Contemporaneidade dos poetas angolanos - poéticas em circulação
O ambiente bibliográfico e literário no qual Maia
Ferreira se tornou escritor foi parcialmente partilhado ainda por muitos dos poetas do fim do século. Pode-se, no entanto, ver que, relativamente ao nosso primeiro lírico publicado em livro, antes de haver colaborações no Almanach nos fica a notícia clara do seu ultrarromantismo.
No Reler África, lembra Mário António
que “[esta
circunstância] desde logo coloca José da Silva Maia Ferreira no quadro daquela
poesia-relação-social, daquela poesia-ramo-de-flores-para-os-amigos que tão
larga representação alcançou, por exemplo, e num plano luso-atlântico, no Almanach de lembranças”.
As afirmações de Mário António só pecam, em meu entender, por
subvalorização das datas, o que o condiciona a retratar como literariamente
“atrasados” os angolenses. O ultrarromantismo de referência tem várias fases;
Maia Ferreira, tendo publicado em 1849 ou 1850, acompanhou a primeira na publicação, pertencesse embora a uma segunda caso fosse português. O seu
equivalente em Cabo Verde era talvez D.ª Antónia Gertrudes Pusich, apesar da
forte ligação dela a Lisboa. A. G. Pusich fez sair nesses anos (1849-1850) o
seu semanário “de instrução” intitulado A
assembleia literária. Aí publicou muitos textos, em geral líricos, de
António Mendes Leal (1831-1871), irmão do famoso poeta e político José da Silva
Mendes Leal, Júnior (Lisboa, 18.10.1818 – Sintra, 22.8.1886), romântico da
segunda geração segundo Teófilo Braga, membro do Conselho do Rei, que foi
Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar (1862-1865)
– exonerado a seu pedido, com elogio do Rei, durante o governo do Duque de
Loulé[1]. Ali publicou também F. Gomes de Amorim, autor frequentado pela
pequena sociedade literária luandense do século XIX, discípulo fervoroso e
biógrafo primeiro de Almeida Garrett.
Em 1850 tornou públicas, Alexandre Herculano (um dos fundadores do romantismo
português), as suas Poesias, com uma
edição acrescentada de A harpa do crente.
Também em 1850, Bulhão Pato (dois anos mais novo que Maia Ferreira) torna
públicas em livro, pela primeira vez, as suas Poesias. Mas as obras dos poetas ultrarromânticos mais conhecidos
virão a lume a partir de 1851, ano do Tratado
de metrificação de Castilho e das Poesias
de Luís Augusto Palmeirim (também amigo de Maia Ferreira, dois anos mais velho
que ele), ocupando a sua publicação, principalmente, as décadas de 50 e 60 do
século passado. Em 1851 saem, na tipografia da Revista popular, as Poesias
de António de Serpa Pimentel (1825-1900), ultrarromântico do grupo d’ O trovador, ao qual pertencia João de
Lemos e que foi lido no Brasil pelo menos por Álvares de Azevedo. O novo trovador é fundado por Soares de
Passos (1826-1860) e outros em Coimbra nesse mesmo ano de 1851 e as Poesias do fundador saem só em 1856 (Soares de Passos: escorço biográfico, 1905) , um ano depois de
iniciada A grinalda, onde viria a
colaborar Cândido Furtado. Maria da Felicidade do Couto Browne, uma poetisa
ultrarromântica sem filiação definida entre os vários grupos, publica Soror Dolores em 1849 – em coincidência,
portanto, com Maia Ferreira. Por sua vez O
bardo, chefiado por Faustino Xavier de Novaes e interrompido pela sua ida
para o Brasil, iniciara a publicação em 1852. Isso quer dizer que o ultrarromantismo
“castilhiano”, que é onde se filia o do corpus,
se começara a firmar já depois da edição das Espontaneidades,
que terão sido das primeiras obras ultrarromânticas a emergir em todo o
Atlântico lusófono. Antes dessa data publicam apenas alguns dos primeiros
ultrarromânticos, os medievalistas – grupo ao qual pertencia Gonçalves Dias. É
o caso de José Freire de Serpa Pimentel (1814-1870), tradutor de poesia no volume
I de O Instituto (1853[1]), com colaboração datada de 1852 e publicada ainda em número deste mesmo
ano e cujos Solaus saíram precocemente em 1839 (ou talvez dez anos depois (Pimentel,
1849) ). Foi também o caso de Inácio Pizzarro de Moraes Sarmento (1807-1870), cujo Romanceiro veio a público em 1841. Porém, como é fácil de verificar pelas
datas, essa geração era imediatamente anterior à de José da Silva Maia Ferreira,
nascido em Luanda em 1827, conforme comprovou Carlos Pacheco.
Não estava, pois, desfasado em relação à poesia lusófona da época o
nosso poeta, como se pode ver pelas respetivas datas de publicação, mais outras
que irei avançando no decorrer deste estudo.
Perfilhando a escola do Visconde, os poetas angolenses só podiam
fazê-lo depois de saídos os livros que lhe deram corpo. A par deles, o de Maia
Ferreira era um, que tinha a mais-valia de ser escrito por um filho do país e,
portanto, por mais que o tivesse marcado algum destino aziago (como pretende
Carlos Pacheco), foi lido certamente pelos conterrâneos do seu tempo.
Pós-romantismo e crítica literária
Vinte e cinco anos passados sobre o nosso
limite cronológico inicial para a pesquisa no Brasil, o espectro
bibliográfico era já só em parte comum a Angola, de um lado, e Recife ou Rio de Janeiro na outra margem. Há referência a várias escolas e
teorias novas relativamente às negociadas em 1827-1847 e a notícia dessas novidades desembarca em Luanda ou Benguela por circuitos cada vez mais diversos dos brasileiros.
Para se ler os poetas do último terço do século liberal, com Pedro Félix Machado e Joaquim Dias Cordeiro da Mata à cabeça, é preciso já dar atenção às novas referências, ainda que a maioria dos autores esteja muito marcada pelo ultrarromantismo luso-brasileiro. Não por acaso, Cordeiro da Mata e outros intelectuais angolenses escreveram tentames etnográficos, tentames abundantes depois, nas primeiras décadas do século XX, entre os quais se destacam os de Augusto Bastos, sobre Benguela e Catumbela, pelo seu rigor científico. A divulgação da etnografia entre nós dá-se precisamente por esse último quartel do século e mais para o final do que para o início. Também não é por acaso que o último quartel do século XIX vê surgir o parnasianismo local e os folhetins cultos, irónicos, sarcásticos e informados de Pedro Félix Machado. É que muita coisa já se tinha passado entretanto e a bibliografia que importávamos acompanhava as mudanças científicas, políticas e comerciais. Julião Monteiro Torres, por exemplo, nesse final de século, importava Émile Zola (em francês) e O mandarim de Eça. No ano de 1899 desembarcavam em Luanda “impressos na ordem de 283 mil réis provenientes de Paris” (Moreno, 2014 pp. 80-81) . Mesmo que entre
nós, pela escassez de poetas ou por adaptação aos gostos do público, as
novidades tenham rareado na prática e surgissem muitas vezes mitigadas ou
misturadas, elas mudaram alguma coisa.
Para se ler os poetas do último terço do século liberal, com Pedro Félix Machado e Joaquim Dias Cordeiro da Mata à cabeça, é preciso já dar atenção às novas referências, ainda que a maioria dos autores esteja muito marcada pelo ultrarromantismo luso-brasileiro. Não por acaso, Cordeiro da Mata e outros intelectuais angolenses escreveram tentames etnográficos, tentames abundantes depois, nas primeiras décadas do século XX, entre os quais se destacam os de Augusto Bastos, sobre Benguela e Catumbela, pelo seu rigor científico. A divulgação da etnografia entre nós dá-se precisamente por esse último quartel do século e mais para o final do que para o início. Também não é por acaso que o último quartel do século XIX vê surgir o parnasianismo local e os folhetins cultos, irónicos, sarcásticos e informados de Pedro Félix Machado. É que muita coisa já se tinha passado entretanto e a bibliografia que importávamos acompanhava as mudanças científicas, políticas e comerciais. Julião Monteiro Torres, por exemplo, nesse final de século, importava Émile Zola (em francês) e O mandarim de Eça. No ano de 1899 desembarcavam em Luanda “impressos na ordem de 283 mil réis provenientes de Paris”
A um nível por demais evidente e por de menos
subjetivo repara-se, por exemplo, na passagem para a regularidade métrica,
muitas vezes estrófica também, uma caraterística de parnasianos e de realistas, comprovada no primeiro volume de Kicola. Mesmo os que mantiveram o
léxico, a temática e a motivação do Ultrarromantismo caminharam para a
regularidade estrófica. Apareceram também sonetos, espécie lírica recuperada
precisamente por realistas e parnasianos no espaço lusófono. Sem dúvida que
houve leituras a suportar a mudança e também não me ficam dúvidas sobre a
conveniência de arranjar um nome para este período que não o reduza a nenhuma
das escolas em jogo, incluindo o Ultrarromantismo, que já se estava a
transformar.
Por todos estes motivos há que falar em
pós-românticos.
A denominação de ‘pós-românticos’ é adotada
aqui num sentido muito preciso e ao mesmo tempo de largo alcance: referindo
escolas poéticas e de ideias que vieram depois de se afirmar o Romantismo no espaço
lusófono, mas que lhe são devedoras. É discutível, por exemplo, se e em que
medida o Realismo e o Naturalismo são um desenvolvimento do Romantismo, devendo
portanto integrar-se nele. Teófilo Braga defendia que sim, integrando a
‘Geração de 70’ na História do Romantismo
em Portugal (Braga, 1987) .
Mas, neste momento, o que importa é alertar o leitor para o facto simples de
irmos falar acerca do Realismo, do Naturalismo, eventualmente de outras escolas
posteriores ao Romantismo em sentido estrito e próprio, que porém lhe respondem ou lhe desenvolvem algumas tendências. Fá-lo-emos, face às
fontes, baseando-nos por agora na crítica literária (quanto aos aspetos formais
ou técnicos do verso, a eles foi dedicado, como disse, o primeiro volume desta série (Soares, 2012) ).
Uma obra de transição, que já tem condições
para ser considerada pós-romântica, chama-se Camões e Os lusíadas: ensaio histórico-crítico-literário
(Leoni, 1872) .
Li-a nas mesas do Arquivo Histórico em Luanda e, para além dos habituais
carimbos, nada mais permite suposições acerca da história do exemplar.
