesmo sublimidade e não só nas expressões e afetos. Apanhando uma tradução que
não sofra desse defeito, vemos que só as falas pronunciadas pelas personagens,
em momentos em que nem haveria tempo nem disposição para uma única palavra, são
o que há de mais pesado na Eneida.
Elas suspendem a ação por um discurso inverosímil naquele momento da diegese e chocam,
em simultâneo, a nossa expetativa, que nesses momentos não se compadece com
pausas. Pensemos, por exemplo, na narração de um combate pessoal ou de uma
batalha. Imagine o leitor que sabe que vai morrer, esmagado por um exército
inimigo poderoso e triunfante que o tem já cercado por todos os lados; seria
provável que se dirigisse ao comandante inimigo e fizesse um belo discurso
acerca do destino e dos deuses? Iria além de uma curta frase? Chegaria a falar?
Bom, na Eneida falaria e o que é mais
surpreendente é que esse defeito veio até muito tarde no século XIX, retirando
mesmo interesse a muitos livros de História.
Esses eram, porém, erros típicos da época e
não do autor. Em contrapartida, o desfile de episódios os carateriza,
geralmente, por pinceladas rápidas e decisivas elegendo, por exemplo, um aspeto
ou pormenor que era o mais ilustrativo, ou decisivo, para o desenlace de uma
batalha. A descrição geral do cenário da batalha é curta e a ação vai
concentrar-nos as atenções, por exemplo, no vigoroso mas também rápido combate
entre dois heróis, ou chefes, no momento decisivo da luta ou da guerra.
Igualmente as passagens de uns a outros
episódios são feitas apenas ocupando o tempo suficiente da nossa atenção. Por
imposição da época, quase não há passo que se dê e que não seja antecedido por
uma conversa e decisão entre deuses e deusas, abusando-se do deus ex machina já denunciado por
Aristóteles. Esses são momentos de pausa, mas vão começando a operar em nós a
sugestão e expetativa relativas ao próximo episódio e, por isso, acabamos
lendo-os atentamente, ou pelo menos curiosos.
O moderado e variado uso de processos de
adjetivação e metáfora contribuiria, por seu turno, para disciplinar a fúria imagística
de alguns românticos exaltados e a obediência mecânica ao ditame segundo o qual
o uso dos adjetivos enriquece as frases como em Homero. O adjetivo usado por
Virgílio é sempre o mais apropriado e, muitas vezes, para não acumular
adjetivos, ele varia entre adjetivações por pequenos sintagmas, atributos,
complementos em que outras classes gramaticais (mesmo os substantivos)
completam a qualificação dos seres e das coisas. Dou um exemplo de uma frase
muito simples: “sacrificam a Ceres legisladora ovelhas de dois anos escolhidas
segundo o rito”. Com dois adjetivos, tudo o que se segue a “ovelhas” podia ser
resumido, qualificando-as de novas e consagradas. Mas o autor já tinha usado um
adjetivo para, diretamente, cognominar a Deusa, pelo que decidiu compor duas
curtas perífrases para qualificar as ovelhas – ou melhor, a ação humana que as
trouxe ao cenário.
Estas caraterísticas tornariam Virgílio mais popular e mais útil que
outros poetas épicos na época em estudo, época na qual se privilegiava a
reportagem das ações e dos afetos acima da verbosidade pomposa do passado
barroco, cheio de frases obscuras e artimanhas engenhosas, ou da secura neoclássica,
demasiado rígida para quem pretende movimentar-se. O que é facto é que, nas
nossas fontes, o venerável Homero aparece bem menos que Virgílio: em três
anúncios de 1840 (um para uma edição em português, outro para outra em inglês e
outro ainda para outra em francês) e num espólio de 1899 em Benguela. É certo
que, no Jornal do comércio do Rio de
Janeiro, aparece mais vezes. No catálogo português Bertrand (Viúva Bertrand & Filhos, 1846) só lemos o seu nome
numa coletânea de excertos destinados ao exercício do grego antigo (Teixeira,
1788).
Ao passo que, menções a Virgílio, aparecem cerca de cinquenta: em Luanda, no
espólio de 1899 de Benguela e em muitos anúncios no Recife e no Rio de Janeiro.
O catálogo Bertrand lista uma edição das “Obras completas” em português (Virgílio, 1818-1819) e uma versão
(“tradução livre ou imitação”) das Geórgicas
(Virgílio, 1794), igualmente representada na biblioteca
Fluminense. O Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, em 1844, possuía
um exemplar de uma tradução de 1761 (“traduzidas do Latim em verso solto” por
Leonel da Costa), bem como outro da Eneida
(a tradução de João Franco Barreto, publicada em 1808). A biblioteca Fluminense
possuía três exemplares de três edições: esta (1808), a de 1664 e uma, “em
verso livre”, de 1790, com tradução de Luís Ferraz de Novais e título As eneidas de Virgílio (dividiam a
epopeia chamando a cada canto “eneida”).
Há aqui uma discrepância nítida: a antologia de versões de Viale
privilegia os gregos e muitos alexandrinos, ressaltando as versões de Homero –
que certamente faziam falta em Portugal (atente-se ao seu objetivo); por outro
lado as nossas fontes tanto privilegiam o Virgílio da Eneida quanto o lírico – mas não Homero, cuja Ilíada fazia, porém, parte das aulas de Grego no Colégio D. Pedro
II.
A maioria dos anúncios apenas aponta o nome sem indicar a obra, outros
reportam-se às Obras completas
(geralmente em francês), um dos de Luanda é a Eneida e os registos de Benguela são das Bucólicas (que foram muito lidas, imitadas também, embora alguns
autores considerem que não atingem o grau superior, por exemplo, da Eneida, ou mesmo das Geórgicas) e das Obras completas (em francês, “tradução de Dupaty”, ou ainda uma
edição de Benoist, no espólio de Benguela de 1899, do naturalista português –
radicado – José de Anchieta).
O cónego Fernandes Pinheiro desclassifica as Bucólicas (“aquém do seu principal modelo”) pela atmosfera
artificial – que é no entanto comum entre os nossos poetas e ao próprio
Fernandes Pinheiro; elogia com reservas a épica, dizendo que “peca um pouco no
plano e disposição”, bem como na irrepreensibilidade dos “caracteres dos
heróis” (Pinheiro,
1872[?] p. 74); mas
especialmente realça as Geórgicas
(que podiam ser traduzidas por Trabalhos
agrícolas (Pinheiro, 1872[?] p. 75)), que se vendiam no Recife em 1840 e 1842 e de que havia exemplares a
circular, em Pernambuco, durante o século XVIII (Verri, 2005). Elogia, no geral, o
“grande pintor das paixões humanas” (Pinheiro,
1872[?] p. 73), sensível e
meigo (se não escrevesse depois do Romantismo diria isto?). A. Pereira realça
nele a épica, não tanto a lírica. O professor José Valentim da Silva também o
estudava nas suas aulas (“o 1.º e 2.º tomos”), no Recife, mas esse não sabemos
o que dizia.
Um dos exemplares encontrados em Luanda pertenceu à biblioteca
particular de Joaquim Eugénio de Salles Ferreira. Trata-se de uma tradução de
José Victoriano Barreto Feio, em três tomos, reeditada em 1808. A assinatura de
Salles Ferreira vem na folha de rosto dos três volumes e confirma que, no meio
jornalístico, empresarial e cultural de Luanda a epopeia de Virgílio circulava
também durante a segunda metade do século. Dado o papel ativo de Joaquim
Eugénio no ensino da colónia, é de supor que o poeta latino estivesse muito
ligado aos exames e ao estudo do latim, mas certamente não seria só esse o
interesse que teriam nele pessoas com mais estudos. Com Virgílio viriam, em
diferido, alguns autores gregos: Teócrito pela Bucólicas, Hesíodo pelas Geórgicas
e, claro, Homero pela Eneida (Virgilio, 1867 pp. 20-21).
No Diálogo de António
Pereira, o que Virgílio seria para a Épica passava Horácio a ser na Sátira
(como faria muito mais tarde o cónego Fernandes Pinheiro (Pinheiro, 1872[?] p. 74))
e na Lírica. Horácio (Quintus
Horatius Flaccus, 65 AC – 8 DC) estava presente nestes mercados, aparecendo
muitas edições da que se tornou conhecida como Arte poética, incluindo a da Marquesa d’Alorna (de que ainda vi
exemplar na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda) e uma outra (publicada
em 1784), do espólio de Benguela de 1855 (do comerciante Silva Viana, que recebeu na cidade os únicos três negociantes árabes a chegarem, por terra, até ela). Esta
última pode ser a de 1794 e não de 1784, tratando-se, nesse caso, da edição
bilingue (latim e português) do latinista lisboeta Joaquim José da Costa e Sá
(1740-1803), cujas obras circulavam por Pernambuco e Rio de Janeiro nessa
época, ainda constando o título no Catálogo Bertrand de 1846. Em 1793 havia
saído a edição, bilingue também, do Pe Tomás José de Aquino,
igualmente constante no mesmo Catálogo Bertrand. O professor José Valentim da Silva,
nas suas aulas de Latim pernambucano, dava o “1.º Tomo de Horácio, Arte
Poética” e no Colégio D. Pedro II era também usado para as aulas dessa
disciplina. Mas Horácio não subsistia só por imposição do ensino. Era muito
citado por escritores de vária índole e nos periódicos da época. Por exemplo o
jornal socialista O progresso, de
Pernambuco, em 1847, cita-o em epígrafe a par de… George Sand - cujo Indiana se publicara em 2.5.1832.
É preciso recordar que a impropriamente chamada Arte poética foi lida com tudo o que a impropriedade acarreta. Como
sabem os que estudaram latim, ou os que aprofundaram os estudos literários,
tratava-se inicialmente de uma carta aos Pisões, em que Horácio lhes dava
conselhos (de bom senso poético) a pedido do pai. Boileau e outros
transformaram a Epistola ad Pisones
numa arte poética normativa, técnica e redutora. Como tal a apropriaram,
portanto, muitos dos jovens leitores e dos seus professores, mesmo os que, de
entre os primeiros, se tornariam poetas românticos. O caráter ‘prático’ da obra
deu-lhe garantias de continuidade ao longo dos tempos, pois aqueles conselhos
são de facto avisos de bom senso e de bom gosto que, mesmo para os desafiarmos,
precisamos de conhecer bem. Mas o mesmo caráter prático a retirou do cânone
mais tarde, quando o ‘prático’ se reduziu a ‘miudezas’ e ‘banalidades’ que
estudiosos ‘profundos’ e ‘geniais’ só podiam desprezar.
