Angola - Brasil: figuras e livros
As figuras da história literária angolana que mais próximas estiveram
do Recife e dos mercados brasileiros, por coincidência, foram as duas únicas
importantes da poesia lírica na primeira metade do século, os nossos dois
primeiros românticos: o comerciante reinol Arsénio de Carpo (1792-1869) e o angolense
migrante José da Silva Maia Ferreira (1827-1867) – ordenados pela data de
nascimento.
A biografia de Arsénio de Carpo vem sendo estudada hoje e comentada com
mais rigor. Salientem-se os trabalhos do historiador angolano Carlos Pacheco (Pacheco, 1992-1994)
e de José Pedro Marques (Marques, 2001) ,
bem como a investigação (centrada numa época posterior) de Jacopo Corrado (Corrado,
2008) , que fez uma
súmula do que sabíamos sobre a época. Para tais fontes remeto o leitor
interessado em conhecer a ligação de Arsénio de Carpo ao Recife e pormenores da
sua vida que nos interessam. Não aprofundei, por enquanto, a sua biografia
porque também é verdade que Dedo de
pygmeu não marcou decisivamente a nossa literatura, nem tinha condições
para marcar outra qualquer. O livro ficou desconhecido, ou mal conhecido, mesmo
no seu tempo e, se não ficasse, também não teria grande importância no
desempenho artístico dos nossos poetas. O foco de atração por ele exercido,
sobre um círculo restrito de pessoas, está centrado no facto de se tratar de
uma defesa autobiográfica face às acusações e condenações de que foi alvo o seu
polémico autor. Ou seja: é um foco político, social, histórico, mas nunca
literário. Desconheço até que ponto continuou a ler e a viajar com livros entre
as duas margens do Atlântico.
Viajante, nascido em Luanda, tendo negociado e vivido em Angola e
África, no Brasil, nos EUA e em Cuba, o currículo e a obra de José da Silva
Maia Ferreira, pelo contrário, tornam-no figura sedutora, incontornável e
crucial para a história literária angolana (ou angolense) e para outras
histórias também. Ele foi, quanto se saiba, o primeiro poeta angolano a
publicar um livro de versos, simultaneamente o primeiro impresso em Angola.
Uma das conclusões que nos traz a bibliografia estudada neste livro é a
de que a sua lírica não estava esteticamente ultrapassada, se pensarmos nos
circuitos de leitura que o autor podia ter frequentado e que são comentados em
boa parte aqui, tanto quanto se o compararmos com vários outros poetas da sua
geração criados ou embebidos no mesmo (ou muito idêntico) berço bibliográfico –
por exemplo Bernardo Guimarães (1825-1884) e os seus Cantos da solidão, inicialmente publicados em São Paulo em 1852.
Contrariamente às imagens estereotipadas que os críticos militantes foram jogando
sobre a sua figura, ele apresentava uma personalidade complexa, desconcertante
e cosmopolita, informada sobre o mundo contemporâneo, globalizada como diríamos
hoje, procurando marcar posição nesse mundo, mesmo politicamente, mesmo quando
a vida o conduziu num sentido oposto ao dos seus ideais. Lembre-se que o que
nos sobra do respetivo espólio foi guardado nos EUA pelo ramo norte-americano
da sua descendência e a sua obra lírica publicada em livro (a que marcou a
nossa literatura) realizou-se entre leituras feitas nos mercados angolano, brasileiro e português antes da sua partida para os EUA. Provavelmente não temos, nem
teremos, acesso nunca a toda a obra que escreveu nem a toda a sua
correspondência. A disponibilização de uma parte do espólio pela família, digitalizado
e consultável na Torre do Tombo em Lisboa, já nos permitiu, porém, avançar
muito face aos estudos anteriores – como veremos.
Pela complexidade psicológica de um autor que se formara entre
semiosferas e círculos de negócios em rota de divergência (embora inicialmente
muito próximas), Maia Ferreira suscitou os mais diferentes estudos, as mais
diferentes classificações identitárias e estéticas, nem todas aproveitáveis
hoje, mas todas indiciando a dificuldade em compreendê-lo e classificá-lo.
Lembro os trabalhos iniciais (para o campo literário) de Mário António e de
Gerald Moser sobre o assunto. Um interesse crescente foi alimentado, em certa
altura, pela investigação e pelas polémicas em torno da interpretação do
significado político, antropológico e literário da vida e da obra do cantor da
“África adusta”, como ele próprio se designava. Esses estudos revelam uma
personalidade e um tecido literário que se tornam pertinentes nos mais variados
contextos e são, mesmo, avivados ou clarificados por eles. No panorama que nos
configuram, percebermos que livros terá lido e de que forma os aproveitou
leva-nos a conclusões cuja consequência vai para além do estudo circunstancial
da sua lírica, ou mesmo da literatura angolana da época (embora seja este o
nosso principal objeto de estudo). As suas leituras ilustram um leque de
possibilidades que apresenta fortes intersecções com, pelo menos, o congénere
brasileiro e o português. Esse mesmo leque de leituras podia ter sido
partilhado por vários outros escritores angolanos do século XIX – ainda que,
naturalmente, com variações. A vívida permanência no solo angolano, jovem homem
com aspirações que o levaram a publicar as Espontaneidades
da minha alma, passaria certamente por referências e ‘dicas’ literárias,
portanto pela divulgação, no meio local, de poetas e escolas contemporâneos. No
mínimo as mesmas e os mesmos que assistiram ao autor quando escrevia os versos.
No máximo, aquelas a que foi tendo acesso ao longo da vida, pois manteve
correspondência com angolenses e família sua continuou a viver em Angola,
principalmente do ramo Matoso da Câmara. Podemos, portanto, explorar também
algumas hipóteses acerca da relação entre leitura e criatividade, bem como
entre criatividade e horizonte de expectativa, em Maia Ferreira e noutros
poetas angolenses, partindo de uma história bibliográfica lusófona. Tais
hipóteses levaram-me a alargar a todo o século XIX em Angola o levantamento da
bibliografia existente.
Mas vou manter-me, ainda um instante mais, concentrado no que sabemos
hoje sobre Maia Ferreira e no que podemos pensar acerca do significado da sua
obra – nosso ponto de partida. Assim ficará melhor imaginada, nesta pesquisa, a
primeira metade do século XIX. Isso me permitirá, também, mostrar-vos a
importância do estudo de mercados como o de Recife-Olinda e o do Rio de Janeiro
para se estudar a lírica escrita em Angola no século de Fontes Pereira –
naturalmente, sem menosprezar o contributo editorial e poético de portugueses
e, genericamente, europeus, aliás bem representados nos mercados livreiros do
Brasil no século XIX. Mas eu próprio já fiz o estudo comparativo da nossa
lírica publicada com a de muitos poetas portugueses contemporâneos em volume
anterior desta mesma série. Agora é a vez do Brasil.
Para conhecer em detalhe:
- O significado de Maia Ferreira para a História da Literatura Angolana
- Angola e Recife-Olinda - incluindo família de Maia Ferreira
- Notas complementares sobre as fontes utilizadas
- A circulação de livros em Recife-Olinda
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