A leitura retórica do poema camoniano é sem
dúvida interessante e concorda, basicamente, com as Instituições elementares de retórica de Borges de Figueiredo, já
comentadas. As diferenças são, no entanto, muitas relativamente ao
neoclassicismo e à crítica romântica.
O autor (n. 1804) acha, com muitos outros, que
há partes d’Os Lusíadas compostas por
imposições e limitações da censura, o que afetou esteticamente a obra,
retirando-lhe o paganismo (Leoni, 1872 pp. 298-303) . O poema não pode,
por consequência, ler-se ignorando o meio em que surge – regra típica da então nova
crítica. Na «Introdução» (Leoni, 1872 p. 6) , dá-nos por isso um roteiro
historicista de leitura:
Para apreciar devidamente Luiz de
Camões é indispensável conhecermos o século em que nasceu: o estado em que se
achavam as letras, e as ideias que então predominavam; porque, sendo estas
ideias um como ambiente que todos respiram[2] e do
qual, mais, ou menos, não podem deixar de participar, é necessariamente por
elas que havemos de aferir as altas conceções do cantor dos Lusiadas e avaliar o quanto sobressaiu aos grandes
homens do seu tempo e poude mesmo competir com os da antiguidade.
O estudo da época servia, portanto, para duas
coisas: uma, de acordo já com a dominante crítica do tempo, compreender Os Lusíadas; a segunda, perceber o
quanto o poeta excedeu a sua época – e talvez aqui se mantenha um bom mito
romântico.
A partir desta posição, o autor estuda o
século XVI e dá-nos uma visão do Renascimento já contemporânea: o tempo em que
se procurava “conquistar a liberdade de pensamento” (Leoni, 1872 p. 20) . Numa perspetiva
concordante com a de Antero, de resto certeira, defende que o movimento foi
travado pela Inquisição (Leoni, 1872 p. 63) e pelos jesuítas
(“guarda pretoriana do Papa” (Leoni, 1872 p. 66) ), sendo dado como certo
que Luís de Camões “militava no partido anti-jesuítico” (Leoni, 1872
p. 111) .
Numa leitura que não ficaria sozinha, acha Os
Lusíadas uma “mistura do clássico genuíno com o puro romântico:
consequência do que se passava no século XVI” (Leoni, 1872 p. 179) – ou XIX, diríamos
hoje.
Na transição para as referências
‘pós-românticas’, as Memórias de
literatura contemporânea de A. P. Lopes de Mendonça constituíram momento
importante em Angola, quer pelo seu conteúdo, quer por terem pertencido à
biblioteca de J. E. de Salles Ferreira. Lopes de Mendonça, mais velho um ano
que Maia Ferreira, seria ultrarromântico por geração e nessa geração cresceu,
conviveu, fez crítica e política, enlouqueceu. Porém, como crítico, ele foi para
lá da geração – já o veremos. Em Angola foi lido com atenção e também no
Brasil, ao menos por Álvares de Azevedo e por Castro Alves (Haddad, 1960 p. 43) . Mas passemos os
olhos ao livro, ruminando.
O «Prólogo» da obra é significativo pelo que
assinala de como devia ser a crítica literária moderna. Os folhetins que
escrevera em A revolução de Setembro
– admirados por Garrett, como escrevi atrás – eram constituídos por recensões arrebatadas,
muito marcadas política e partidariamente, embora revelassem já qualquer quid da excelência do crítico. No seu
primeiro livro de críticas literárias – que Mendonça sublinha ter esgotado, ou
quase, em nove meses – ele reúne tal qual os artigos para o folhetim de A revolução de Setembro. O perfil que
daí ressalta é o que ele toma por contraponto para definir como deve ser a
crítica literária moderna e ao nível dos “outros paizes”.
Em função desse conceito novo de crítica
literária é que ele reformula o primeiro livro e constitui estas Memórias da literatura contemporânea. A
primeira mudança retira aos textos a circunstância política: “tive de mudar-lhe
milhares de allusões politicas, de proclamações mais ou menos enlhusiasticas,
que destoavam da idéa litteraria”.
No entanto a crítica não tinha que ignorar as
relações recíprocas entre política e literatura, tinha só de se manter sóbria
perante a paixão política:
uma cousa é comprehender a dupla e inevitável acção dos dogmas politicos sobre as revoluções litterarias, e das revoluções litterarias sobre os dogmas politicos, outra cousa é misturar assumptos tão diversos sem um certo tacto e prudência, passando indistinctamente da critica para a declamação, e baralhando as opiniões litterarias com as cóleras e vehemencias da satyra politica.
Passagens como esta, colocada logo no Prólogo,
ajudaram possivelmente os nossos poetas e intelectuais a não misturar poesia e
política sem deixarem de as relacionar quando fosse o caso. Pena que, décadas
mais tarde, este sensato aviso fosse ignorado pelos seus netos…
Na crítica, o estilo está sempre articulado a
uma metodologia de investigação. Uma questão de estilo crítico impunha
disciplina sobre o trabalho anterior do entusiasta. Era necessário tirar “todas
as considerações parasitas, que por assim dizer, incommodavam o texto.” Ou
seja: retirar as “alusões políticas” impostas à força à coerência e ao objetivo
da leitura.
A «Introdução» é pelo menos tão significativa
quanto o «Prólogo», como o próprio título dela sugere: «A poesia e o século».
Na sequência de uma tradição que vinha dos romanos (lembremos a Epistola ad Pisones de Horácio), que se
renovara com o Renascimento europeu, transcreve-se o pensamento literário por cartas, no
caso dirigidas ao Dr. Tomás de Carvalho. As cartas falam brevemente sobre como
deve o crítico ler os contemporâneos.
Em primeiro lugar, evitando exagerar na
austeridade sem deixar de ser rigoroso na leitura – dado o estado moral da
nação portuguesa (Mendonça, 1855 p. 1) . Apesar da circunstancialização, trata-se aqui de um princípio universal e atento, quer à importância da sensibilidade e do entusiasmo do leitor, quer à importância do exame crítico. Na linha de Villemain e de muitos outros, o ensaísta português apela ao equilíbrio entre a emoção e a razão na leitura. Não me parece que o fez por mera e protocolar moderação, que sempre cai bem no bom-senso e no bom-gosto. Não penso que Lopes de Mendonça se preocupasse muito com isso, penso antes que ele tinha consciência da importância da emoção, da afetividade, para guiar a sensibilidade, para orientar a intuição impedindo a mera aplicação de fórmulas ou princípios 'racionais'.
Em segundo lugar, avaliando a partir de uma obra, pois o poeta, ninguém “o pode julgar definitivamente antes de o ouvir tanger, uma após outra, as cordas da sua lyra” (esta frase me soa a Maia Ferreira, mas era da época(Mendonça, 1855 pp. 1-2) ). Note-se a importância do efeito de conjunto ou totalidade ("tanger, uma após outra, as cordas") assegurado pela obra, que nos dá a noção da coerência e consequência estética de um autor e, por isso, a sua própria autoria.
Em terceiro lugar, aceitando e compreendo obra e autor a partir da respetiva semiosfera. Ao poeta, ninguém o pode condenar, igualmente, por viver imerso no seu ambiente semiótico, se quisermos cultural. É interpretando e representando o espírito da sua época que o poeta se torna universal e assegura o seu lugar na História literária (há qualquer fímbria de Hegel aqui, aliás filósofo lido com particular atenção por Lopes de Mendonça). Marcando o mito romântico do homem providencial se refere que, tal como há políticos providenciais nos momentos de transformação, também há poetas providenciais para darem voz ao seu tempo: “a Providencia entrega a esses talentos predestinados o verbo intimo da humanidade”(Mendonça,
1855 p. 2) . Não quer dizer que o poeta se condiciona ao seu tempo e espaço, ao seu contexto semiótico, mas antes que ele o interpreta, ou seja, nos dá uma visão própria desse tempo-espaço e uma visão que, em princípio, lhe é superior, que nos trará daí o que de mais sublime haja para transmitir.
Em segundo lugar, avaliando a partir de uma obra, pois o poeta, ninguém “o pode julgar definitivamente antes de o ouvir tanger, uma após outra, as cordas da sua lyra” (esta frase me soa a Maia Ferreira, mas era da época
Em terceiro lugar, aceitando e compreendo obra e autor a partir da respetiva semiosfera. Ao poeta, ninguém o pode condenar, igualmente, por viver imerso no seu ambiente semiótico, se quisermos cultural. É interpretando e representando o espírito da sua época que o poeta se torna universal e assegura o seu lugar na História literária (há qualquer fímbria de Hegel aqui, aliás filósofo lido com particular atenção por Lopes de Mendonça). Marcando o mito romântico do homem providencial se refere que, tal como há políticos providenciais nos momentos de transformação, também há poetas providenciais para darem voz ao seu tempo: “a Providencia entrega a esses talentos predestinados o verbo intimo da humanidade”
Mostrando a força de uma crítica
lamentavelmente não desenvolvida com a respetiva teorização, ele recorda ainda
serem as literaturas “reflexos umas das outras”. Não profere a frase por
capricho, dá exemplos de como as literaturas nacionais estão enredadas umas com
as outras e mistura-os com a noção de “génios dominadores”, que influenciam
poetas de todas as literaturas (aí a marca romântica). Uma vez que Harold Bloom
ainda não tinha nascido, auxilia-se com uma citação de Chateaubriand (Mendonça, 1855 pp. 2-3) . Vale a pena citar a
consequência que tira daí – hoje ignorada pelos nossos neonativistas, que aliás
ignoram muitas outras leituras (Mendonça, 1855 p. 3):
Queres atacar este vicio? [de as literaturas apanharem rapidamente a substância do que outras produzem, depois de se enriquecerem também nas suas origens]? Lança aos livros parte do facho, de que Omar se serviu para reduzir a cinzas a bibliotheca de Alexandria: diz que o vapor, que os caminhos de ferro, que os telegraphos, que a imprensa desappareçam, para que cada nação cultive o seu próprio espirito, isolado das outras. Meu querido, essas appellacões para a nacionalidade litteraria são estéreis, e não passara[m] de um logar commum; poderia proval-o com o próprio Romanceiro, que o sr. Almeida Garrett ainda recentemente publicou.
E continua a desfilar exemplos até a meio da
página seguinte. Repare-se que estamos no auge do romantismo nacionalista e que
o crítico se levanta, justamente, contra o nacionalismo estreito, fechado sobre
si, xenófobo – numa palavra: burro – de que há tanto exemplo hoje no mundo.