O sentido de equilíbrio formal, a valorização da oficina artística, o
senso da harmonia defendido na Epístola
ad Pisones devem, pois, ter marcado os nossos poetas profundamente, na fase
inicial do Romantismo, que tantas vezes negou a sua oficina e cujo programa rompeu com esse conceito de harmonia tanto quanto o cultuou na prática (de Chopin a Garrett,
por exemplo). Os elogios de A. Pereira não são poupados: “sentencioso, puro,
elegante, cheio de expressões magníficas, gravíssimo Censor das ações humanas,
e Crítico de primeira ordem”. Esta passagem é mais sugestiva ainda que a do
elogio a Virgílio, quer pelo número de valores aludidos, quer pelas maiúsculas
sobre Censor e Crítico – a primeira delas certamente repudiada mais tarde pelos
românticos, mas, ainda assim, no ultrarromantismo angolano encontramos esse tom
horaciano de censura grave das ações humanas, por exemplo num poema de José
Bernardo Ferrão («À memória do Barão de Barth») e em outros dois de Alfredo de
Souza Netto. E, no entanto, pairavam sobre eles outras sombras, entre as quais
as de Victor Hugo e de Alexandre Herculano, como passo a expor.
O poema à memória do Barão de Barth incorre na deselegância (que o Romantismo
também não valorizava) de repreender um amigo pelas suas convicções para
comentar o respetivo suicídio, comparando-se com ele para mostrar a vantagem do
crente, em vez de lamentar e compreender o drama profundo que suscitara a
tragédia. A par, o Romantismo (incluindo o ultrarromantismo angolano) sofreu de
arcaísmos lexicais ainda, por exemplo o uso de “mui” e de outras palavras que nos
romances aparecem apenas com tom irónico ou ingénuo, mas que surgem
especialmente quando se quer dar um tom medieval, ou europeu (é o caso de
certas peças polémicas do jornalismo angolano do século XIX). Não sei se era um
arcaísmo ainda o tom grave e crítico de censor moral rigoroso, mas a verdade é
que ele está ali, publicado num dos órgãos principais de vulgarização e difusão
do ultrarromantismo lusófono, espalhado ao longo da extensa rede de contactos
que a família Castilho atingia ou polarizava. A linhagem do poema de Ferrão
penso que vem de Horácio, do seu tom grave, que tanto influenciou os escritores
cristãos e conservadores. Há nele, também, alguma familiaridade com Victor
Hugo, por exemplo o Hugo do Livro Sexto (tomo II, «Aujourd’hui») de Les contemplations, em particular dos
poemas V e XVI de «Pleurs dans la nuit» (Hugo, 1856). Mas o tom grave,
que ensaia, de Censor das ações humanas, é de Horácio que vem até Hugo,
passando pelos mais variados poetas cristãos e de Hugo se redistribui para todo
o Romantismo.
As versões que Alfredo de Sousa Neto nos dá, uma de “Lefranc de Pompignan”
e outra de “Raynouard”, não passam pela deselegante postura de J. B. Ferrão. A
primeira, «A Morte de J. B. Rousseau», faz uma referência clássica a Virgílio
(“Que assim Virgílio jaz longe do estygio”), comparando implicitamente os dois
escritores (Rousseau e Virgílio). A visão que nos dá dos negros e dos egípcios
é, simplesmente, lamentável, conotando os negros, os egípcios e os selvagens e
reportando-se ao êxodo hebraico para falar em civilizados. A sua deselegância
(como também a sua ignorância) revela-se aí, num poema de recorte neoclássico e
no seio do ultrarromantismo angolano, marcando uma conceção alienígena que
afasta o autor da comunidade nacional em formação – mas não afasta o
neoclassicismo do sistema literário angolano. Essas duas atitudes deselegantes
é que distanciam mais de Horácio os dois poetas reinóis e, não tendo eu lido o
poema de Lefranc de Pompignan (1709-1784), não sei se o erro estava no texto
original ou no de chegada.
Jean Jacques Le Franc, marquês de
Pompignan, assinou uma Lettre à Monsieur
Racine, sur le théatre en général, et sur les tragédies de son pére,
publicada em 1774 em Paris. A versão local do seu poema (o
único poema famoso dele) é publicada no Amanach
de lembranças de 1882, o que pode parecer anacrónico. Mas não ficou sozinha
a anacronia no seu tempo, como verão mais à frente. Quanto a Raynouard (o outro poeta
versionado por Sousa Neto), uma sua ode, chamada «Camões», foi “traduzida em
verso portuguez” por Filinto Elíseo, Vicente Pedro Nolasco e T. L. Verdier,
saindo em Lisboa em 1819, 1825 e 1834, que eu saiba. A presença destes nomes
entra pelo século XIX português e brasileiro ainda algumas décadas e uma das
suas consequências são os poemas de Alfredo de Souza Neto em Luanda.
A versão de Raynouard tem outro interesse para nós, porque se concentra
na profecia cumprida e esse tom profético foi também cultivado pelo Romantismo e
pelo ultrarromantismo lusófonos, bem como encaixava nas tradições orais banto e
portuguesa. Na obra de um escritor angolano que veio do século XIX, António de
Assis Júnior (1887-1960), a profecia da moribunda, por exemplo, é o eixo
central da narrativa. Nas últimas décadas, em Luanda, publicaram-se também
narrativas tendo por eixo central uma profecia (ou praga) feita por um(a)
moribundo(a), ou feita para um(a) moribundo(a). É o caso de A feira dos assombrados, de José Eduardo
Agualusa, de O Feitiço da rama de abóbora,
de Cikakata M’Balundo, ou d’A dívida da
peixeira, de Jacinto de Lemos. De maneira que, apesar do seu racismo – e,
portanto, involuntariamente – as versões não deixam de apresentar pontos comuns
com as culturas dos “selvagens” e dos escritores atuais, ou do século XX, que
neles se inspiram. Mas pouco ficou já de Horácio nesta história…
Retomando o fio, a presença de Horácio também se fazia sentir pelas
Odes, que certamente influíram na valorização que dele promovia António
Pereira. São peças famosas pelo seu equilíbrio, pela justeza no uso das
palavras, pelo rigor da construção formal e, segundo o Resumo de história literária, pela “flexibilidade e delicadeza” com
que tocava “as cordas da cítara” (Pinheiro,
1872[?] p. 71). A rica
biblioteca particular de J. E. de Salles Ferreira possuía um exemplar das Odes de Q. Horácio Flacco, traduzidas em
verso por Augusto Cabral de Mello (e Silva,
1793-1871). O tradutor era natural da Ilha Terceira, “Cavaleiro Professo da
Ordem de Cristo, advogado público, secretário da Câmara Municipal de Angra do
Heroísmo” e o livro saiu lá mesmo, em Angra do Heroísmo, impresso pela
tipografia “Angrense” (“do Visconde de Bruges”) em 1853. É possível que a
família Salles Ferreira fosse, em parte, oriunda dos Açores (apesar de ser mais
comum no Brasil, tanto o apelido Salles quanto Salles Ferreira; Salles ou Sales
é frequente no norte de Portugal, encontrando-se ainda famílias com esse
apelido no Alentejo e na Madeira). Por cima da assinatura de Salles Ferreira há
outra, com uma tinta parecida, que diz “J. S. Ribe[iro]”. Ainda na mesma zona
da página se encontrava uma terceira assinatura, a cor-de-rosa, já muito apagada, que é
ilegível. O que é legível é, debaixo dela, “L.ª / 57”. “L.ª” penso que indique
Luanda, visto que Lisboa geralmente se abrevia para “Lx.ª”. Portanto o exemplar
andava já por Luanda em 1857, se não antes (e se aquele “57” não refere 1957),
e provavelmente J. E. de Salles Ferreira o comprou em terceira mão.
Na poesia elegíaca destaca António Pereira Tíbulo, Propércio e Ovídio,
“ainda que Tíbulo é muito mais fácil, e suave que Propércio, Ovídio muito mais
fácil e suave que Tíbulo”. Note-se a valorização do “fácil, e suave”, que
nenhum romântico (segundo penso) enjeitaria – embora não tornasse tais valores
absolutos. Acerca da poesia de Tíbulo diz Quintiliano ser ele “o mais enxuto e
maximamente elegante” entre os elegíacos romanos, que superariam os gregos (Carvalho,
2010 p. 24).
É, justamente, Tíbulo uma das leituras clássicas aproveitadas por
Chateaubriand, inclusivamente para identificar um traço romântico e muito seu (Chateaubriand, 1904 p. 125):
Je dérobai un
Tibulle: quando j’arrivai au Quam juvat immites ventos audire cubantem, ces
sentiments de volupté et de mélancolie semblèrent me révéler ma propre nature.
Tíbulo e Propércio eram as figuras literárias dominantes em Roma quando
nela se estreava, com elegias, o poeta Ovídio.
O sucesso de Ovídio (Publius
Ovidius Naso, 43AC – 17DC) no seio do romantismo lusógrafo deve-se, em parte, às
versões de António Feliciano de Castilho. As de Miguel do Couto Guerreiro, do
fim do século XVIII, eram “expurgadas de toda a obscenidade” e a de Bocage se
resumiu ao Livro I das Metamorfoses e
fragmentos de outros (Remédios,
1908 p. 431), que traduziu
na Congregação de S. Filipe Nery, quando foi forçado a recolher-se lá depois da
prisão no Limoeiro e nos calabouços antigos da Inquisição no Rossio (de onde saiu a
17.2.1798). Estas traduções não foram, porém, mencionadas em nenhuma das
fontes. No Brasil, Ovídio constava dos programas de Latim do Colégio D. Pedro
II e era também lido na Fac. de Direito em Recife-Olinda.
Em Benguela há, na biblioteca da antiga Câmara Municipal, um exemplar
de Os fastos, na versão de Castilho impressa em 1862. Note-se que Os fastos, publicados (eventualmente
escritos) apenas pela metade (seis cantos em vez de doze) e sob os auspícios de
Germânico (Pinheiro,
1872[?] p. 75), completados
já no exílio, ilustravam – a partir de tradições populares, poemas, crónicas e
mitos antigos – o calendário romano, suas tradições civis e religiosas,
proporcionando aos leitores cultura geral e, simultaneamente, matéria poética.
Mais ricas ainda no que diz respeito à matéria poética, no Recife as Metamorfoses eram anunciadas desde 1837,
incluindo na tradução
de Castilho, de que há um exemplar na Biblioteca do Governo Provincial de
Luanda (o «Prólogo» é de 1841, data em que a Revista universal lisbonense anuncia a sua saída para breve (anónimo,
1841 p. 12), sendo de 11
de Novembro o número que anuncia ter saído o vol. I (Anónimo, 1841)).
A biblioteca do Convento de S. Francisco, em Olinda (que desde 1833 dava apoio
aos alunos do Curso Jurídico, ainda que não fosse a mais visitada por eles),
incluía no seu espólio a obra de Ovídio (mencionado só pelo nome).
As suas cartas (“ou heroides”), escritas em dísticos elegíacos, foram
as mais requisitadas para o Brasil entre 1769 e 1807, talvez na tradução de
Miguel do Couto Guerreiro, de que há um exemplar ainda na biblioteca do Gabinete
Português de Leitura do Recife. Integravam também o catálogo Bertrand de 1846. Trata-se
de cartas pretensamente escritas por heroínas mitológicas aos seus heróis e,
nelas, as heroínas são mulheres tão-só, mulheres apenas, a quem mais interessa
amar do que os desígnios imperiais e outros. A humanização das personagens
mitológicas terá sido outro fator importante para a popularidade de Ovídio no
século XIX.
O «estudo biographico e crítico» à obra de Bocage, que faz a transição
da poética neoclássica para a romântica por uma figuração romântica e retórica
de Bocage, compara-o diversas vezes a Ovídio, como se também Ovídio fosse mais
um elo de união entre neoclássicos e românticos. Ou seja: Ovídio continua-se no
primeiro romantismo já colado com Bocage.
Mas não só por isso o poeta de Sulmo (hoje Sulmona, Itália) se manteve
importante. É que a sua obra tinha várias facetas que interessavam os
escritores românticos (a facilidade e suavidade eram apenas duas delas). Os
próprios neoclássicos, como Miguel do Couto Guerreiro, destacaram algumas:
1. o unir, e fazer um perfeito corpo de tanto, e (ao que parece) tão incoerentes membros depende de uma vastíssima compreensão para os ter presentes na ocasião oportuna, e de um engenho singular, para lhes aplicar as devidas uniões.
2. As “vivíssimas imagens” e discursos tão engenhosos “que são inimitáveis” (Ovídio, 1789).
3. A “erudição”, “amplificação” e “sublimidade dos pensamentos”, em que supera Homero e Virgílio (Ovídio, 1789 pp. IV-V).
4. Pelo conjunto das virtudes, tendo os poetas superado o gosto barroco, ser-lhes-ia útil a leitura das Cartas. Isso ajudaria a fugir do “estilo túmido, e inchado, que tanto tempo passou por sublime; mas de modo, que se não venha a cair no pueril, frígido, flutuante e dissoluto” que foi o de muitos dos versos românticos.
Mesmo os defeitos que lhe aponta não constituiriam, num dos casos, defeito para os românticos: o que tem de “absolutamente inverosímil”, para além de “infrutuoso” e “estéril”. Pode-se pensar aqui numa contradição, que talvez se aclare ao vermos que, para o tradutor, as alegorias de Ovídio não são interpretáveis pelo leitor comum (por isso tornavam-se estéreis).
O primeiro ponto elogiado por Miguel do Couto Guerreiro é reiterado
pelos estudiosos contemporâneos. O poeta latino buscava constantemente a
inovação e o método criativo mais usado para isso foi o da mistura de géneros.
É a mistura de géneros, precisamente, uma das caraterísticas mais salientes do Romantismo
e a “combinação de géneros” é mesmo considerada “a principal caraterística” das Metamorfoses. Vejamos como se dava a mistura.
Ovídio juntava, por exemplo, os “carmen perpetuum” (poema contínuo,
“ininterrompido”) e os “carmen deductum” (constituídos por uma “sucessão de
episódios entrelaçados”). Os dois tipos eram considerados antitéticos e a sua
junção causava, naturalmente, a surpresa dos leitores. Ele trazia ainda da
epopeia os símiles e “o caráter eminentemente narrativo”. Ia buscar à Tragédia
os “monólogos, especialmente de conflito”, ágones e trenos
que ela incorporava. Da “elegia erótica” importava a “linguagem amorosa”, ao
que parece com alguma influência de Propércio, que ainda conheceu, e de Áulio Tibulo.
O amoroso da elegia erótica somava-se ao pastoril, escoando ecos da “poesia
idílica”. Recorreu também a “tipos de composição elegíaca como o paraclausithyron”. Nos hinos de Baco e
de Ceres aproveitou as lições dos hinos líricos e épicos. O “pantomimo, que
tinha substituído a grande tragédia” e se tornara muito popular na época,
integra-se nas Metamorfoses e convive
com um domínio assinalável dos procedimentos retóricos, ajudando-o certamente a
libertar-se dos seus grilhões, num processo de aproximação à linguagem viva que
vai evoluindo de livro para livro e se equipara a processo idêntico iniciado
com o Romantismo.
O início do Livro II das Metamorfoses
serve-nos de exemplo: começa, “com o procedimento tipicamente épico da ecfrasis, a descrever-nos o palácio do
Sol, porém na continuação o episódio de Faeton articula-se de modo que seríamos
capazes de reconstruir quase o Faeton
de Eurípides, mas o discurso do Sol [...] está elaborado como uma suasoria e, portanto, de acordo com as
normas da Retórica, para, sem esquecer o também procedimento épico dos
catálogos, terminar com uma espécie de deus
ex machina” (Alvarez, et al., 2001).
As misturas que Os lusíadas tinham
trazido à literatura em português, no que diz respeito à epopeia, viam-se
confirmadas, nesse particular, junto dos leitores, com a autoridade de Ovídio.
Reforçavam (ambos os autores) a mistura de géneros a que o poeta romântico
tendia e que defendia.
Outra opção interessante de Ovídio prende-se com o recurso ao “fert
animus”, que “não obedece” a “uma Musa”, sendo o “seu próprio pensamento, sua
inspiração, o que o guia” (Alvarez, et al., 2001).
O ânimo próprio e transportado aparece realmente no romantismo lusógrafo com as
mais variadas faces. Aparece em Gonçalves de Magalhães programaticamente, por
exemplo, e dentro dos próprios poemas. O autocentramento da enunciação, que o
romântico pratica, vai dar unidade às obras de Maia Ferreira e Arsénio de Carpo
– embora em ambos os casos o pensamento não puxasse muito pela carroçaria verbal. Esses, a
par de outros livros do romantismo angolano, precisava também de resolver o
enlace de episódios que torna as Metamorfoses
um livro tão extenso sem quebra de intensidade no prazer da leitura nem de unidade no que Aristóteles chamava a noia. O laço de
união era o do “seu próprio pensamento”...
Outra caraterística das Metamorfoses,
simpática a sociedades alicerçadas nos diálogos e onde muitos poemas eram
diálogos, é o recurso constante à função fática da linguagem (com o autor a
interpelar diretamente o leitor, como se estivesse a conversar com ele e
quisesse segurar a sua atenção e confirmar que ele estava a acompanhar a
mensagem). Essa interpelação, conhecida pela literatura barroca lusógrafa e pelo Neoclassicismo, abundava também (e se diversificava) na História general das guerras angolanas, de A. O. Cadornega (1681-1683) e
prolonga-se por todo o romantismo lusógrafo mais de um século depois, por vezes
com a função de ironizar, como em Camilo Castelo Branco. Encontramo-la no livro
de Maia Ferreira (Ferreira,
2002 p. 54), embora seja
mais comum nele a função conativa, que também relaciona direta e explicitamente
emissor e recetor.
A figura de Pitágoras em Ovídio, particularmente nas Metamorfoses, também devia agradar aos
românticos. O mestre venerado pelo poeta, segundo Viale “o primeiro sábio que
tomou o modesto nome de filósofo” (Viale, 1868 p. 219), era retratado
modelarmente com o exílio pelo “ódio à tirania”; era também aquele que
democratizava o saber, uma vez que se acercou dos deuses para descobrir, com os
“olhos do espírito”, o que a natureza escondia – espalhando depois o
ensinamento alcançado “a todos para que [...] aprendessem”. Portanto uma figura
prometeica e útil quando se defende e quer implantar uma rede laica, oficial, de
ensino público. Em Angola, já Carvalho e Menezes lutara por essa democratização
do saber e foi no século XIX que se começou a montar uma rede de escolas
razoavelmente espalhada. A ligação de Ovídio ao sábio de Samos tornava-o,
portanto, mais simpático ainda para os angolenses e portugueses residentes que
estavam do lado da educação pública – bem como contra a tirania.
Para povos com uma forte componente animista (caso do angolano, do
brasileiro e também do português que, sob a capa do catolicismo, continuou a
acreditar em espíritos atuantes neste mundo depois do seu passamento físico)
várias das crenças de Ovídio seriam benvindas ou concordantes. Ainda a doutrina
da transmigração das almas, que anima as Metamorfoses
e era das mais conhecidas do mestre vegetariano, é exposta por Ovídio de uma
forma que se articula bem com as tradições bantos: “as almas estão livres da
morte e sempre, abandonada sua sede anterior, vivem e habitam, sendo recebidas,
em novas moradas”. O ensinamento está de acordo com o Livro dos mortos do antigo Egito, país venerado e visitado por
ambos (Ovídio e seu mestre Pitágoras), mas também com várias tradições antigas.
Em Angola supõe-se muita vez que a encarnação das almas é breve, passando em
função de uma série de procedimentos quando a sua encarnação visa pedir alguma
reparação, ou sendo movida por vingança. Também a incorporação, num corpo de
hoje, da força anímica de um herói do passado está prevista e foi praticada por
Beatriz Quimpa Vita no ritual do Kimpasi.
Esse e outros rituais pressupõem, como ainda muitos mitos tradicionais
angolanos, a constante metamorfose dos seres nas aparências, dos entes nas
coisas, transfigurando-se constantemente. Nas Metamorfoses essa encarnação pode ser a de uma vida inteira. A
oposição entre os dois tipos não é tão nítida na mentalidade popular e pode ser
ilusória. Parece-me que se trata do desenvolvimento diferente de um mesmo
mitema estruturante.
A eterna errância do espírito é reafirmada por Ovídio mais à frente em
moldes igualmente próximos dos angolanos e de alguns românticos:
todas as
coisas mudam, nada morre: o espírito vaga errante e vai de lá para cá, de cá
para lá [.../...] e não perece em nenhum momento [...] a alma é sempre a mesma
porém emigra para diferentes figuras.
A formação de imagens é de sinal
anímico. As oraturas angolanas estão cheias de estórias de metamorfoses, em que
a alma da mesma pessoa encarna em animais, por exemplo, para dar notícia da
morte da sua personagem anterior, e denuncia-a a quem sabe ouvi-la. O ritual do
kimpasi, praticado por D.ª Beatriz
Quimpa Vita, baseia-se na possibilidade de as almas transmigrarem e se
associarem a outra existência. Ovídio estava, de certo modo, em casa quando
chegava ao Congo, Luanda ou Benguela.
A presença literária de Ovídio não é, portanto, de estranhar. É de
lamentar que fosse menos influente a sua vivacidade, originalidade e capacidade
para misturar géneros, inovar, conjugar procedimentos aparentemente opostos.
Ela sente-se, no entanto, em outras paragens e através de outras línguas, com Atalanta in Calydon, de Swinburne, Henry Esmond, de William Makepeace
Tackeray, “ou a Niobé de Lecomte de
Lisle, em Francês” (Alvarez, et al., 2001).
A sua influência literária em Angola está, nesse tempo, a par da do resto do
mundo.
Quanto a Lecomte de Lisle convém falarmos dele aqui, pois é
incontornável a sua obra no que diz respeito à apropriação do legado clássico
no século XIX. Ele foi um parnasiano francês que a poesia angolana do século
XIX conheceu, tanto quanto Antero de Quental e, genericamente, a lírica realista (Figueiredo, 1924 p. 87).