Depois retoma ‘o fio à meada’, recapitula os
argumentos, para concluir a primeira carta (Mendonça, 1855 p. 8):
A causa essencial d'estas differenças não provém, a nosso ver, nem do espirito de imitação, nem de se procurar o reflexo de litteraturas estranhas, mas da maior ou menor affinidade que cada escriptor possue com o século em que vive.
Esta é a verdadeira pedra de toque de uma critica imparcial e justa.
Repare-se em como o ensaísta reitera a posição pessoal e criativa do "escriptor", agora em face da época. Ele é a voz da época mas em função das afinidades e ele muda o seu tempo em função das diferenças que tem com a sua contemporaneidade. Não estamos perante uma teoria do reflexo, uma visão 'realista' do conhecimento e da criatividade a partir dos condicionamentos dos autores, nem de uma visão idealista dos seus limites.
A segunda carta retoma a reflexão incidindo numa visão comum da periodologia literária, a de que o lirismo seria próprio da infância e da adolescência, quer das pessoas quer dos países (o que não explica porque veio Safo depois de Homero, mas disso não se lembraram). Para nós o interessante é que tira daí conclusões inovadoras – ou, pelo menos, arejadas. Antes ele disse que era preciso compreender e julgar o poeta e a obra enquanto vozes sublimes da sua época. Agora nos diz que a poesia, mesmo por ser assim, própria de adolescentes, entusiasmada, impetuosa, impulsiva, ela se assumia a voz do seu tempo, não exprimindo “o estado da sociedade” (como fez o realismo) mas “as suas delirantes e caprichosas tendências”, que prenunciam o futuro(Mendonça, 1855 p. 10) .
A segunda carta retoma a reflexão incidindo numa visão comum da periodologia literária, a de que o lirismo seria próprio da infância e da adolescência, quer das pessoas quer dos países (o que não explica porque veio Safo depois de Homero, mas disso não se lembraram). Para nós o interessante é que tira daí conclusões inovadoras – ou, pelo menos, arejadas. Antes ele disse que era preciso compreender e julgar o poeta e a obra enquanto vozes sublimes da sua época. Agora nos diz que a poesia, mesmo por ser assim, própria de adolescentes, entusiasmada, impetuosa, impulsiva, ela se assumia a voz do seu tempo, não exprimindo “o estado da sociedade” (como fez o realismo) mas “as suas delirantes e caprichosas tendências”, que prenunciam o futuro
Logo na página seguinte lança novo alerta,
importante face à vulgarização do Romantismo: é indiscutível que se estude o
passado, mas é também indiscutível que não se deve tentar imitá-lo, “não serei
eu que o aconselhe”. Depois de se entregar a uma interpretação da História de
Portugal, relaciona-a com a Literatura e reconhece que o absolutismo do
Marquês de Pombal não podia ter criado nenhuma nova nem brilhante geração, que
não se faz por decreto (como ele diz), nem a falta de projeto e de vocação da
elite que se revoltou contra ele daria azo a qualquer grande voz. Começa,
portanto, a praticar a análise da produção literária em função da sociedade em
que ela surge – e nisso encaminha a direção crítica no sentido do Realismo e de
Teófilo Braga – que virão depois imitar os críticos franceses, mas tinham já
preparado o chão por aquele seu compatriota. Porém, no caso de Lopes de Mendonça, o que se está a dizer ainda é o contrário das teorias do reflexo: não são as épocas, as elites falhas de projeto, nem os projetos políticos que vão criar uma "brilhante geração". Uma geração não se cria em laboratório e menos ainda quando o laboratório é falho.
Entretanto, a análise histórico-literária vai sendo
conduzida para a defesa precoce de que a República permitiria a criação
literária, enquanto a Monarquia a atrofiava
(Mendonça, 1855 p. 16) . A conclusão dessa carta é elucidativa, recorda Villemain e, sem dúvida,
calou fundo em muitos leitores angolenses (Mendonça, 1855 p. 17):
A liberdade, a liberdade ampla e completa, eis o ambiente precioso em que se desenvolvem as vocações, e se criam as litteraturas.
Se o crítico realçava a importância da personalidade e da interpretação do autor em face da nação e da época, tanto quanto a importância das vocações, o corolário lógico estava dado: o talento só se desenvolve em liberdade.
A carta III é muito importante por estender e aprofundar, através de exemplos, a tese da anterior. A importância reside em que, para demonstrar que não foram os grandes reis ou imperadores, quando protetores das artes, os responsáveis pelo florescimento literário das suas cortes, o crítico nos mostra que o que interessa, para pensarmos as causas sociais desses florescimentos, é o período no qual se formam e forjam as personalidades e as obras.
A carta III é muito importante por estender e aprofundar, através de exemplos, a tese da anterior. A importância reside em que, para demonstrar que não foram os grandes reis ou imperadores, quando protetores das artes, os responsáveis pelo florescimento literário das suas cortes, o crítico nos mostra que o que interessa, para pensarmos as causas sociais desses florescimentos, é o período no qual se formam e forjam as personalidades e as obras.
Ele reconhece a necessidade (ou, pelo menos, a conveniência) de se
apoiar as artes, mas se não existirem já poetas a apoiar (ou seja: formados
antes), a política de apoio às artes não funciona. Confesso que me interessa
bem menos a análise histórico-literária comparada – embora a considere de
grande qualidade, no escrito e no pensado. O que mais aproveito é essa tese
subjecente, de que precisamos conhecer o ambiente semiótico e bibliográfico no qual se formaram
os poetas para percebermos o seu florescimento. Penso, de resto, que é para isso o
que estou a fazer aqui.
Da aplicação das suas teses resulta que, não só a liberdade é necessária, quando as ideias libertadoras não avançam, a
literatura esmorece, torna-se decadente, sem vigor, mesmo que os cidadãos continuem livres para dizer o que lhes apeteça. É uma regra universal (Mendonça, 1855 p. 25):
a litteratura estaciona, do mesmo modo que as idéas que têem de emancipar a humanidade. E esta situação não se dá n'este ou n'aquelle paiz, estende-se a todos.
Como dado final, cumpre lembrar que o breve
«Apêndice» às Cartas introdutórias vem datado de “Julho de 1854.”
Não duvido de que a leitura desta obra de
Lopes de Mendonça concorreu fortemente para o republicanismo local, angolense,
que despontou literariamente bem no começo do século XX, mas dava sinais em periódicos
ainda do fim do anterior.
Outra obra que tem significado para nós é de um
autor referido pelo filósofo brasileiro Sílvio Romero e constitui, portanto, um
elemento bibliográfico a ligar Angola e Brasil. Trata-se de Émile Burnouf, professor na Fac. de
Letras, e chama-se Essai sur le Veda ou
études sur les religions, la littérature et la constitution sociale de l’Inde
depuis les temps primitifs jusqu’aux temps brahmaniques (Burnouf, 1863) .
O exemplar encontrado na Biblioteca do Governo
Provincial estava incompleto quando o vi: faltavam-lhe as últimas páginas do
índice e a contra-capa, chegando só à p. 472. Na folha de rosto há uma
assinatura de Alfredo Moraes, que assina em Lisboa, em Abril, mas não se
percebe o dia, nem o ano, assinalado com dois dígitos, o primeiro dos quais é
um 6. Pode colocar-se a hipótese de ter sido comprado na década de 60 do século
XIX em Lisboa. Nada sei sobre o comprador. Entretanto chegou a Angola (o exemplar), porque
no verso da capa tem um selo de “J. P. da Silva Rocha”, empresário instalado
“com officinas typographica e de livreiro” na “Rua de Salvador Corrêa” em Luanda.
Transcrevi de propósito na grafia antiga para o leitor ajuizar, por si, da
altura em que o exemplar terá passado pela empresa de Silva Rocha, pessoa que
desconheço. Apenas acrescento que Alfredo Moraes pode ter sido um militar português que passou vários anos em Angola.
O capítulo que mais interessa ao nosso âmbito
é o IV, sobre a “poesia do Veda”. Em resumo se diz que ela é simultaneamente
simbólica, ideal e descritiva – caraterísticas que, mais tarde, outros autores
aplicarão à poesia chinesa. A descrição garante-lhe, ou exige-lhe, certamente, a
clareza na significação, propriedade apreciada por muitos pós-românticos,
sobretudo realistas e parnasianos. A "poesia do Veda", porém, não separava essa clareza da vertente simbólica e não fica fácil aproximar ambas as poéticas em jogo. Seria, sem dúvida, mais fácil aproximar o parnasianismo de Olavo Bilac, por exemplo, da poesia clássica chinesa do que das poéticas indianas, apesar da sensualidade (em sentido próprio) de ambas.
A poesia dos Veda era também metafísica, falando o autor nos
carateres poéticos das divindades e de outros aspetos concordantes.
Apesar disso, Burnouf acha-a pouco moralista, ainda mesmo quando misturada à vida real. Talvez a
leitura desta obra tenha contribuído para que se formasse uma ideia de
literatura mais abrangente mas fiel, à mesma, ao descritivismo, que é uma
constante na lírica escrita em Angola entre 1850 e 1950. Porém me parece que a poética indiana terá tido escassa influência entre nós.
Outra obra a considerar – e a comparar com os
escassos artigos de crítica de Alfredo Troni, Mamede de Sant'Anna e Palma ou Ladislau Batalha – é a Bibliografia crítica de história e literatura, cujo vol. I
(1873-1875) aparece na Biblioteca do Governo Provincial também. Tratava-se de
um periódico reunido por volumes, no qual escreveu Teófilo Braga. Segundo o que
diz o editor, Adolfo Coelho, na «Advertência» (AAVV, 1875 p. 1),
a publicação da Bibliografia Crítica parte apenas de um desejo: o de vermos o nosso país [Portugal] entrar no grande movimento científico europeu.
Mais adiante (AAVV, 1875 p. 2),
pormenoriza “as nossas intenções”:
As publicações mais importantes sobre historia, politica, religiosa, litteraria, artistica, viagens, linguistica, sciencias moraes e politicas, philosophia, estudo philologico dos textos das litteraturas classicas e orientaes, as edições e traducções dos monumentos das differentes litteraturas que forem aparecendo em toda a parte onde se trabalha terão aqui, sempre que nos fôr possivel, uma, analyse e uma apreciação critica, na medida das nossas forças.
A afirmação dá-nos a medida desse integrante
da geração de 70 e do Realismo, cuja atuação foi notória na época em
Portugal.