O Parnasianismo está relacionado com a “renascença do helenismo clássico” em
França no segundo quartel do séc. XIX e a antologia de Viale (atrás citada)
acompanhou esse movimento em Portugal. Lecomte de Lisle, membro ativo deste
renascimento, verteu para francês as Odes
anacreônticas (1861), a Ilíada
(1866, dois anos antes das versões parcelares de Viale), a Odisseia (1867, um ano antes das versões
parcelares de Viale), Hesíodo (1869, um ano depois da versão de Viale de «A
Idade de oiro»), Ésquilo (1872), Horácio (1873), Sófocles (1877, nove anos
depois da versão parcelar de Viale do “Ajaz
furioso”) e Eurípides (1885, 17 anos depois da versão de Viale de um
excerto de uma sua tragédia). Note-se que as poesias de Olavo Bilac, o grande
parnasiano brasileiro, amigo do irmão de Pedro Félix Machado, saíram em 1888,
portanto após todas estas traduções do parnasiano francês.
A obra de Lecomte de
Lisle está tão ligada aos clássicos antigos que alguns, depois do primeiro
livro de poesia, se recusaram a considerá-lo moderno. Os seus inimigos terão
confundido uma retórica oca e “a magnificência da forma poética, o poder de
evocação visionário, a solidez do verbo, a amplidão do período, a justeza
impecável da imagem” na sua poesia. Lecomte de Lisle terá sido, no seu tempo,
um dos mais influentes (mas nunca mais popular) dos parnasianos. Dele diz Paul Bourget, em
obra que se encontrava na biblioteca da antiga Câmara Municipal de Luanda, que
“depois do fim do movimento romântico de 1830” Lisle foi o que mostrou “melhor
o abismo que separa hoje o gosto do público em literatura e o dos puros
artistas”, gostos separados, na mesma época, no mercado lusófono e
euro-americano. Para Bourget, no entanto, “uma leitura, mesmo que superficial,
das suas obras demonstra que seu tipo de imaginação o conduzia inevitavelmente
ao país do sonho religioso e cosmogónico”, daí derivando as suas “largas conceções
de conjunto”. A religiosidade e, sobretudo, a amplidão clássica da poesia dele
encontrariam simpatia, certamente, nestes leitores habituados a estudar
Horácio, Virgílio, Ovídio, Chateaubriand e Gonçalves de Magalhães.
No espaço lusófono as traduções que fez Castilho de Ovídio, Anacreonte
(líricas), Virgílio (Geórgicas), estabelecem
algum paralelo com Lecomte de Lisle.
A tríade Parnasianismo, Ovídio e Ultrarromantismo traz uma visão nova
para lermos e compreendermos uma polémica passagem de Maia Ferreira (polémica a posteriori). Uma sua expressão, das
menos compreendidas pela crítica militante, refere elogiosamente a “planta mui
breve” das “donzelas” da terra. Já me referi a ela. Precipitaram-se os
vigilantes e, para mostrar serviço, denunciaram que o pobre e alienado poeta
não via nada mais interessante nas suas conterrâneas do que o tamanho dos pés. Ora,
para um polícia da literatura o pé não passa de… mau hálito!
Alguma coisa não batia certo com essa crítica. Reparei que o tópico
ainda ressoava, no entanto, no fim do século XIX, num colaborador do Almanach que escreveu de Coimbra um
poema a uma bela ‘morena’ (1895/331). O Almanach,
pelo jogo de cumplicidades que também o sustentava, recheava-se de
colaboradores desfasados, o que podia explicar a resilência. Parecia-me, porém,
que não se tratava disso. “Planta mui breve” talvez não seja uma expressão mui
bela, mas é preciso reconhecê-la primeiro para falarmos dela. Ao estudá-la,
descobrimos ser um recurso ao mesmo tempo típico do século XIX e de sabor latino.
Típico do século romântico logo desde Lord Byron e do seu Don Juan, no qual várias vezes elogia as
mulheres por seus “suaves pés diminutos”, pelos “seus lindos pés pequenitos”,
ou simplesmente pelos encantos “desde a garganta até às unhas dos pezinhos”. É
já em Byron (de quem Bulhão Pato traduziu O
corsário, em verso português (Pato, 1862 pp. 54-55)) que a ‘brevidade’ do pé se associa à leveza do andar, por exemplo
“uns pés tão pequenos”, no harém do Sultão de Constantinopla, “que não pareciam
feitos para andar, senão para deslizar suavemente sobre a terra” (Byron, sd pp. 24, 51, 54, 55) – e a passagem nos
recorda essa outra de José de Alencar atrás citada.
Depois de Byron, quase todos os românticos lusófonos referiram a
‘brevidade’ do pé da musa. Garrett usa-o, até, como eufemismo para um irónico
desprezo:
Em longas pregas negras
Caia o veludo e arraste;
De si com desdém régio
Com o pezinho o afaste...
E esse pé não era casual no poema. Ele retorna ao
fim da quadra seguinte, compondo “os contornos”, a “pose” (Almeida Garrett, 2013 p. 50):
Nessa atitude! Está bem:
Agora mais um jeitinho;
A airosa cabeça a um lado
E o lindo pé no banquinho.
Aqui estão os contornos, são estes,
Nem Daguerre lhos tira melhor.
Este é o ar, esta a «pose», eu lho juro,
E o trajar que lhe fica melhor.
Mas a origem remota estava, como vemos, em Ovídio e na sua Arte de Amar. É Ovídio quem faz esse elogio à mulher, logo em um dos seus livros mais populares e de que ainda li um exemplar na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, com "paráfrase" de Castilho (António Feliciano). A existência do exemplar e o facto de se tratar da versão de Castilho não são de desprezar. É o mesmo Castilho que retira o vigor ovidiano à expressão, traduzindo um verso, no entanto com musicalidade, no Livro III de Os Amores: "Tinha planta airosa e curta; / Nem este encanto lhe falta" (Castilho, 1858 p. 28). Note-se que a referência aos pés antecede ainda a referência aos olhos e segue-se à da cor do rosto. Note-se, também, o parentesco entre a "planta [...] curta" e a "planta mui breve", sendo que o adjectivo "airosa" aparece logo a seguir à referência aos pés (Ferreira, 2002 p. 27):
Tem donzelas de planta mui breve,
Mui airosas, de peito fiel
Maia Ferreira, como de forma geral os nossos poetas, era um grande
orquestrador de intertextualizações e não colhemos a beleza dos seus versos se
não dermos atenção às redes poéticas de que lançava mãos. Ele poderá ter lido
esta versão de Castilho, que saiu em livro apenas em 1858, ou terá lido mesmo
Ovídio e transportou os versos em versão por algum motivo semelhante.
Os críticos militantes, creio que também não perceberam o elogio que
está no final do segundo verso: “de peito fiel”, ambivalência que refere a
fidelidade no amor e o peito firme, rijo, que Viriato da Cruz viria comparar às
laranjas do Loje, num poema de maior sugestão sensual e visual…
Independentemente disso, o rasto novecentista de Ovídio, na lusografia,
é vastíssimo. Dele darei poucos exemplos mais, relacionados com a bibliografia
que circulava em Angola nesse século. Bulhão Pato, que veio a conhecer Maia
Ferreira em Lisboa, foi talvez, no seu século, o principal poetizador da
atração pelo pé ligeiro e gracioso. Na Paquita
(cuja primeira edição em livro é de 1866), ao caracterizar Hermínia, bela
amante do protagonista, fecha a descrição com “as mãos finas e o pé… de
miniatura!” (Pato, 1866 p. 54). Reincide na imagem
do “pezinho estreito e breve” (justamente o mesmo adjetivo usado nas Espontaneidades), com que
“mal tocavas o chão!” nos “teus ligeiros passos”, na de um “pé pequeno e curvo”, “de novo aquele pé que me perdera”, de
«Lelia» (Pato, 1862 pp. 43, 44). Pedro Félix Machado, num soneto escrito em Toledo em 1891, ao
caracterizar uma ‘musa’ espanhola num verso de ressonâncias camonianas, escreveu:
“os pés em que é milagre se sustente” (Machado, 2000 p. 18) – e parece Camões a
declamar. Depois de Maia Ferreira (que publicou nove anos antes de Castilho),
Bulhão Pato, Pedro Félix Machado e outros, na passagem do século XIX para o
seguinte, em pleno parnasianismo, João Penha também se fascina em Portugal com
o mesmo tópico: “Os seus pés, de andar tão leve, / pequenitos como poucos”, de
tão leves nomeados entre os seios (as “duas pombas, de neve”) e a boca de
“carmim” – tal como em várias das poesias de Maia Ferreira. De uma leveza mais
popular ainda, era o “pé lesto” da varina a vender sardinha “de giga” no poema
«Freira», do mesmo autor e de uma sobriedade clássica “o pé, leve e pequeno” da
sua Natércia:
Um rosto encantador, quasi moreno,
De uns grandes olhos verdes animado:
Negro o cabelo, em tranças enastrado;
Correto o supercílio, íris pequeno;
Vermelho o lábio, sorridente e ameno;
Breve a cintura; o colo, acetinado;
Um donaire, das outras invejado;
Magras as mãos; o pé, leve e pequeno.
E, para sairmos da língua portuguesa, podemos espreitar o modernismo
espanhol pela voz de Vicente Aleixandre (1898-1984). No poema «Adolescente»,
ele escreve:
Pasar por un puente a outro puente.
- El pie breve,
La luz vencida alegre-.
A leveza miniatural dos pés e do andar pode não ter sido expressa com
maior felicidade poética por Maia Ferreira (e “pé breve” também não me parece
grande alternativa); isso não justifica dizerem que ele não via mais atributos
na donzela africana. Um pouco mais de estudo e cultura geral teriam evitado a
acusação, que só fica mal hoje a quem a proferiu, sobretudo a quem a repetiu
dizendo-se especialista em literatura sem ter acrescentado nada ao que leu.
Prossigamos, entretanto, que, tanto quanto Maia Ferreira, António
Pereira também não se ficava por Ovídio.
Outro poeta que, da época de prata, surge na nossa bibliografia é Juvenal (c50 ou 65 – c127). António Pereira refere-lhe 16 sátiras (há quem assegure que a
autoria da última é duvidosa), “amenas, festivas, e judiciosas” (segundo o
eventual discípulo dos seus diálogos), “judiciosas, e limadas” (segundo o
mestre). As sátiras de Juvenal chegaram a ser consideradas superiores às de
Horácio (que metricamente seguem) por Escalígero e, num mercado onde circulavam
as sátiras de Gregório de Matos e a nebulosa de anedotas adjacentes, a sua
presença faz todo o sentido. Por igual faz sentido numa literatura – a nossa –
em que o primeiro poema conhecido feito aqui por um filho da terra é,
justamente, uma sátira, por acaso uma sátira mais tarde imitada por Gregório de
Matos e Guerra e a ele atribuída no Brasil.
A sátira de Juvenal é indignada (proclamando mesmo a “indignatio como fonte imediata da
própria poesia” (Vitorino, 2003 p. 54)), violenta, despudorada
e situada – como são muitas das nossas polémicas. Ela fez o retrato crítico da
decadência romana representando um sentimento de revolta, aparentemente
sincero, contra a degradação moral.
Por esse e por outros motivos – entre os quais o equilíbrio estético e
a procura por estudantes do Curso Jurídico – anunciavam-se no Diário de Pernambuco as sátiras de
Juvenal. Nos anúncios aparece em francês, em português (“com o texto latino ao
lado”), ou na tradução de F. A. M. Bastos, que hoje circula pela Internet nos
livros do Google. Em Angola, um poeta
que deixou só dois epigramas e assinava “C. M.” (não penso que fosse Cordeiro
da Mata) será o mais próximo da sátira clássica, embora me pareça mais por via
de Marcial (cujo nome não aparece nas listas de livros), não no que ambos
possuem de clássico ou de elegante, mas no que têm de cru e de breve. Deixo um
exemplo:
À força me embutiste
um livro de máos versos, que imprimiste,
pedes-me agora a paga, tem paciencia,
que se m'os deste só pelo que valem,
nada te devo em minha consciência.
Cordeiro da Mata, por sua vez, escreveu o soneto «Messalina» e Juvenal
retrata-a como devassa na sátira VI, dirigindo-se ao bordel onde tinha um
reservado para a luxúria pessoal. Mas não vejo coincidência entre os dois
retratos de Messalina (o de Juvenal e o de Cordeiro da Mata). Teriam em mente
dois tipos diferentes de mulher: em Cordeiro da Mata a mulher interesseira, em
Juvenal a mulher insaciável e tarada. Fico, portanto, em dúvida sobre a
possível influência, mesmo só leitura, de Juvenal em Angola no século XIX.
Outro escritor famoso nesta época e entre os romanos era Fedro (c. 15AC – 50DC). Não foi
historiador nem retórico, mas ficcionista e ficcionista em verso, na linha de
Esopo, de quem reconta muitas estórias. Fedro era um liberto do Imperador
Augusto, natural da Trácia (pátria de Aristóteles, vizinha da Macedónia
oriental ocupada por Filipe II, o pai de Alexandre Magno, em 343AC e romana já
no tempo em que Fedro nasceu). Provavelmente, fez a sua primeira formação na
Macedónia, se bem que haja quem postule a sua integração desde pequeno entre as
crianças escravas do Imperador. O lugar de nascimento, ou de família, ou de
infância e de juventude, não terá sido inconsequente, tanto quanto a sua
integração na cultura romana: “traduziu as Fábulas Gregas de Esopo para um
latim tão puro, e elegante, que parece nascido em Roma”. Para além dessa
qualidade linguística e de escrita, as suas fábulas respeitavam diversas caraterísticas
dos contos tradicionais, como a brevidade, a ligeireza narrativa, a
carnavalização ou sátira popular subjacente, o fecho da história por uma lição
moralizante.
O seu livro interessava, portanto, para estudar latim, ou seria lido
por causa mesmo do imaginário narrativo que traduziu, no qual é recorrente a
agilidade mental do fraco ou débil face ao forte ou poderoso, bem como a
crítica aos abusos dos poderosos sobre os humildes. Além disso usava de uma
linguagem muito simples, direta, clara e concisa, sem floreados meramente
retóricos e, por tal motivo também, se tornava cativante em sociedades ‘práticas’,
onde se começava a notar uma aceleração dos negócios e dos prazos. O leitor
instruído no fabulário moralizante e rico de Angola decerto que apreciava o
resultado, encontrando similaridades locais e modelo para, mais tarde, vir a
transcrever o nosso fabulário, como realmente aconteceu com Joaquim Dias
Cordeiro da Mata. Recorde-se que o nosso poeta, não só recolheu tradições
populares, ainda verteu fábulas em versos, de que é exemplo «O Mosquito» (Matta,
2001 pp. 124-126),
composto em 1882 e que não reporta nenhuma das duas fábulas então conhecidas da
tradição europeia, nem «O leão e o mosquito», nem «O mosquito e o touro» –
ambas de Esopo.
A recorrência do nome e da obra de Fedro nos anúncios pernambucanos é razoável, indo de 1832 a 1845. Era também estudado nas aulas de latim do professor José Valentim da Silva, no Recife. Acompanha-se pelas fábulas de Esopo que estavam, elas próprias, representadas no mercado livreiro pernambucano de então, embora com uma escassa presença – espraiada entre 1837 e 1842 (quatro referências). Em Benguela surgiram duas edições de Fedro, num espólio de 1899 (do naturalista Anchieta). Para Luanda foi expedida uma outra edição, em 1852, que, no entanto, não terá sido recebida pelos destinatários. Mas a divulgação das Fábulas de Fedro (e de Esopo) era tão grande que o mais provável é que, também em Angola, circulassem mesmo para além do restrito círculo de amigos leitores do naturalista José de Anchieta em Caconda (comerciantes, agricultores e militares). Outra via para a chegada das Fábulas de Fedro no século XIX podia ser a de qualquer outra remessa de livros dos antigos conventos que, desde 1834, se determinara irem para seminários ou reforçar bibliotecas em várias capitais de província ou de colónias, incluindo Angola e Cabo Verde. Várias delas terão mesmo entrado na oratura urbana… Recorde-se, aliás, que José de Anchieta não tinha um círculo reduzido de contactos em Angola, nem eles se limitavam a Caconda. No Humbe (interior da província do Namibe, já próximo da fronteira com a Namíbia), teve um filho homónimo, que apadrinhou, e, entre Humbe e os Gambos, teve uma filha, sendo os dois os seus únicos herdeiros. De resto, em Caconda, era conhecido pelo menos desde 1876, sendo casado, embora os filhos não fossem da mulher, que morrera entretanto. Para além do extremo sul de Angola, também viajara e se demorara, em pesquisa, mais para o centro e norte da colónia. Isso o obrigava a um contacto importante com habitantes locais que lhe podiam facilitar o acesso e o conhecimento de uma flora que, à partida, era nova para ele. Foi, por isso e pelo convívio de que gostava, em torno de alguma bebida e um bom petisco, intermediário cultural a considerar junto das oraturas rurais.
Passando à prosa, depois de considerar Catão, Varrão e respetivas
edições, António Pereira guarda espaço mais largo e substancial para Cícero (Marco Túlio Cícero, 106AC –
43AC), que morreu no mesmo ano em que Ovídio nasceu. Cícero é muito
frequentemente citado nas fontes, incluindo na biblioteca de Manuel Patrício
Correia de Castro (Pacheco, 2000 p. 29), na biblioteca do
Governo Provincial de Luanda, no Recife, no Rio de Janeiro e fazendo parte,
ainda, dos livros enviados a pedido do Bispo de Angola em 1852. Em Maia
Ferreira a sua oratória considera-se poderosa: “Se eu fora qual Cícero forte
clamara” (Ferreira, 2002 p. 142). O professor José Valentim da Silva, nas aulas de latim, dava também
as “Cartas de Cícero”. Em Portugal, Cícero teve ainda em Anthero de Quental um
leitor interessado, pois havia livros seus (incluindo em latim) na biblioteca
do poeta açoriano.
António Pereira não lhe nota propriamente força, antes elogia-lhe “uma
eloquência incomparável, que docemente transporta a quem o sabe ler com
reflexão”. Em qualquer género e obra se poderia verificar esse traço do autor.
No entanto o seu estilo variava conforme as “matérias” e as “pessoas”, o que
também é de louvar. Nas cartas familiares predominaria o estilo “simples”; as
“epístolas ad Atticum são mais
ornadas, e verdadeiramente Áticas pela suavidade, e elegância”. Nos diálogos
filosóficos “predomina o estilo medíocre”
e “nas Orações o estilo sublime”.
Ora, eram precisamente as Orações o que mais aparecia nas nossas
fontes. As melhores Orações seriam as
pró Archia Poeta [onde critica muitos
contemporâneos, como Catulo, e aborda o problema político das identidades e dos
estrangeiros aclimatados], Pro Ligario, pró Marcello, pró lege Manilia, a
segunda in Catilinam, a Philippica segunda, e sobre todas a oração pro Milone.
O exemplar de Cícero da biblioteca
do Governo Provincial de Luanda é o das Orationes
de 1760, ao qual devemos juntar o que veio em 1852, e no Recife se venderam as Orações (em latim ou em português), pelo
menos nos anos de 1837, 1840 e 1842.
Claro que a sua presença vinha de antes. Em 1796 entrava no Brasil com
outras obras de Retórica e de Arte Poética. Mas a retórica e a oratória dos
advogados do século romântico ficaram pejadas de Cícero. A corajosa defesa do
liberto Amerino (sua estreia judicial), a disputa no caso de Verres (em que vence o canónico Hortênsio), a
carreira política em prol do partido senatorial, a integridade com que parece
ter tomado as mais importantes decisões da vida, entrelaçadas com os seus
livros (como o De consolatione), a prolongada
e híbrida formação filosófica (feita na Grécia, no Oriente), o conhecimento de
países e culturas variados, faziam dele um escritor contemporâneo e completo. O
seu “estilo vigoroso e patético, brilhante, exato, ágil e com ampla variedade
de tons” fascinaria qualquer estudante de Direito na altura, como fascinou
Villemain e Hegel. O facto de muitos destes livros serem impostos pelos mestres
aos alunos não os desvaloriza, portanto, no que diz respeito à sua importância
na formação dos mesmos. Eles tinham de os conhecer e, ao estudá-los, por
minimamente que fosse, apercebiam-se do estilo vibrante de Marco Túlio Cícero.
Tanto mais que, no dizer do cónego Fernandes Pinheiro, “como advogado não
conheceu […] rival” (Pinheiro, 1872[?] p. 64). Foi considerado,
repetidamente, o Demóstenes romano.
O estilo de Júlio César (c.100AC
– 44AC), o inimigo de Cícero e da liberdade republicana, era naturalmente menos
elevado, embora Cícero nele destacasse o muito exercício que praticou até
atingir a abundância “em expressões selectas”, o “timbre da voz” rigorosamente
apropriado, “a dignidade do gesto”, para além da “pureza” com que “falava a
língua latina” (Pinheiro, 1872[?] p. 63). Disciplinado e
persistente, conseguiu atingir um estilo puro, simples e elegante. Não podia
chegar a ser sublime, por lhe faltar a “magestade de Ideias, que constitui o
estilo” e que os românticos também muitos apreciavam, por exemplo Alexandre
Herculano. O atrativo de César, ao longo do Romantismo, passava talvez também pelos
paralelos que se estabeleciam (com Napoleão, com o fim das liberdades), não só pelo
estilo simples. Encontramo-lo (por via dos Comentários)
no espólio do liberal Manuel Patrício Correia de Castro, do qual constavam
diversas obras de eloquência (Pacheco, 2000). Todas as restantes
referências são relativas ao Recife, havendo-as igualmente relativas ao Rio de
Janeiro, como também era autor estudado nas aulas de Latim do Colégio D. Pedro
II, tanto quanto Salústio, referido em seguida.