O lento e esparso aparecimento do Realismo em Angola (que talvez
comece com Alfredo Troni e culmine com a Luz
& crença a abrir o século XX), beneficiou decerto com este guia bibliográfico, se por acaso
ele chegou a tempo à colónia. Há uma assinatura no exemplar, de M. Faia, mas
nada mais nos indicia o percurso particular até ali. No entanto e
lamentavelmente o periódico punha de lado as “sciencias physicas e mathematicas”,
o que também nos marcou, por essa tendência para silenciar, ou tornar discreta,
a formação por assim dizer lógica, técnica, aplicada e estritamente científica
na sua base. Augusto Bastos tentava (quando estudante em Lisboa) contrariar essa tendência mas, não podendo
continuar os estudos, acabou reduzindo-se também ao Direito, à Etnografia e à
narrativa etno-histórica. Alguns filhos da terra, dos quais vários estiveram no
início da Liga Nacional Africana da década de 1930, realizaram esse tipo de estudos e
são hoje desconhecidos pela nossa história cultural, quando afinal
desenvolveram, sobretudo no interior, um trabalho estruturante, mesmo a nível
ideológico. Foi o caso de Amílcar Carreira, por exemplo, pai do nacionalista Iko Carreira.
Por outro lado, esta publicação prolongava as
polémicas da Geração de 70 e o próprio editor inicia o
volume com uma severa crítica à tradução, por Castilho, do Fausto de Goethe.
Um dos autores
comentados é Delille, pela publicação da recolha dos poemas de Baudry, sobre os
quais escrevera, em 1872, um artigo no número inaugural da revista Romania (Deslile, 1872) , cujo segundo número foi também recenseado neste volume.
De uma forma geral, os títulos comentados ou
noticiados são de âmbito histórico-literário e de linguística histórica, muito
na área das ‘românicas’, assinados a maioria pelo editor e por Teófilo Braga. O periódico integrou, portanto, a afirmação da ‘Geração de 70’ e do ‘Realismo’ na
bibliografia passiva e académica do tempo, comentando alguns autores e obras
que percebemos terem circulado por Angola no século XIX (por exemplo:
Michelet). Por curiosidade refira-se uma crítica a um trabalho de Joaquim
Nabuco sobre Camões (AAVV, 1875 pp. 65-69) , considerado
meramente encomiástico e ‘admirativo’. O trabalho começa por uma frase que, em
parte, explica uma das ausências deste meu livro: “E ocioso fallar na
importancia historica e litteraria de Camões”. Vinha subscrito pelo editor.
O Naturalismo está representado
bibliograficamente no corpus através
da obra de Júlio Lourenço Pinto (1842-1907) Estética
Naturalista: estudos críticos (Pinto, 1885) . Pela edição que li, in loco, o livro saíra no
Porto em 1884 (ano em que o autor se tornou presidente da Associação de
Jornalistas e Homens de Letras do Porto) e subsistia ainda há pouco mais de uma década no Arquivo
Histórico Nacional, junto à Mutamba (a edição referida na sua biografia é,
porém, de 1885 e o subtítulo mais extenso: estudos
críticos sobre a Arte – sem menção de editora).
O autor foi referência do Realismo em Portugal e chegou a ser saudado por Camilo – embora
se duvide da sinceridade do elogio. Em 1886 era dado como par de
Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz e do “inimitável Camilo” (1886) . Nasceu no mesmo ano
de Antero de Quental e de Pinheiro Chagas. A par da carreira crítica e literária,
foi administrador de Concelho, secretário-geral de vários governos civis,
Governador Civil, eleito por duas vezes Procurador da Junta Geral do Distrito
do Porto, Conselheiro Real e, até, Diretor do Banco Comercial do Porto (Figueiredo, 1924 pp. 200-201) .
Não sei se o título de sequaz de Eça e do
Realismo, aposto por Camilo, se justifica inteiramente, apesar de corroborado
pelo Livro de ouro e pela crítica da
época. Enquanto romancista ele terá mesmo sido um seguidor de Eça. Enquanto
ensaísta, é mais justa a afirmação de Fidelino de Figueiredo:
positivista e materialista em filosofia e estritamente naturalista em arte […/…] estrénuo defensor do naturalismo.
A dedicação à estética naturalista expressa-se
neste livro. Trata-se de uma obra crítica fundamental naquela data, para que os
escritores locais pudessem perceber a teoria, os princípios, enfim, o “sistema”
do qual emergia a estética naturalista. A leitura das obras que a
exemplificavam, bem como as do Realismo, tornava-se mais organizada e lúcida
após uma passagem por ‘estéticas’ como esta.
O aparecimento da geração de Luz e crença, logo no início do século
XX, não se deu por acaso. Certamente a consulta de livros como este foi
fundamental para a formação desses autores. Daí que lhe dedique alguma atenção.
Logo a abrir, uma citação de Stendhall transfere-nos
o sinal preciso da tarefa a realizar e do ambiente positivista e naturalista
que a define: “voir clair dans ce qui est” (dois grandes mitos, mas mitos
úteis: “ver claro” e “o que é”). O prefácio começa de forma esclarecedora
também (Pinto, 1885 p. 5):
É axiomática a necessidade de fixar as leis, os princípios fundamentais, que pelo seu caracter de estabilidade e generalidade se anteponham às mutações do gosto, e sobrevivam como bússola e fanal de orientação para o artista e o crítico.
H. Taine não o daria por menos. Não se tratava,
nem de bom gosto, nem de bom senso, mas de encontrar as constantes sistemáticas
da literatura. Depois de “um século todo reconstrutivo”, havia que estabelecer
cânones e orientar as mentes, daí a importância de fixar “os princípios
fundamentais”. Aqui reside um dos equívocos da nova escola, que Popper
incluiria no Historicismo. A literatura é um sistema, sim, e um sistema
pressupõe generalizações e estabilidades. Mas atentemos no nosso cérebro e no
que os anglófonos chamam de mind e no
que eles apelidam self: o cérebro-eu
(ou seja: o cérebro físico, neurobiológico, e a minha identidade, constituída a
partir da organização e padronização de respostas ao meio e aos estímulos corporais) forma um sistema. É
um sistema relativamente estável e de cuja estabilidade podemos deduzir, com a neurobiologia
por exemplo, generalizações. Mas é um sistema dinâmico mesmo no que diz
respeito aos “princípios fundamentais”. Ou seja: ele se transforma nessa
interação com o meio, se altera, degenera ou melhora, modifica padrões que
orientam respostas, quer dizer, ele sofre transformação a todos os níveis,
incluindo o da autorregulação que também faz.
A literatura funciona de maneira
semelhante (para usarmos essa metáfora) à do cérebro-eu. É um sistema, porém
razoavelmente previsível apenas dentro de uma época, durante a qual a sua
padronização não se alterou substancialmente. Mas, como demonstram os dias que vivemos, as
próprias regras de padronização literária se vão modificando, ou seja, a
autorregulação do sistema sofre, por sua vez, transformações. Isso vem,
justamente, garantir-nos a estabilidade, pois as literaturas degeneram, morrem,
perdem qualquer interesse quando persistem nos mesmos cânones durante muito
tempo (um tempo limitado pelas transformações no sistema social envolvente, no
qual ela funciona, que lhe dá a ambiência de vida). Ou seja: a estabilidade vive da transformação e, portanto, experimentações e reformulações do sistema, que só assim se mantém vivo.
Quando um sistema literário
consegue integrar as inovações, ele não corre perigos de morte. A estabilidade,
nesse tempo do naturalismo, porém, era definida por uma condição básica mais
própria do mecanicismo: teriam de ser encontrados mecanismos permanentes e
imutáveis que assegurassem a definição do sistema – que, portanto, não
sofressem transformações e suas consequentes necessidades de estabilização. O
século XIX, visto como “essencialmente científico”, tendo alargado tanto “os
métodos exatos e positivos” (Pinto, 1885 pp. 5-6), preparar-nos-ia para isso, pondo
ao alcance da humanidade o conhecimento da verdade que lhe dá a consciência lúcida do seu destino.
Como, de resto, se
viu…
O Naturalismo viria, pois, naturalmente, do
“irresistível impulso para a natureza e para a realidade” (Pinto, 1885 p. 8) , assim definida.
Curiosa contradição, pelo menos aparente, entre a força cega do "irresistível impulso" e a
lucidez da ciência a que tal cegueira conduz. De qualquer modo o pensamento é
contrapolar e o modelo do escritor aproxima-se agora de Flaubert e de Zola (o
“robusto” Zola), vistos como saudáveis, trabalhadores e conscienciosos.
A
imaginação criadora, incensada pelos românticos, devia subordinar-se, já não ao
bom senso e ao bom gosto públicos, mas “aos processos positivos e científicos
da observação exata e da rigorosa conformidade com a verdade natural” (Pinto,
1885 p. 13) . A tese, em parte, retoma a crítica racionalista do fim do século XVIII, como é fácil de ver. A poética
romântica, onde “a fantasia campeia”, passa a sinalizar um “estado muito
próximo da loucura” (Pinto, 1885 p. 13) – mito que se prolonga até hoje entre
polaridades negativas e positivas e que teve, no período romântico, a
exemplifica-lo a biografia de A. P. Lopes de Mendonça – crítico bem mais
intuitivo e profundo que Lourenço Pinto. Enfim, o enredo alienista de Machado
de Assis (Assis, 1882)
aproximava-se perigosamente da realidade…
Quando falo no domínio positivista sobre a
mentalidade literária e cultural dos angolanos do início do século XX, do Realismo
e do Naturalismo correspondentes que a sua narrativa nos traz, é da influência
de pregações como esta que estou a falar. As narrativas do benguelense Augusto
Bastos, por exemplo, são a concretização das ideias expostas por Lourenço
Pinto. Em ambos os casos vemos a provocação da “tonalidade física do leitor […]
na interpretação da natureza e da vida real”, o “estilo cristalino”, a
“elevação [platónica…] dos sentimentos”. Talvez em Augusto Bastos não se note o
resquício de Romantismo desta estética, um estilo “nervoso em que vibre
magneticamente a alma do autor” (Pinto, 1885 pp. 16-17) . Mas ele mantém-se
fiel ao propósito essencial de, embora não copiando “servilmente” a natureza,
interpretá-la “sem exagerações que a desfigurem” (Pinto, 1885 p. 17) , muito pelo
contrário. Daí que, na sua narrativa ‘colonial’, o exotismo seja combatido por
uma prudente descrição dos perigos da selva, da vida na selva e das precauções
a tomar, sem criar fantasias como as da posterior narrativa colonial,
desmentindo mesmo as então existentes. Estava subordinada “a arte ao grandioso
espetáculo da criação” pela “adaptação rigorosa à verdade natural [e histórica]
e às mais seguras generalizações da ciência positiva” (Pinto, 1885 p. 19) - como da experiência, diria Camões .
A continuidade entre Romantismo e Naturalismo não
era, no entanto, cortada. Quando citava Zola, o crítico português reconhecia ao
Romantismo o papel “necessário” e “justo” que desempenhou, demolindo “o
convencionalismo que escravizava o pensamento” (Pinto, 1885 pp. 23-24) . Mas, assim como
vemos na poesia ultrarromântica, essa libertação cairia numa espécie de novo
convencionalismo, este muito social, aparentemente sentimental. Lourenço Pinto critica-lhe,
por isso, a retórica oca (tão perniciosa para os nossos escritores), os
cenários “de papelão e títeres enfáticos” (Pinto, 1885 p. 24) , face aos quais o Realismo viria
devolver à origem, à vida e à verdade o projeto romântico (Pinto, 1885 p. 25) .
Tal devolução
realiza-se por duas vias: a psicologista, que é a de Balzac e Stendhall (entre
nós a de Pedro F. Machado em Scenas d'África), “percursores da nova fórmula”, e a dos
“fisiologistas que se filiam em Flaubert e Zola” – a via seguida por Augusto
Bastos, independentemente do resultado estético.
O primeiro capítulo era particularmente
sugestivo para os candidatos a escritores: “método a seguir na aplicação do
realismo à arte” (Pinto, 1885 p. 11ss) . Até hoje não sei se
Pedro Félix Machado o leu, mas acho provável, na medida em que o seu irmão convivia justamente nos círculos realistas lisboetas antes de ir para o Brasil - e depois também. Quanto aos restantes capítulos, parecem-me sem qualquer interesse para esta
parte do meu livro.
As Recordações
Literárias de Soares Romeu Júnior (José Elias Soares Romeu Júnior, n. Porto,
29.5.1839), saídas em 1877, embora menos significativas, não são de esquecer. O
autor assina a nota explicativa da dedicatória em Braga, a 14.8.1876. O
significado que ela tem para nós relaciona-se com o neogarrettismo, que notamos
em alguns poemas dos últimos anos do século XIX, sobretudo os enviados para o Novo almanach de lembranças luso-brasileiro.
Acontece que o livro é dedicado “à memória do Visconde de Almeida Garrett”. Acresce
que Soares Romeu Júnior foi comerciante no Rio de Janeiro, onde era “sócio
correspondente do Retiro Literário Português”. Aí colaborou no Correio mercantil e em Marmota. Regressou a Portugal em 1868,
tendo sido guarda-livros do Banco Comercial de Braga. Era também Cavaleiro da
Ordem de Cristo, portanto pessoa certamente bem posicionada e com pecúlio, para
além de manter uma ponte importante com o Brasil.
Essas pontes se revelaram mais sólidas quando
por ocasião da famosa polémica da ‘Geração de 70’ com A. F. Castilho. Antero de
Quental, no panfleto Bom senso e bom
gosto (Quental, 1865) , afirmara que as obras do destinatário
só interessavam aos brasileiros, “uma turba de gente que nunca leu nem pensou” (Polêmicas
literárias e mercado editorial Brasil-Portugal na segunda metade do século
XIX, 2004) .
Não sei no que estaria a pensar Antero nesse
momento, se pensava que os brasileiros gostavam das obras de Castilho só por as
terem ouvido, visto que nunca leram. Sei que essa passagem infeliz atesta, na
geração, um preconceito nosso conhecido já: tudo o que viesse do Brasil era
ruim, fraco, inferior. Isto para não falar de África, onde uma pequena tribo a norte de Angola apelidava os portugueses com uma palavra sintomática, pois
traduzida significava ‘pontapé no cú’... Não é, portanto, de estranhar o entranhado
racismo e desdém de Oliveira Martins, o ‘grande’ historiador do grupo. Também
não é de estranhar que a colonização ‘moderna’ e ‘positiva’ de Angola resultasse na
espoliação e proletarização completas e desonestas da elite local e dos
‘indígenas’. E não admira que, poucas décadas depois, um preconceito semelhante
viesse despoletar a primeira grande reação coletiva dos filhos da terra à dominação
portuguesa, recolhida no título Voz
de Angola clamando no deserto offerecida aos amigos da verdade pelos naturaes
((AAVV), 1901) , já citado neste meu trabalho.
Mas o que, por agora, nos interessa é que Soares
Romeu Júnior, encontrando-se já em Braga, publicou uma resposta a Antero
defendendo os brasileiros (Júnior, 1866) . Aí arruma com o ‘Santo’ de Coimbra em dois argumentos
simples: ou não sabe do que fala – e, portanto, não devia falar; ou nega aquilo
que conhece – e, portanto, não é honesto (Júnior, 1866 p. 5) . Os escritores brasileiros referidos
são quase todos românticos e ultrarromânticos – exceção notória a de Machado de
Assis, que também colaborou em Marmota.
O que temos, então, nessa brochura, é uma resposta de alguém ligado ao
Romantismo que desmonta o preconceito e a ignorância do herói do Realismo e da
Geração de 70. Por isso, também, o livro foi importante: por um lado reforçava
e estimulava as polémicas antiportuguesas em Angola (mesmo sendo Romeu Júnior
português) e, por outro, ativava uma reserva séria perante os novos
intelectuais.
Finalmente, para fechar o século, dois livros
nos importam: A geração nova: ensaios
críticos, de Sampaio Bruno, e Por
montes e vales: prosa, de João Penha. Foram já publicados tardiamente, mas
nos interessam porque fazem o resumo crítico do século e o atiram para o
seguinte. Dão-nos, portanto, uma panorâmica e uma tentativa de antecipação que
podemos comparar com o que logo a seguir aconteceu na então colónia.
Os ensaios
críticos de Bruno debruçam-se principalmente sobre a narrativa. Começa por
falar-nos de um ausente das nossas fontes ((Bruno), 1984 p. 9):
O mundo latino não deixou de lavra
própria senão um único romance, mas esse prodigioso, o Satyricon, de
Petrónio, onde se encontram, de resto, especímenes de todos os géneros
literários, intercalados no transcurso da narrativa, desde o ingénuo madrigal
até às grandes tiradas épicas.
Destaca no Satyricon
o que muito faltou à nossa lírica: a “facilidade da narrativa”, a “elegância
das descrições”, a “vivacidade irónica dos comentários” (que podemos encontrar
na ficção de Félix Machado e em algumas das nossas polémicas) e a “minúcia da
exata observação” que havia de fascinar, junto com a ironia, romancistas do
calibre de Eça de Queirós e Machado de Assis.
Bruno tem a vantagem de uma noção divergente
do Romantismo, chamando-nos a atenção para um aspeto pertinente, o de que os
seus escritores eram, apesar dos mitos de espontaneidade, inspiração, natureza,
impulso, alma popular, eram “filhos dos livros” ((Bruno), 1984 p. 17) . Ao longo
deste trabalho vimos isso mesmo em vários poetas românticos portugueses, entre eles
se destacando A. F. Castilho.
A virtude dos românticos residiria, como
lembra o “historiador-filósofo” Gervinus (que também se vendia no Recife), na
ligação à “tradição viva” que, da Idade Média, o povo trouxera. É nesse âmbito
que situa “o êxito extraordinário, no princípio do século [XIX]”, das “novelas
de Walter Scott” – “sugestão próxima” para a recuperação das tradições vivas, a
par do responsável pela renovação do romance em Portugal, o “típico de Notre-Dame” ((Bruno), 1984 p. 19) .
Tacha de falhadas as primeiras tentativas de
romance histórico em Portugal (Herculano, Garrett e Oliveira Marreca), porque
“os escritores, filhos do romantismo pelo estilo, procedem do classicismo
português pela gramática; a sua linguagem é nobre mas hirta; nada elástica,
dificulta-lhe os movimentos a armadura de ferro dos seus heróis” ((Bruno), 1984 p. 21) . Isso também
vimos, sobretudo em Herculano, um pouco menos em Garrett.
Estas passagens resumem, pois, a visão que
tentei dar (e também outros, por exemplo Fidelino de Figueiredo) do primeiro romantismo
português (e brasileiro – lembremo-nos de Gonçalves de Magalhães). Elas explicam
a intermitência da maleabilidade frásica de Maia Ferreira e da maioria dos nossos líricos
nos seus versos – escritos em moldes aos quais não conseguiam adequar uma
linguagem comum, do que resultava um estilo enfardado, quero dizer, em que o
fato não combina com o resto da personagem, que está forçada ali, rebenta os
botões e ganha uma respiração cardíaca pelo nó da gravata, geralmente mal posto.
Nota-se neles, embora por razões diversas das de Herculano e Garrett, uma
desadequação entre as “ideias” e os “sentimentos” de hoje, por um lado, por
outro a “linguagem obsoleta” dos “castelos feudais de papel-cartão” ((Bruno), 1984 p. 24) . De onde a
impressão de que “a novidade residia na forma das ideias e não nas ideias
mesmas”.
Ainda assim, é de realçar aqui a maneira como
tentou Maia Ferreira contornar o problema, evitando precisamente os “castelos
feudais”. Podemos observá-la no romance D.ª Beatriz (Ferreira, 2002 pp. 113-117) , epigrafado por dois
versos intrinsecamente românticos de Castilho: “...curtiu delírios vastos / ...entre tufões e
abismos”. A primeira secção do poema faz a aparição da protagonista em cena,
através de uma descrição e de uma fragmentada narração muito eficazes, apesar
dos lugares-comuns a que recorre. Em seguida, a mudança estrófica, métrica e
rítmica assinala a entrada em cena do "vate" D. Silveira, amante de D.ª Beatriz. A sua
cavalgada em busca da amante é suspensa pelo passar de uma procissão, que vai
ser descrita e narrada (por fragmentos, centrando-se no canto dos monges), com a retoma do verso decassilábico
(agora fechando-se a estrofe, única como a primeira, com um quebrado de seis
sílabas). A segunda secção inicia-se pelo retomar da solução estrófica usada
para a entrada em cena de D. Silveira (estrofes de redondilha maior), sobre
quem se focaliza a narrativa lírica, retomando o amante a cavalgada em busca da
sua “dama – a famada Beatriz”. Sensivelmente o meio da secção traz uma nova
formulação métrico-rítmica (estrofes de quatro versos, ainda, mas agora versos
de nove sílabas métricas, com tendencial acento na sexta) e é nessa secção que
os amantes se avistam, parando a cavalgada e encaminhando-se a pé o herói para
a protagonista. Subitamente a métrica muda para o decassílabo e os amantes se
encontram, se abraçam, fechando a secção. A última parte – a mais curta, só com
três estrofes – resume o desenlace: nada mais se soube deles; alguns afirmam
que D. Silveira foi assassinado e D.ª Beatriz se recolheu ao “claustro”. Atento
sempre, o poeta, para referir a sorte da amante, muda da redondilha maior
(usada nas duas primeiras estrofes) para a menor (usada na final),
aproximando-nos mais do silêncio …do claustro.