Salústio (Gaius Sallustius Crispus;
87AC? 86AC? – 35AC), homem do povo, aparenta-se de alguma forma com César (seu
grande apoio político e seu modelo). Pertencendo à época de César (tinha menos 13
ou 14 anos que ele, que o nomeou Procônsul e Governador da Líbia), não era
propriamente um clássico, ou melhor, dentro dos clássicos foi original e
inovador – além de narrador sugestivo.
Ele destaca-se, entre os romanos, por “dizer muito em pouco” – sem
dúvida uma qualidade cada vez mais necessária, desde (pelo menos) esse tempo. A
frase de Salústio é curta, incisiva e por vezes (poucas) tão concisa que se
torna obscura. A acusação a fazer-lhe, nesse aspeto, é a mesma que Dionísio de
Halicarnasso dirigiu a Tucídides – pelos vistos, também nisso um antecessor de
Salústio. O próprio autor assume o estilo quando escreve, ainda no início da Conjuração catilinária: “escreverei pois
a conjuração de Catilina com a maior concisão e verdade” (Sallustio,
1850 p. 11).
O estilo conciso pede uma adjetivação eficaz. Salústio resolve-a
definindo com uma só palavra o substantivo (ou mesmo dois substantivos), como
se nota por exemplo no retrato de Catilina – ponto comum (e não único) da sua
arte retórica e literária com a de Tucídides.
Segundo ele próprio, o tom das palavras devia estar à altura dos
acontecimentos e esta adequação realmente verifica-se em muitas passagens.
Nisso terá superado o antigo historiador grego, tornando-se um exemplo de
estilo enxuto, vivo, mas não pobre.
Destes e de outros fatores adveio a frase fluida, escorrida, que se lê
com agrado e até leveza, ao mesmo tempo que opina e instrui. Procura, também, fechar
os assuntos com provérbios (diz, por exemplo, que a paz constrói pequenas
coisas e a guerra destrói as grandes). O que me lembra, tudo isto, uma parte
significativa da obra de Joaquim António de Carvalho e Menezes – ainda que
menos estilista e mais concreto este nosso historiador, afetado pelas intrigas
da época e o seu envolvimento nelas, ainda que fosse honesto. O fecho com
provérbios acorda-se também aos contos tradicionais – e não só angolanos, mas
de quase todos os quadrantes, incluindo os do fabulário grecolatino já
referido atrás.
Salústio estava também preocupado com a atenção do leitor; ele concita-a
por efeitos de surpresa, como se vê pela frase a que aludi, em que não
esperamos que fale de grandes coisas depois de dizer que só se construíam
pequenas. O efeito de surpresa faz parte da procura mais geral de provocar e
atrair o leitor. Um dos recursos usados é mais artístico do que histórico: “um
choque na fantasia”, acrescentando episódios duvidosos assinados por boatos,
rumores, etc., mas na verdade manipulados pelo autor com esse fito.
A arquitetura das suas obras deve ter sido cautelosamente planeada,
embora com isso não tenha afetado a fluência da leitura. Um “especial sentido
do ritmo” (incluindo ao nível macro-textual), a “concisão narrativa”, uma
linguagem por vezes arcaizante e o gosto pela dissimetria (uso de quiasmos,
zeugmas, lítotes, etc.) caraterizariam também o seu estilo. Do especial sentido
do ritmo fariam parte ainda as pinceladas ou “toques rápidos” das suas
descrições, sobretudo quando narrava movimentos e reações de uma multidão,
intercalados com as análises psicológicas.
Qualidades afins seriam, precisamente, a
“viveza, e naturalidade incomparável” da caraterização das pessoas e dos
costumes, caraterísticas atrativas para os românticos e os leitores em geral.
Essa “viveza” alternava com momentos solenes,
obedecendo a um sentido de ritmo também apurado, com unidades menores
constrastando as maiores e com uma linguagem natural contrastando a solene,
usada geralmente nos discursos dos chefes e na repreensão dos vícios. António
Pereira sentencia: “as Orações, que em nome de Mário se leem no livro de Bello Jugurthino, dão perfeita ideia
do estilo austero, com que se devem repreender os vícios da Nobreza” – vícios
para cuja repreensão concorriam na época e, sobretudo, mais tarde, ideias
republicanas. Se, por vezes, a gravidade, elevação e requinte dos discursos às
tropas acabam diminuindo o efeito de verossimilhança, a maior parte do tempo a
sua crónica decorre como se alguém nos estivesse contando uma estória numa roda
de amigos, conto no qual as falas graves dos grandes chefes também cabem.
Despido, portanto, das pompas clássicas, cumpria um dos objetivos perseguidos
já desde o Romantismo (acentuados com o Modernismo depois), que era o de usar
na Literatura e na História uma linguagem natural, exceto em momentos muito
precisos. Assegurava melhor, assim, a ligação do texto com o leitor.
A justificação que dá para narrar a guerra contra os númidas é
ilustrativa do cuidado estético, da preocupação com a receção e parece
respeitar uma exigência de Dionísio de Halicarnasso: em primeiro lugar porque
foi uma grande guerra (melhor: “grande, atroz e de vária fortuna”); em segundo
lugar porque esteve indecisa (o peso do fator surpresa atinge, portanto, a
própria escolha do tema); finalmente, por outra característica sua que o liga
ao século XIX: porque pela primeira vez, nessa guerra, a plebe se opôs ao poder
dos nobres (“já porque então se principiou a obstar à soberba dos nobres”).
Deve ter sido, por isso também, autor lido com atenção em pleno século liberal
e também socialista, quer em Angola quer no Brasil. A paixão política dos seus
escritos (apesar da objetividade histórica) seria outro fator de atração para o
leitor romântico típico.
Dizem dele que foi Salústio o primeiro do seu tempo a “tratar a
história como [...] algo mais que uma simples crónica de acontecimentos”. Isto
porque procurava explicar os acontecimentos pelas causas que lhes atribuía e
que, muitas vezes, eram mais ditadas pela sua perspetiva política do que por
uma investigação como hoje a concebemos. Apesar de ser, entre romanos, o
primeiro a fazê-lo, entroncava assim com Políbio, nascido em Megalópolis, na
Arcádia, cerca de 200 a 204 AC e, segundo Viale, “o criador do pragmatismo didático, isto é, do modo de
escrever a história que, expondo as causas, ocasiões, circunstâncias e
consequências dos acontecimentos, subministra ao leitor uma importante
instrução política e militar”. Políbio teria, precisamente, procurado escrever
uma História que explicasse aos gregos (e a si próprio) a incrível ascensão do
poder romano, que tão bem o acolheu quando para ali o exilaram as autoridades
romanas que ocupavam a Grécia.
Salústio se distinguia por estudar o caráter dos povos envolvidos, a
psicologia coletiva, ao mesmo tempo em que inaugurava a análise psicológica
individual e “o culto da personalidade de exceção”, ambos (análise e culto)
concorrendo para explicar as atitudes e decisões individuais que provocaram as
duas grandes crises que narra. Retratos como o de Catilina e de Semprónia
demonstram a sua habilidade na caraterização sugestiva das personagens,
articulada ao ambiente moral da cidade, abordagens que a historiografia
romântica não desdenhou.
A análise que faz dos acontecimentos, a explicação que dá para eles,
eram também de caráter económico, social, ou diretamente político. Tucídides, ainda
neste aspeto, seria um antecessor, sem pôr em causa que Salústio fosse um
historiador romano genuíno. Segundo o seu pensamento, o motor da História estava
na fama, que se devia alcançar pela virtude (curiosamente, não a cultivou mesmo
nada antes de se retirar e começar a escrever). Daí que o historiador tivesse,
necessariamente, um papel pedagógico.
As obras que de Salústio nos ficaram foram a História da Conjuração de Catilina e a História da Guerra contra Jugurtha, para a qual recolheu muitos
elementos enquanto governador da Líbia. Em qualquer delas o propósito
pedagógico se nota. Da Guerra catilinária
(como traduziu Barata Feyo), logo no início podemos extrair uma passagem ilustrativa:
“[na guerra] primeiro te é preciso conselho, e logo pronta execução. Assim cada
uma destas cousas, insuficiente por si, carece do auxílio da outra” (Sallustio,
1850).
Apesar dos episódios fantasiosos, apontados prudentemente aos rumores,
esse intuito pedagógico domina. Faz parte dele a isenção com que,
sublinhando-a, trata mesmo das personagens que detestou na vida. Salústio foi
inimigo político de Cícero, talvez por ser aliado e amigo de César. Entretanto
procurou fazer dele (como dos outros) um retrato justo, reconhecendo-lhe as
qualidades e juntando-as com defeitos por todos aceites como tais. Impressiona
a isenção com que retrata cada personagem, sublinhando ao mesmo tempo a sua
discordância, o seu afastamento e não deixando que isso o impedisse de
reconhecer as virtudes e vantagens dos adversários.
Tudo isto são traços conhecidos pela historiografia posterior. Desde
sempre o traço pedagógico. Por outro lado e apesar deste, a introdução de
episódios fantasiosos em nome do rumor, que no Barroco se praticou largamente.
A linguagem ao mesmo tempo viva e arcaizante encontrava paralelos no Romantismo,
com seus castelos e damas de nomes medievais e ao mesmo tempo a busca de uma atualidade
sem par. Ainda o culto dos quiasmos, zeugmas e lítotes estava bem articulado
com o Romantismo. Pelo que, nestes aspetos, a sua presença tornava-se natural
ou, quem sabe, germinal.
Durante a vida, servindo César e oriundo de famílias pobres, Salústio
combateu politicamente a nobreza romana (que dominava o Senado), de certa forma
chefiada por Cícero (que também a criticava por motivos que se prendem com a
moral pública). Isso torná-lo-ia, simultaneamente, simpático e antipático aos
olhos dos românticos. Sendo a maioria dos românticos liberais, não podiam
simpatizar com a defesa de um ditador (e, no entanto… a muitos agradou-lhes
Bolívar na América e agradaram-lhes outros ditadores, homens providenciais e
quejandos); mas vários deles se reveriam no combate aos privilégios da nobreza
em nome do povo, principalmente em colónias como Angola, onde as nobrezas
locais e a portuguesa pouca presença marcavam nas atividades económicas das cidades, ocupadas por negociantes oriundos do povo, muitos ex-degredados (e nem sempre por
motivos políticos), aventureiros, rebeldes - e seus filhos. Algumas das propostas políticas
(que na vida não praticou, dedicando-se ao luxo e à rapina que tanto criticou
nos contemporâneos) calariam fundo na época em estudo, por exemplo a defesa do
voto secreto no Senado, a proposta de cortar o poder da oligarquia e estender o
direito de cidadania.
Salústio é, precisamente, um dos mais anunciados nomes nas páginas do Diário de Pernambuco no período
estudado, em particular entre 1837 e 1842. O interesse académico financiou
certamente a edição pernambucana da sua Opera
em Latim (Sallustius, 1838). Infelizmente não deparei com nenhuma
referência ao seu nome nas fontes angolanas, mas não duvido que tenha passado
por aqui mesmo antes do nosso seminário-liceu.
Lia-se em latim, “ao pé da letra” ou mais longe dela, havendo várias
edições que podem ter circulado no eixo Recife – Luanda, ou mais genericamente
Angola – Brasil. O professor José Valentim da Silva, no ano de 1845, dava a
obra de Salústio na aula pernambucana de latim e era provável que, nas que
tivémos desde o fim do século XVIII, acontesse o mesmo. Em português, a trad.
de Miguel le Bourdiec, publicada em 1820 em Lisboa, e a de Barata Feio (ou Feyo),
publicada em Paris em 1825 (foi sendo reeditada ao longo do século), são as
duas cronologicamente mais próximas. Em latim há as de 1818, de Lisboa, de
1820, de Londres, de 1823, de Paris, de 1825, de Londres novamente, de 1826, de
Edimburgo, de 1834 (de J. Dymock, com notas e ilustrada), havendo ainda em 1840
uma edição ‘clássica’ de C. H. Weise. Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
há uma edição latina de 1491 mas, não conhecendo a história do exemplar, não
sei se ela terá circulado por ali na época em estudo. Provavelmente veio nos
baús de D. João VI e por ali foi ficando, contribuindo a seu modo para a
independência do Brasil…
Em Tito Lívio (59AC – 17DC),
outra figura de topo na lista dos clássicos mais vendidos e procurados nesse
tempo, realça A. Pereira o grande historiador, “que à majestade no dizer
ajuntou uma elegância, e facúndia incomparável” – facúndia que, mais para o fim
do século XIX, no Brasil se chamaria “imaginoso estilo”, “com vivas cores” (Pinheiro,
1872[?] pp. 11, 69). O
“imaginoso estilo” emparceirava com uma perspetiva partidária, que ensombrou
certamente a isenção que hoje exigimos aos historiadores – e que eles muitas
vezes contornam. Em compensação, os discursos que punha na boca das personagens
– naturalmente inventados por ele – eram, por vezes, autênticas peças
literárias que davam à História de Roma (ou
Romana), como aos intermináveis Anaes, acentuado cariz dramático –
certamente apreciado pelos historiadores românticos, ao ponto de alguns o
imitarem nisso.
Tito Lívio estudou retórica e filosofia, tendo redigido textos
filosóficos até hoje desconhecidos. Esse fundo que o exercício da filosofia lhe
trouxera cimentou com uma visão profunda e linhas de orientação coerentes a
“majestade no dizer”.
A independência face ao protetor Otávio Augusto criou-lhe o
distanciamento necessário para expressar mais livremente as suas ideias – o que
o distingue dos três grandes poetas que mais viveram à sombra do imperador:
Virgílio, Horácio e Ovídio. A monumental História
de Roma (assim conhecida, mas na verdade Ad urbi condita libri) é, sem dúvida, a primeira das suas obras.
Exemplares das suas obras encontram-se ainda em Luanda (um deles
publicado em Coimbra em 1640 e vindo para Angola em 1852 e o outro de 1799,
impressão da Tipografia Académica feita sobre a edição de Arn. Drakenborch
Amstelaad, 1738). Os seus títulos eram largamente comerciados no Recife dos
anos 30 e 40 do século XIX e também no Rio de Janeiro. Quanto ao Recife, não
sabemos, porque os anúncios são lacunares, que obras, volumes, edições, etc., mas
há muitas referências nas listas de livros do Diário de Pernambuco. O professor José Valentim da Silva, no mesmo
Recife, dava Tito Lívio nas suas aulas – o que me parece comum para a época. O
moralismo e o patriotismo de Tito Lívio, junto com a sua religiosidade e o
sentido do Fatum, podiam encontrar
eco no romantismo lusófono.
Cornélio Nepotes (Cornélio Nepos ou
Cornelio Nepote) fez a biografia de várias figuras decisivas das antiguidades
clássicas grega e latina e foi o primeiro volume dessas biografias que veio até
nós. Ele viveu numa época na qual esse género, associado ou não à sátira e às
anedotas, se tornava popular e parece ter escrito com, mais uma vez, a intenção
de moralizar a vida pública romana. Com a preocupação, talvez, de alimentar a
leitura rápida e, assim, atingir maior número de pessoas, as suas biografias
eram breves e usavam linguagem muito simples. Varrão (Marcus Terentius Varro,
116AC – 27AC), pouco mais velho, terá composto muitas biografias breves de
gregos e romanos famosos, acompanhando cada uma de um epigrama, geralmente com
sentido satírico. Cornélio Nepote não ficou muito atrás, alcançando
quatrocentas biografias em, pelo menos, dezasseis livros. Fez biografias de
Miltíades, Temístocles, Aristides, Pausânias, Cimon (das Guerras Pérsicas),
Lisandro, Alcibíades (Guerra do Peloponeso), Epaminondas, Pelópidas (hegemonia
de Tebas); Amílcar Barca, Aníbal (Guerras Púnicas), M. Cato (“ex libro Cornelii
Nepotis de latinis historicis”). As de Cato e de Ático são as
mais famosas, esta última um pouco mais longa do que a primeira. Diz António
Pereira ter pena de “que nos não ficasse deste polido Escritor senão” estas
biografias. Ninguém nele acha “que repreender, tão pura, fácil, e elegante é a
sua dicção”. Uma opinião hoje polémica, pois parece ter apenas utilizado uma
linguagem simples sem qualquer rasgo estilístico notável. O facto, porém, é que
foi muito popular entre professores e estudantes de Recife-Olinda na primeira
metade do século XIX. Por isso e pela espécie literária cultivada, à qual o Romantismo
viria trazer uma dimensão nunca antes vista.
Em Luanda e Benguela circulou a meio do século XIX e há menção também a
obra sua no espólio do naturalista José de Anchieta (1899).
A história romana de Eutrópio
(Breviarivm Historiae Romanae) já do
que António Pereira chamava a “idade férrea” – lembre-se que ele morreu em 399
– não tem presença muito importante. Dele encontrei, no Diário de Pernambuco, oito referências (entre 1837 e 1842) e, numa
delas, vendia-se ou trocava-se “por novelas”. Vendia-se e comprava-se sem
menção à língua da edição, ou em latim. O seu nome surgia também nos anúncios do Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro. A
edição mais próxima que conheço, em latim, do Breviarium historiae romanae, é a de 1824 (Lisboa, Tip.ª Régia). Há
depois um Resumo em português, de 129
páginas, feito por João Félix Pereira. Talvez algum exemplar desse Resumo da história romana ajudasse os
alunos da época e circulasse, portanto, ali. Outra hipótese, para exemplares em
latim, é a da edição de C. H. Weise, de 1828. Não tenho notícia da passagem da
obra dele por Angola.
A obra é, de facto, sucinta. Quanto ao seu estilo, em 1898 o Harpers dictionary of classical antiquities classificava-o
de “sem elegância nem ornamento”, enfim, próprio de um soldado raso. Através de
capítulos ou parágrafos em geral curtos, ele narra os acontecimentos
limitando-se a anotar a sucessão de factos, quase sempre sem opinar. Veja-se
este exemplo: “Manlius, sendo
portanto bem sucedido, trouxe Hasdrúbal e seus outros prisioneiros a Roma. No
interim, Filipe foi derrotado também por Laevinus na Macedonia, e Hasdrúbal e
Mago, um terceiro irmão de Hannibal, pelo Cipiões em Hespanha”. Parece um relatório ou resumo de campanha.
O interesse do livro reside apenas em factos históricos que só ele reporta – o
que não lhe terá trazido consequências
literárias, ainda menos à pequena elite angolense do século XIX…
A decadência
Um aspeto significativo é o das causas que António Pereira dava para a
decadência da literatura, cultura e civilização latinas. Há uma causa política
(“maus imperadores”), outra moral (“depravação dos costumes”), ambas levando a
“afrouxar no estudo da língua, e a corromper-se sensivelmente a Eloquência”. Os
sinais dessa corrupção e de tal afrouxamento são significativos aqui: “novos
vocábulos, novas frases, novos modos de pensar, novo gosto”. É possível que A.
Pereira estivesse indiretamente a dar indicações aos seus contemporâneos, mas o
que nos importa é o facto de o seu modelo não aconselhar a mudança de léxico,
de pensamento e de gosto. Os lógicos que acreditam na eternidade parecem querer
sempre arranjar maneira de eternizar tudo, como vemos na sucessão de gerações que
repetidamente reagem mal às mais novas. Influências como esta, reforçadas pelo
ensino religioso e a ascendência que tinham os padres sobre o meio local
(angolano), terão contribuído para que os autores fossem, até muito tarde,
reticentes na introdução de africanismos, ou de neologismos de qualquer outra
proveniência, bem como de novidades literárias. Os exemplos brasileiros, pelos
vistos, não eram fortes o suficiente para mudar as coisas – e, de resto, no
Brasil também, como em Portugal, a mudança foi lenta, embora menos lenta que
entre nós.
Quando, no diálogo, o eventual discípulo coloca ao mestre eventual a
questão de saber porque a introdução de vocábulos se tornara sinal de
decadência, este responde-lhe argumentando que, no século de Augusto, estavam
os estudos em maior perfeição e que os sucessores eles próprios iam lá buscar
os seus mestres. Por isso, mesmo que introduzissem palavras, os escritores do
século de Augusto seriam mais corretos ao fazê-lo e mais próximos da língua
latina na sua essência. Dessa maneira é que, para a mentalidade que
representava o canónico doutor, a tradição integraria a mudança…
Os três principais defeitos da decadência, da corrupção, remetem-nos
para o Barroco, antecedente, fazendo pensar, mais uma vez, no uso da tradição
latina para transmitir recados aos contemporâneos e ao passado imediato,
entretanto superado. Os defeitos consistiam no “abuso das agudezas, e
antíteses”, na “demasiada frequência das sentenças” e “na afetada pompa do
estilo Declamatório”.
Em meu modesto parecer, com o Romantismo o que mudou foi mais a quantidade e a
nuance nas definições do que os
defeitos. Também lá notamos, de quando em quando, uma afetada pompa
declamatória (por exemplo em poemas de Castilho e de Mendes Leal, no poema «Ao
corpo académico», de Garrett, em Gonçalves de Magalhães e, por vezes ainda, em
Gonçalves Dias). Já não é a pompa dos barrocos, é a dos sentimentos
exacerbados, mas é de qualquer modo uma figura hiperbólica a segurar o discurso
no vazio. Também lá encontramos a recorrente procura de sentenças, de
provérbios ou candidatos a provérbios metidos nos poemas, por vezes em posição
de ‘chave de ouro’. E, se as agudezas diminuem, disparam as batidas cardíacas
mais agudas, substituindo os ditos de perspicácia inútil pela descoberta dos
paradoxos, antíteses e subtilezas das emoções simuladas até à banalização. O
paradigma do novo paradoxo e da agudeza afetiva sintetizou-se no popular verso
de Garrett: “não te amo, não, quero-te”. O arguto leitor, especializado em
sentimentos amorosos, descodificará a frase, aliás pouco eficaz esteticamente,
valendo mesmo pela fina distinção entre amor e desejo (como se o amor não
movesse o desejo) do que pela expressão, disfémica aliás, e descendente.