O mais notável, porém, para o caso não é esta
habilidade e coerência que faz o poeta mudar as formas estróficas conforme a
sucessão dos episódios, os lances e o desenlace, fundindo forma e conteúdo.
Para o caso o mais importante é que Maia Ferreira, por essa sua tendência para
deslocalizar, ou desterritorializar, ou por ter percebido que sairia forçado o
cenário medieval português, evita justamente a montagem do cenário e as
descrições típicas, resumindo-o por pinceladas que podiam servir para cenários
e roupagens em qualquer parte do mundo (a lua, o luar sobre as águas e os "areaes", o cavaleiro cavalgando, a
procissão com os monges entoando os cantos tristes, a apaixonada “de um corpo
gentil / Que extasia, revela, arrebata”). Ou seja: evita a preocupação
romântica de mostrar o conhecimento histórico da Idade Média europeia, não
saindo das generalidades suficientes para imaginarmos as personagens – em nosso
meio, ou meio próximo ao nosso. Isso, somado à vivacidade rítmica e à alteridade
métrica, mantém alguma frescura, agilidade, naturalidade mesmo no seu poema.
Mas infelizmente esse ‘jeito’ elegante e
inteligente com que o poeta contornou o problema não foi seguido pelos
versejadores escrevendo de Angola para o Almanach
de lembranças, foi parcialmente
seguido, sim, pelo poeta Cordeiro da Matta, sobretudo nos versos em que, usando
alguns termos antigos (como Maia Ferreira e deles alguns ainda em uso – caso de
‘dama’), se refere à mulher africana sem deixar de recorrer a traços gerais, de
maneira que uma pintura vaga, ou incompleta, permite a qualquer leitor ‘exógeno’
preencher com o seu imaginário o que falta na descrição da personagem. Estas
acusações de Bruno serão mais comuns em versejadores insignificantes (elas
também não surgem – nem o vocabulário antigo – em Eduardo Neves, muito menos em
Pedro Félix Machado), vários deles reinóis, do que propriamente nos que tivemos
por poetas.
Em qualquer dos casos, porém, tal como em
Portugal, que nesse tempo controlava o ensino da colónia, a explicação para o
fracasso poético pode estar na “miserável educação filosófica recebida” ((Bruno), 1984 p. 27) . Repare-se:
não é que Portugal não tivesse grandes poetas românticos, é que eles não eram
propriamente românticos (o romantismo ‘de fundo’ estava mais em Bocage), nem a
sua poesia era a de um inquiridor inquieto com a verdade, mesmo com a
possibilidade de ela não existir, como terá sido a de outros na Europa já desde
Goethe e Hölderlin. De forma que a poesia deles (e dos angolenses)
representava, pintava e musicava e sugeria quadros aparentemente ‘reais’, onde
se valorizava o sentimento por escola, os afetos consabidos. Quando muito
Garrett (estou a reportar-me à Lírica) fazia alguma análise filológica e
psicológica para distinguir sentimentos que no geral eram confundidos (amor,
paixão, desejo). Creio, porém, que sem as implicações filosóficas e mesmo
místicas de alguns poemas de amor de Sá de Miranda e Camões.
Nesse sentido é que me parece que Bruno
entende que se tornaram – mesmo quando a sensibilidade vinha de mais fundo –
“escritores inúteis, frívolos, efémeros”, na esteira
das fábricas parisienses de novelas,
dramas, viagens, comédias, romances, folhetins, fisiologias, morais ou imorais,
e não sei de que outros produtos; nas fábricas de Balzac, Sue, Sand, Dumas,
Scribe, Arlincourt e Cia
como diz aproveitando uma carta de Herculano a
Garrett ((Bruno), 1984 p. 30) , integrada
num volume que atrás comentei. Com os Mistérios
de Lisboa de Camilo Castelo Branco se fecharia “o género” ((Bruno), 1984 p. 33) . A narrativa
passaria, depois, para a “monografia psicológica”, de que dá exemplo através de
um título que circulou em Angola: as Memórias
de um doido, de Lopes de Mendonça. Aí já deparamos, por influência das “atualidades
francesas” ((Bruno), 1984 p. 35), com um
estilo moderno, irregular, crivado de galicismos, incorreto e humano, significativo anúncio do modo de ser atual da prosa portuguesa.
Dessa
passagem nos ficaram alguns vocábulos, algumas expressões que timidamente
afloram nas líricas do Almanach de
lembranças e afins, quando muito a “eletro-imagem dela”.
A frágil e, de certo modo, falsa postura dos
nossos ultrarromânticos derivava, não só de estarem literariamente agregados a
um mundo que lhes vinha de fora, sem contexto local a sustentá-lo, mas também
de o romantismo lusófono constituir uma “fórmula literária” falha de uma “ideia
orgânica”, reduzida portanto “ao estilo unicamente, era vazia” ((Bruno), 1984 p. 36) .
O melhor que se podia esperar daí só se entrevia numa ou noutra composição deslocada do ambiente geral, em que se podia
notar uma
execução literária imperfeitíssima; e, todavia, ao lê-la, constata-se que se está lidando com um artista de raça, ingénuo e sincero, onde espuma o ideal
– o que Sampaio Bruno disse de Lopes de Mendonça e das Memórias de um doido ((Bruno), 1984 pp. 36-37) .
Em 1899 João
Penha (1839-1919) torna públicos os seus passeios reflexivos e críticos Por montes e vales, com prefácio e notas
próprios, tudo publicado em Lisboa (Penha, 1899)
no ano da morte do naturalista José de Anchieta em Caconda.
João Penha foi, como sabemos, um dos
protagonistas (o protagonista) do Parnasianismo português. Eça
de Queiroz, em 1868, percebeu que ele se identificaria com “a nova escola
francesa” e o aconselhou a comprar o “Parnasse
contemporain, recueil de vers noveaux”, cujo primeiro volume saíra havia
dois anos (AAVV, 1866) . O poeta mais
próximo dele em Angola (que não sei se o leu, nem quando) creio que foi Pedro
Félix Machado. De resto, já referi a proximidade entre ambas
as líricas.
Por
montes e vales deve ter chegado a Angola já no século
XX (como A geração nova, de Bruno) e
residia, quando o li, nas estantes do Arquivo Histórico Nacional. Nele me interessa, como disse
antes, o resumo crítico do século que terminava e a expectativa que haveria em
torno do seu nome, que deve ter sido comentado em Luanda desde a chegada de
Alfredo Troni à capital da colónia (Topa, 2015) .
Foi saudável a sua poesia, tal como a crítica,
pela saturação com a simplicidade afetada, convencional e pobre dominante na
altura. Recuperava bons conselhos retóricos (no fundo: sensatos), por exemplo
aconselhando justeza e necessidade no uso dos adjetivos. Não me admira que se
confesse desta forma (Penha, 1899 p. 20):
O meu sistema é o antigo – em termos hábeis: é o sistema dos escritores que me foram mestres, subordinado aos caprichos do meu temperamento, e à evolução real dos tempos de agora.
Em termos programáticos, não se está muito
longe da pureza dos primeiros românticos – os tempos é que são novos e o rigor
exigido é maior, coletivo novamente, adaptado a uma sociedade que já estava no
princípio da mecanização do seu quotidiano, que permitia a sua rápida
aceleração, pelo que fazia sentido a busca de padrões estáveis e claros para
não se perder o equilíbrio. Desta pureza romântica e ao mesmo tempo realista
emergiram os versos de João de Deus, o da Cartilha
maternal que também marcou Joaquim Dias Cordeiro da Mata em Angola e de quem Antero de Quental guardou as Folhas
soltas junto com as Flores do campo (Fraga, et
al., 1991) .
Justamente é belíssimo o texto que João Penha, parnasiano, escreve sobre João
de Deus, poeta querido dos realistas (dos quais estava próximo) e dos
ultrarromânticos.
Um segundo traço que nos prende aqui é o da
ligação da poesia com a música – uma ligação romântica por excelência, depois
simbolista. João Penha considera que “em toda a composição poética é
indispensável o elemento musical” (Penha, 1899 p. 33) . A musicalidade revelaria, “embora
vagamente” (como sucede no Simbolismo), o conjunto das “ideias” que as palavras
veiculavam separadamente. Reaproximando-se do mundo que espreitámos e vamos ver
ainda, exemplifica surpreendentemente com latinos: “os três grandes poetas
romanos, e sobretudo Horácio, atingiram esta perfeição da forma” (Penha,
1899 p. 34)
– parnasiana nesse momento. Acha que, ao ler a alguém que não saiba latim uma
ode de Horácio, o ouvinte sabe do que ela trata (não diz se experimentou). Liga
diretamente esse legado musical clássico a… Mallarmé (Penha, 1899 pp. 35-36) , personagem que não
esteve no meio de nós, mas que também colaborou no Le Parnasse contemporain. Com tais referências abre, de facto, a
porta do século XX (que virá glorificar Mallarmé), mas olhando ainda por óculos
românticos, daqueles que o Romantismo nunca devia ter desfocado: o que se perde
com a musicalidade “é pensamento” (sendo o pensamento o que “a poesia pode ter
de vulgar pela sua origem” – se pensarmos nos antípodas de Sampaio Bruno, para
quem o pensamento não seria tão prosaico). Mas o que se perde é ganho em
musicalidade e simbolismo, facilitada aquela pela libertação face às regras
coletivas de composição (Penha, 1899 p. 36) , de que o Romantismo (não castilhiano)
se podia ufanar. Entretanto é falando em «Os parnasianos» que retomará, no
livro, a defesa da associação entre música e poesia. Sem dúvida que os
parnasianos cultivaram a musicalidade, como bem se vê por Olavo Bilac. Assegura
Penha que há “factos experimentais” (preocupação científica) para comprovar a
ligação (realmente a ciência tem vindo a confirmá-los). Tais factos foram bem
conhecidos pelos poetas de todos os tempos e são a base da comunicação
artística. Por exemplo: uma jovem triste e doente fala num “tom lúgubre”, com
uma “inflexão lamuriante e chorosa”, ao passo que “um homem feliz e contente”
contagia a voz e o ouvido pela “vibração das notas claras, estridentes e
sonoramente agudas” (Penha, 1899 p. 63) . O “poeta moderno” (afinal: o de todos
os tempos) procura a “harmonia completa” entre o pensamento e a “parte musical”
(aqui se reencontrando, talvez, com Sampaio Bruno).
Outro aspeto curioso neste livro liga-o às
nossas tradições animistas. Ele garante-nos que os vegetais “são animais” e
declara “ao século XX” que os vegetais possuem “vida ativa, consciente, têm
alma e paixões; percebem o mundo exterior como nós mesmos o percebemos, e os
outros animais” (não é exagero: “como” significa ali “tanto quanto” e não “da
mesma maneira”). Essa visão recusa o conceito de inconsciente. Visto serem os
vegetais assim, até eles possuem consciência (Penha, 1899 p. 75) , portanto
o que exatamente não existe é o Inconsciente: tudo tem consciência, em tudo há força, inteligência e sensibilidade.
Sintomático, aliás, que até hoje o conceito
de inconsciente não penetrasse na cultura angolana. A irrealidade que se
atribui a várias das tradições animistas não é manifestação do inconsciente,
mas a manipulação consciente e simbólica de códigos transitivos que os ‘de
fora’ não conhecem e que, em princípio, articulam a sabedoria coletiva,
conservadora, tradicional, ao mundo espiritual humano, animal e vegetal.
Revelando a consciência do que escreveu João Penha nessa passagem, crê-se que o
espírito, ou a pessoa espiritual de um falecido, pode surgir sob qualquer
forma, assomando ao corpo de um animal (ou, mesmo, de um vegetal) para passar
uma mensagem imprescindível. As fábulas trazem essa reminiscência, não
propriamente da reencarnação, mas da consciência dos animais, que por o serem e
por serem falantes suportariam, em momentos especiais, a incorporação de uma
linguagem que os humanos entendessem, podiam ser usados por ela e para isso. Da
perceção das diferenças de grau de consciência deriva que, muitas vezes, a
mensagem passada por um animal (ou vegetal) seja um canto muito breve, quase um
provérbio ou adivinha, um verso que, descodificado, revela a trama oculta de um
crime de morte. Hoje em dia, a neurobiologia (Damásio, 2011) dá-nos uma visão semelhante à de Penha,
admitindo que há uma diferença de grau entre a consciência dos diversos
organismos vivos. Uma consciência humana é muito mais complexa e desenvolvida e
abrangente que a inteligência animal ou vegetal, implicando três níveis de
tomada de consciência de si, resposta ao meio e autorregulação – o último dos
quais, o autobiográfico (não se tome a palavra no sentido comum), só nos seres
humanos existiria. De certo modo, uma tal visão comparecia no nosso imaginário
também durante o século XIX.
Ultrarromantismo contemporâneo
africano e português
Apesar da circulação destes livros, os poetas angolanos (ou
residentes), os significativos publicando no último terço do século passado,
seguiam de par com a evolução do ultrarromantismo lusitano ou brasileiro que,
agregando esta ou aquela caraterística
técnica das novas escolas, se mantinha paradigmático para muitos. Aqui
chegados, depois de tanto falarmos em ‘ultrarromantismo’ nos vários aspetos em
que foi colhido e praticado, estamos em condições e na hora de melhor o
compreendermos.
A designação «ultrarromantismo» terá tido origem em Teófilo Braga,
segundo J. Prado Coelho, para designar uma vertente do romantismo português
mais ligada ao medievalismo (o que obrigava a incluir uma fase da vida poética
de Gonçalves Dias (Coelho, 1979) ). Sublinho: terá.
Entretanto, os poetas que seria então mais justo chamar de
‘medievistas’ eram, na sua maioria, os mesmos e da mesma geração que foi
publicando, sobretudo ao longo de duas décadas (1850-1870), uma lírica marcada
por outros aspetos também. Ao mesmo tempo que eles se foi afirmando no Brasil
uma geração idêntica na poesia, no entanto não medievista e, muitas vezes (ou seja: em muitos poemas), não revelando preocupações de localização coletiva, identitária, mas incidindo nas vivências pessoais atormentadas.
Para compreendermos o que fez essa lírica, simultaneamente o que fez a
nossa (angolense), convém percebermos um tanto da sua ‘psicologia
artística’. Estes poetas, quando começaram a escrever, o romantismo
português já se tinha realizado e o brasileiro também (de resto, a seguir ao
alemão, ao britânico, ao francês...). Já tinham os seus ícones e um perfil
definido. Esse o perigo: passou-se a seguir e perseguir um perfil, um ícone,
uma prática anterior.
Como, no caso português e brasileiro, o romantismo foi muito marcado pelo neoclassicismo durante a formação literária dos seus autores, alheia de resto às tradições populares. Comparado com os primórdios do romantismo alemão (que foi, passe o paradoxo, ultrarromântico antes de romântico), tanto quanto com a evolução da literatura inglesa, o nosso (lusógrafo) resultado final
foi de imitação, moderação, musicalidade, e harmonização entre a herança letrada prévia e os novos modelos importados.
Conforme se foram conhecendo melhor outros romantismos, em particular o
alemão e o inglês, ficou evidente a diferença. Os ultrarromânticos lusógrafos encontravam-se numa excêntrica situação: por um lado haviam automatizado as principais soluções
rítmicas, rímicas e estróficas do romantismo em português; por outro lado, os
resultados finais dos mestres românticos lusófonos eram diferentes do
‘verdadeiro’ Romantismo, não surtiam os mesmos efeitos nem se baseavam nas mesmas tradições. Era um romantismo traduzido...
O primeiro ‘lado’ levava a que se tomassem por cânones soluções por
vezes até pessoais e não caraterísticas do movimento romântico europeu; o
segundo levava a forçar o efeito de romantismo imitando mais o inglês, o
alemão - sobretudo esses dois, visto que o francês também foi muito moderado e neoclássico no começo, como se vê por Chateaubriand.
Daí que surja uma literatura 'ultra' (como a de Hugo em França), forçando o subjetivismo, os ambientes deprimentes e sombrios, ou temíveis, assustadores, as emoções avassaladoras, as obsessões incontroláveis, a par da delicada sensibilidade dos noturnos de John Field e de Chopin, do misticismo íntimo, vago e indisciplinado, enfim tudo sombras fantasmáticas dos cenários góticos ingleses. Pelo menos no papel, era isso que se procurava representar e sugerir. Só que o romantismo português não resultara de uma evolução própria da cultura local, tanto quanto o neoclassicismo. Era preciso religar o movimento à cultura popular, o que tentou Garrett por exemplo, enquanto outros se preocuparam bem menos com isso. O retomar das heranças medievais e populares estava, por consequência, frouxo no romantismo português se comparado com o inglês por exemplo. Daí também que fosse necessário o 'medievismo' ou 'medievalismo', ou seja, trazer à literatura as tradições antigas que, na Inglaterra e na Alemanha, haviam sido uma das bases da 'revolução literária'. V. Hugo fez isso com O corcunda de Notre-Dame - como ficou sendo conhecida essa obra. O grupo de O trovador, de João de Lemos e outros, procurava realizar a mesma compensação inspirando-se na lírica tradicional, oral, popular. O 'medievalismo' era uma das vertentes dessa busca.
Daí que surja uma literatura 'ultra' (como a de Hugo em França), forçando o subjetivismo, os ambientes deprimentes e sombrios, ou temíveis, assustadores, as emoções avassaladoras, as obsessões incontroláveis, a par da delicada sensibilidade dos noturnos de John Field e de Chopin, do misticismo íntimo, vago e indisciplinado, enfim tudo sombras fantasmáticas dos cenários góticos ingleses. Pelo menos no papel, era isso que se procurava representar e sugerir. Só que o romantismo português não resultara de uma evolução própria da cultura local, tanto quanto o neoclassicismo. Era preciso religar o movimento à cultura popular, o que tentou Garrett por exemplo, enquanto outros se preocuparam bem menos com isso. O retomar das heranças medievais e populares estava, por consequência, frouxo no romantismo português se comparado com o inglês por exemplo. Daí também que fosse necessário o 'medievismo' ou 'medievalismo', ou seja, trazer à literatura as tradições antigas que, na Inglaterra e na Alemanha, haviam sido uma das bases da 'revolução literária'. V. Hugo fez isso com O corcunda de Notre-Dame - como ficou sendo conhecida essa obra. O grupo de O trovador, de João de Lemos e outros, procurava realizar a mesma compensação inspirando-se na lírica tradicional, oral, popular. O 'medievalismo' era uma das vertentes dessa busca.
Quando as nossas atitudes partem de imitações automatizadas, pode
acontecer que exageremos em aspetos meramente exteriores. Assim o declamador
que ainda não encontrou voz própria exagera os ‘tiques’ do seu modelo: ou
desata a gritar a torto e a direito, ou a falar muito baixo como se fosse
desmaiar.
Era esta mistura de epigonismo e de exagero forçado, tendo por base o
esvaziamento que provoca a imitação de cânones e não da vida, que definia tudo
quanto chamámos, por esse motivo, ultrarromantismo em Portugal e no Brasil. A
expressão resulta, afinal, adequada, embora o não fosse de início.
No Brasil, o ultrarromantismo (e a imitação) foi mais intensamente
vivido no dia-a-dia. Basta observar as datas de nascimento e morte, aliás a
biografia de alguns dos seus principais autores: Álvares de Azevedo
(1831-1852), Junqueira Freire (1832-1855), Fagundes Varela (1841-1875). A
diferença reside no byronismo da segunda geração romântica brasileira, que se
extremou tanto na vida quanto na poesia. Nesta, porém, o subjetivismo, a
autorreferencialidade obsessiva, a hipersensibilidade, o culto da emoção
desbragada e um ou outro toque de terrífico, ou de fatal, estruturados sobre muitas exclamações retóricas e tiques de oratória, resultavam em efeitos
estéticos semelhantes aos do ultrarromantismo lusitano. Isso mesmo terão
percebido os angolanos ou angolenses da época, desde logo a começar por José da
Silva Maia Ferreira, o mais precoce deles todos e um dos primeiros
ultrarromânticos lusófonos a publicar.