Nos escritores angolanos vamos encontrar frequentes vezes agudezas
deste e de outros tipos. Também lá veremos a pompa declamatória e a sentença
exibida com destaque forçado, porque não lhe é dado o destaque pela força da
expressão, mas pela colocação na frase tão somente. Ou seja: o que dizia
António Pereira podia ser lido com um sentido para trás (crítica ao Barroco) e,
mais tarde, com outro para a frente, quando o seu livro já era lido por estudantes
entusiasmados com notícias e leituras do Romantismo. A compreensão que os
românticos lusógrafos obtinham destas obras, nas escolas e universidades, moderava
certamente os ímpetos que degeneravam em pompas do coração e subtilezas ou
paradoxos emocionais e acidentais. Infelizmente, o efeito moderador não foi
bastante.
Porém, no lixo, às vezes, brilha um diamante para esperança da
humanidade caída. Assim é que, dos autores das épocas corrompidas, degeneradas,
elogiava Pereira Quintiliano, Tácito, Petrónio e os dois Plínios. De todos eles
(e por diversas razões) dão notícias as fontes.
Quintiliano (35 – 96) foi, sem dúvida, o mais cotado na época estudada. O que mais
se procurava, certamente por causa das aulas, ou pela profissão dos advogados,
eram as Instituições oratórias,
“padrões do seu grande juízo, e da sua Crítica”, segundo a sentença de António
Pereira. Naturalmente que o prestígio vinha de trás e sabemos que, no Convento
de S. Francisco, em Olinda, estava disponível (a partir de 1833) para os alunos
do curso jurídico, deixando porém de ser referência obrigatória ou tutelar, no
Rio, a partir de 1830, ou de 1835, juntamente com Aristóteles e Cícero. Trocado
o trio, no município da Corte, em 21.1.1835,
por Chateaubriand, Massillon e Hugh Blair...
Encontrei somente uma referência às Instituições
oratórias em Luanda, na lista dos livros enviados, em 1852, a pedido do
Bispo de Angola. Tratava-se da edição lisboeta de 1760, um in 8.º, tendo vindo oito exemplares da obra. Todas as outras
menções são do Recife e do Rio de Janeiro.
No fim do século XVIII surgiram vários livros
que facilitavam aos alunos o ‘método’ de Quintiliano. Embora não se vejam, pelo
menos com esses títulos, entre as nossas fontes, podemos realçar a edição de
Rollin, com várias versões ou traduções, destinada às escolas; o Ensaio de retórica, conforme o método e
doutrina de Quintiliano e as reflexões dos autores mais célebres, de Fr.
Sebastião de S.to António (António, 1779);
a tradução dos Preceitos de retórica
tirados de Aristoteles, Cícero e Quintiliano, de Jean Baptiste Louis
Crevier (Crevier, 1786) – título que denota
a posição do autor, entre os dois mestres maiores; Instituições oratórias de Marco Fabio Quintiliano: escolhidas,
traduzidas e ilustradas por notas críticas por Jerónimo Soares Barbosa (Quintiliano,
1788-1790);
Os três livros das instituições retóricas
de M. Fab. Quintiliano acomodadas aos que se aplicam ao estudo da eloquência,
versão facilitada por Pedro José da Fonseca (1737-1816) e traduzida por João
Rozado de Villa Lobos e Vasconcelos (Fonseca, 1794) – tradutor que publicou também uma Arte retórica para o uso da mocidade
lusitana (Vasconcelos, 1773). Mostrando que o interesse por
Quintiliano se mantinha atualíssimo, reeditam-se, em 1836 (em Paris e em Coimbra), a antologia já
citada de Soares Barbosa, corrigida e constante no catálogo da biblioteca
Fluminense (a edição de Paris); em 1839 os Subsídios
para o estudo da retórica pelas instituições de Quintiliano, de António
Soares Barboza (1734-1801). O livro X das Instituições
tem ainda uma edição berlinense de 1863, que veio parar à Biblioteca
Nacional de Lisboa. Só citei algumas das edições do século XIX, poucas, apenas
a título ilustrativo, para mostrar que a sua obra continuou a ser usada e usada
para fins escolares também.
Aspetos
complementares (e sobretudo pedagógicos) tornariam Quintiliano simpático aos
alunos de qualquer idade: era contrário aos castigos físicos e defendia que
houvesse intervalos entre aulas, por achar que o descanso permitia maior
rendimento escolar a seguir. Ora a pedagogia veio caminhando, mesmo até hoje,
neste sentido precisamente.
Outro
aspeto no qual a retórica de Quintiliano terá tido peso ao longo do século
prende-se com a sua consciência da força do afeto. Isso não o leva a defender a
sugestão de emoções em substituição da clareza de razões, mas a reforçar a
impressão do raciocínio na mente do recetor suscitando-lhe sentimentos
inseparáveis das razões. Pelo menos para a Oratória, o conselho seria
utilíssimo e, de forma geral, seguido, pelo menos até à chegada dos oradores
políticos populistas e extremistas do final do século e, principalmente, já do
século seguinte. Mas também a lírica, passada que foi a fase das exaltações e
dos exageros sentimentais, retomou o caminho de equilíbrio, principalmente com
os poetas parnasianos como Pedro Félix Machado, mas ainda mesmo com epígonos do
Ultrarromantismo.
Também Tácito (Públio
Cornélio Tácito, 55, ou 56 – c120, ou 117), historiador, orador e político
romano, aparece, de quando em quando, nas fontes, geralmente por causa da História romana ou dos Anaes. Não encontrei referência aos seus
Moribus germanorum, nem à vida de Agrippa, nem a outras obras. Na
biblioteca do Convento de S. Francisco, em Olinda, vem referido só pelo seu
nome. No jornal O progresso, do
Recife, é citado no número de julho de 1846, numa epígrafe. Não tive notícia da
circulação de algum exemplar seu por Angola nestes anos. Entretanto eram lidos,
nas aulas de Latim do Colégio D. Pedro II, excertos das suas obras. O português
José Liberato Freire de Carvalho traduziu Os
Annaes (Tácito, 1830), que ainda constavam do catálogo
Bertrand para 1846.
No entanto, para nós Tácito é importante porque é uma das três fontes
clássicas que temos sobre a vida de Messalina. «Messalina» é o título de um
soneto, escrito por Cordeiro da Mata, em que o nome dessa imperatriz, ao mesmo
tempo dissoluta e apaixonada, é chamado a simbolizar a mulher interesseira e
sensual. Falei já do soneto a propósito de Juvenal. O problema é que a imagem
dada pelo nosso poeta não corresponde exatamente à Messalina histórica, antes a
um uso comum da palavra que a alterou. Mas o retrato que Juvenal e Tácito fazem
dela, junto com Suetónio, sustenta a conotação negativa feita pelo nosso poeta:
mulher cruel e ambiciosa, que dominava o marido levando-o a executar quem
queria, e que se prostituía sob pseudónimo, com peruca loira, num lupanar de
Roma toda a noite. Juvenal, anunciado várias vezes nas páginas do Diário de Pernambuco, faz um retrato
vivo e exato dessa parte da biografia de Messalina nos versos 114 a 132 da
Sátira VI (Juvenal, 2008). É essa relação da sensualidade (mais exatamente: fascinação, no
nosso caso) com a avidez pelo dinheiro (“porque só tem afeição / ao doce tinir
da libra”) que leva Cordeiro da Mata a associar a mulher de que fala a Messalina
– qualquer delas não muito diferente da que retrata em «Linda e má: deceção de
Don Juan» (AAVV, 1889 p. 128). Podia, portanto, vir o seu retrato de
uma leitura da sátira VI de Juvenal, mas vimos que não é provável isso. Tácito
escreve sobre ela nos Anaes e, embora
a obra só me tenha aparecido nos anúncios do Recife, parece que terá sido lida
em Angola também, pelo menos a personagem de Messalina era entre nós conhecida
com os traços que dela deu o historiador romano. O ensino da Igreja terá
contribuído igualmente para esta imagem, visto que foram os cristãos quem mais
propagou a imagem devassa que sai das linhas de Tácito, Juvenal e Suetónio.
Tácito nasceu numa família rural da Gália Cisalpina ou da Gália
Narbonense (sul de França). Esta família, como era comum no seu tempo,
reclamava-se descendente das primeiras famílias de Roma. O que é facto é que
Tácito teve os estudos correspondentes a um membro da elite. Foi,
provavelmente, discípulo de Quintiliano e, já antes de se afirmar como grande
historiador, era um orador de sucesso. Também casou com a filha de Gnaeus Julius
Agricola, o que o ajudou mais ainda a subir nas hierarquias romanas. Constituiu
um dos modelos da época e, séculos depois, da passagem da segunda metade do
século XVIII para a primeira do seguinte. Os seus Anais são considerados um clássico da reflexão política. A
narração, tanto quanto possível objetiva ou razoável, não o impedia de fazer a
crítica dos acontecimentos, que tendia ao estudo dos carateres, tanto quanto
dos movimentos psicológicos e morais que acompanhavam ou precediam as ações e
as seguiam. Por sinal, um dos tópicos mais frequentes da historiografia (mesmo
de narrativas literárias) do romantismo português resulta da incidência sobre
os “carateres” (personagens) e os “movimentos psicológicos e morais”.
Justamente é este, em meu entender, um dos principais atrativos da
historiografia de Alexandre Herculano, um dos menos imprecisos historiadores
românticos. Transformado pela habitual (porque eficaz) habilidade política em
‘reserva moral’ do seu país, eventualmente da lusofonia, havia uma razão
intrínseca para isso acontecer. A razão prendia-se com o rigor da investigação
e o rigor moral posto na sua vida pública. Mas mais: ao historiar os
acontecimentos ele pretendia compreender os motivos individuais e coletivos da ação,
tanto quanto a julgava em função dos valores éticos em jogo no tempo,
interseccionados com os valores contemporâneos.
Neste sentido era um Tácito do romantismo português. Para ambos a História era,
além de uma ciência, uma arte e uma aprendizagem, a mestra da vida na expressão
de Cícero. A sua influência, no comércio lusófono de livros, detinha uma parceria
privilegiada com a circulação de Tácito.
Do mesmo tempo temos na nossa bibliografia Suetónio (c70-c.150 (AAVV, 2009)),
com a sua História dos imperadores de
Roma de Júlio César a Domiciano. Gaius Suetonius Tranquillus era um modelo
de historiador, um discípulo de Tácito, filho de uma família equestre e amigo
de Plínio o Jovem (que também foi aluno de Tácito). Usava um tipo de discurso
que podemos chamar de objetivo, auscultando várias fontes e escrevendo
incisivamente, mais ainda que o seu mestre. A marcante preocupação testemunhal
na história das culturas angolanas, não estranharia a História de Suetónio –
mas não sei se chegou a lê-la. A imagem de Messalina foi também tratada
negativamente por Suetónio, como já disse atrás.
Para mais detalhes consultar as duas secções deste capítulo:
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