Já a posição dos nossos autores do último quartel do século, na cronologia
literária lusófona, foi um pouco tardia. É, porém, idêntica à do “mancebo e
trovador” Campos Oliveira, o fundador da Revista africana. Ele deve
ter nascido em 17.4.1847, na Ilha de Moçambique, e residiu em Goa e Margão
antes de regressar à sua terra natal. Foi responsável por um Almanach
popular (Margão, 1864-1866) e colaborador (em verso e prosa) nos
jornais Ultramar e Ilustração goana. Publicou
diversamente no Novo almanach de lembranças luso-brasileiro, entre
1872 e 1886, portanto em quase total incidência com os nossos colaboradores,
acompanhando boa parte da fase mais ativa, carismática e interessante do ultrarromantismo
angolano.
Com o mesmo tipo de incidência formal, mas mais para diante,
estabelecem também relações os nossos versos ultrarromânticos com os de Caetano
da Costa Alegre. Ele mantinha amizades na imprensa lisboeta realista e
republicana, mas também chegou a passear pelo salão de Tomás Ribeiro. A sombra
de salões como esse por Tomás Ribeiro animado, e relatado por sua filha Gonta,
que os prolongou, receberia com simpatia os Ecos dispersos do
então candidato a advogado o estudante Geraldo Bessa Victor, publicados em
1941, a par dos primeiros sonetos de Florbela Espanca…
Não estariam, pois, nem órfãos nem muito desfasados os vereadores locais do
verso, mas apenas mal colocados em relação ao que viriam a ser os autores
canónicos do fim do século XIX na Europa e em Portugal, poetas alguns dos quais
começaram (incluindo Antero de Quental e Guerra Junqueiro) por escrever e
publicar composições ultrarromânticas, como podemos ver na sua bibliografia. A
conjugação de classicismo e de lirismo romântico neles encontrada é comum à dos
ultrarromânticos portugueses, seguidores de António Feliciano de Castilho –
divergindo-se na estabilização das formas. De resto o poeta invisual iniciou
carreira literária escrevendo livros tipicamente neoclássicos, como vimos, e
entrou já tarde no areópago romântico.
Fora da Europa, no mundo
lusófono tropical muitos dos motivos aflorados pelos nossos versejadores
(Napoleão, as guerras do nacionalismo romântico, dramas pessoais e familiares),
bem como o “excesso das antíteses”, “os tropos hiperbólicos” e a “retórica
altaneira a serviço de temas sociais e políticos” (tanto quanto de temas fúteis
do quotidiano) encontravam paralelo, sobretudo, no condoreirismo brasileiro, para o
qual as citações foram criadas. E também aos colaboradores
angolenses podemos apontar os traços que, para a poesia de Castro Alves, aponta
José Paulo Paes:
(Garrido, 1871 p. 57) .
É finalmente comum uma tímida antecipação do Parnasianismo – no caso dos nossos
colaboradores uma aproximação sobretudo técnica (a tendência para regularizar
as formas poéticas e recuperar o soneto), se excetuarmos Pedro Félix Machado, que foi mesmo
parnasiano; no caso de Castro Alves pela visualidade carnal das imagens.
a fogosidade juvenil, responsável pelo calor humano de seus versos tanto quanto pelo verbalismo irrefreável que repetidamente os compromete, se fazia acompanhar de uma instintiva sabedoria artesanal,mais ágil no brasileiro que na maioria dos angolenses e residentes, mas equiparando-se à de Cordeiro da Mata. As referências literárias europeias eram, no geral, idênticas: “Byron, Hugo, Lamartine, Murger, Musset, Espronceda e outros” – para além dos românticos portugueses e brasileiros anteriores. Idênticas ainda às dos portugueses, como se sabe
Relativamente à referência portuguesa, ou luso-brasileira, que foi
canónica para os colaboradores do Almanach, os nossos líricos, angolenses e
residentes, apenas refinavam, talvez animados por um subterrâneo barroco, os
processos gráficos e o sentido divinatório e adivinhatório vulgarizado pelo
culto insistente, e por vezes poético, dos logogrifos e das charadas. Através
disso, apesar de terem reduzido a variedade de espécies líricas praticadas (o que
já não aconteceu com Castro Alves), ao mesmo tempo, timidamente, no interior
delas iam desenvolvendo uma engenhosa personalização das estruturas
patrimoniais, de que dei conta no já citado primeiro volume desta série.
*
Resumido o ambiente literário lusógrafo mais próximo há que, ainda com
brevidade, completar a notícia bibliográfica acerca do Ultrarromantismo, que
nos ajudará a situar os nossos autores em relação a essa escola portuguesa,
permitindo comparar datas e factos para equiparar uma determinada fase da
escola do Visconde e a prática investigada.
O ultrarromantismo português tem os seus dois momentos principais na
publicação d’ O trovador, cujo
primeiro número sai em 1844, e na publicação de O novo trovador, cujo primeiro número sai em 1851, precisamente
quando se inicia a edição do Almanach,
e um ou dois anos depois de vir a lume em Luanda o livro a dois títulos
inaugural de José da Silva Maia Ferreira. Repare-se que em 1841 saíra o
primeiro número da Revista universal lisbonense,
de António Feliciano de Castilho, que muito contribuiu para a constituição de
uma escola poética em torno do mestre cego.
Porém, como lembra Fidelino de Figueiredo, numa História da Litteratura Romantica distanciada por aviso prévio,
depressa “os motivos, todos extrahidos dum restricto círculo de emoções,
esgotam-se e começam as variações dos temas exhaustos. Os sentimentos
familiares, os acontecimentos quotidianos, anniversarios, baptisados,
casamentos, tornaram-se o objeto
dessa poesia que assim perdia toda a inspiração e se reduzia a um comentario
métrico da vida dos poetas, muito commum e destituído de interesse”. Fidelino
de Figueiredo acrescenta ainda, na mesma obra, que, “com Soares de Passos, o
lyrismo romântico gastou os seus últimos recursos, porque a seguir à morte
daquelle (1860) rapidamente caminhou na decadência”.
O ultrarromantismo dos poetas por nós estudados, a
“poesia-ramos-de-flores-para-os-amigos”, definida lapidarmente pela função
social e para o caso do lírico mundano que foi Maia Ferreira, peca
geneticamente pela pobreza estilística e temática típica dos últimos românticos
portugueses e brasileiros do seu tempo, exceção talvez para o condoreiro Castro
Alves, mais ágil na composição das suas pequenas narrativas em verso, tão comuns
na lírica do tempo quanto os noivados do sepulcro. Se o lustro da escola do
Visconde começara a reduzir o lastro cerca de 1860 em Portugal, e se as obras
que representam essa demorada agonia vão sendo publicadas durante todo o resto
do século (e principalmente nos anos 60 e 70), ao começarem (cerca de 1878) a
perfilhar os cânones ultrarromânticos os nossos poetas não estavam muito desfasados,
tendo havido apenas tempo para lerem e adotarem como modelos os livros que,
entretanto, foram sendo postos a público na clientelizada praça de escravos que
é a das sociedades literárias.
Recorde-se que o nosso corpus
lírico (desse tempo) é largamente constituído por colaborações no Almanach de lembranças, a maior via de escape, na colónia, para a
ausência ou a irregularidade dos meios de publicação. Uma das razões
contextuais para a escolha feita pelos colaboradores era a própria ligação do Almanach ao Ultrarromantismo. A leitura
de Eça de Queiroz, por exemplo, não deixou de se fazer, porque os seus livros
circulavam em Luanda. Em Luanda ainda li, na Biblioteca do
Governo Provincial, os “estudos críticos” (Estética
Naturalista) de Júlio Lourenço Pinto, já referidos – um livro saído em
1884, portanto seis anos após a geração começar a revelar-se. Mas a escolha
terá recaído num distanciamento face às Causas
da decadência dos povos peninsulares (que são de 1871), também porque os
realistas não seguiram o percurso de Fradique Mendes imaginado na Nação crioula de José Eduardo Agualusa,
nem deixaram (já o vimos) de manifestar preconceitos acentuados em relação a
africanos e brasileiros. Ao passo que entre os ultrarromânticos havia figuras
que comandavam barcos de carreiras do atlântico lusófono, detendo boas relações
nas colónias e no Brasil; havia o vice-almirante Augusto de Castilho, que foi
Governador-Geral de Moçambique, comandante de uma divisão naval no Rio de
Janeiro e Ministro da Marinha e Ultramar; e outras personagens que se fardavam
de funcionários coloniais e por algum tempo conviviam com o escol urbano da Angola
do século XIX.
Vejamos com mais pormenor a introdução do Ultrarromantismo “de terceira
geração” no território colonial através de dois casos típicos, para
confirmarmos isso. A divulgação do “castilhismo” em Angola processou-se
lentamente ao longo da década de 1860 – ou seja, enquanto
se difundia no próprio Portugal. Para ela contribuiu decisivamente a presença
desses dois poetas: Ernesto Marecos e João Cândido Furtado de Mendonça d'Antas.
Veja a segunda secção do Capítulo: Dois ultrarromânticos portugueses em Angola.
[1] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 7 (11-02-1865) 31. A nomeação para o cargo está
oficializada num Decreto de 21-02-1862.
[2] Repare-se que esta imagem antecipa a da semiosfera de Lotman e a
própria Estética da Receção.
[3] O próprio me disse o nome desse antepassado, por correio eletrónico, e
de facto coincide com uma das assinaturas desse importante inventário.
[4] Não tenho qualquer outra referência, mais exata, ao documento.
Encontrei-o, solto, entre as pastas de Inventários dos Órfãos do Tribunal de
Benguela.
[5] A partir de 1861.
[6] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 4 (21-01-1865) 18. A 4 de Fevereiro ainda assina
uns autos (LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 7 (11-02-1865) 32-33).
[7] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 21 (20-05-1865) 92.
[8] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 46 (18-11-1899).
[9] N. 1828 (São Faustino, Peso da Régua) e f. 1900, político e alto
quadro do Reino português. Iniciara, em 1858, a sua carreira política ao ser
eleito deputado por Chaves, exercendo em 1859 esse mandato. Escreveu um romance
histórico (O castelo de Monsanto) e
um poema épico (Os contos do fim do
século) de elogio aos homens do séc. XIX. Era grande amigo de Alexandre
Herculano.
[10] Adusto significa abrasado, queimado, tostado (em função do calor) e aplicava-se também à cor da pele.
gosto de site porque ajuda-me bastante nas minhas pesquisa, sobre o teatro angolano. Afonso Fernandes
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