Neoclássicos, arcádicos...


Os cânones literários, as escolas, movimentos, períodos e paradigmas artísticos vão-se sucedendo de tal forma que, mesmo quando se chocam dois movimentos antagónicos, ou duas gerações opostas, eles interagem, disputam o mercado leitor argumentando uns contra os outros, ou defendendo-se uns dos outros. O leitor contemporâneo dos acontecimentos tem acesso a uma bibliografia onde se misturam ‘novos’ e ‘velhos’ arautos e, na memória global desse tempo, guarda a visão de conjunto na qual estavam como partes os diversos oponentes. Assim sendo, misturam-se as respetivas práticas poéticas na mente de muitos leitores, onde as artes mais antigas e mais modernas se fundem e refundam e, mesmo sem querer, alteram-se em função do diálogo ou debate inevitável entre elas. Há, portanto, cumplicidades e zonas de indeterminação que evitam o laqueamento das práticas artísticas.

O ambiente literário lusógrafo da primeira metade do século XIX não fugia à regra. Nele coabitavam, com a bibliografia literária romântica (ainda muito incompleta), uma grande panóplia de autores clássicos, neoclássicos, iluministas, racionalistas, enciclopedistas, outros de transição, que davam aos leitores contemporâneos uma visão da Literatura e do Romantismo (mesmo que só por envolvência) diferente da que temos hoje. Além disso, o próprio romantismo inicial, nas palavras de Antonio Candido, constituía, “em parte, desenvolvimento de premissas líricas do século XVIII” (Candido, 2000 p. 42).

Mesmo já entrados numa segunda e numa terceira gerações românticas, os escritores mantinham uma apreciação estética profícua do legado clássico. Bulhão Pato, por exemplo, via na Grécia antiga uma fonte completa de “todos os cantos, todas as harmonias, todos os sons vagos e fugitivos: o poema épico, a teogonia, a ode, a tragédia, a comédia, a canção erótica, o idílio”. Muito além, portanto, do que viu o racionalismo – mas partilhando com ele a veneração pela “eloquência”, resumida principalmente “na palavra de Demóstenes” (Pato, 1877 p. 67). Em seguida exprime a sua admiração pelos autores romanos (“as maravilhas de Virgílio, os primores de Horácio, a veemência de Juvenal e Aulo Pércio, a finura mordente de Marcial, os arrojos do desventurado Lucano, e as suavíssimas melodias de Tíbulo”. Repare-se na adjetivação, muito apropriada e muito ao estilo neoclássico de António Pereira, e, simultaneamente, revelando o que, de cada poeta, Bulhão Pato aproveitava. Ultrarromântico português, que veio a conhecer Maia Ferreira, ele partilhava com o racionalismo, não só algumas destas leituras, também “as grandes glórias do foro na boca de Cícero.” Passando à França, “no catálogo dos seus imortais poetas conta desde Corneille até Victor Hugo”, realçando ainda Mirabeau no que diz respeito à oratória (Pato, 1877 p. 68) – Mirabeau que Chateaubriand não valorizava tanto assim e que era anunciado nos jornais do Rio de Janeiro e do Recife. É sintomático esse percurso, indo de clássicos e neoclássicos até românticos como Hugo, cuja aproximação à linguagem da conversa (e não só da elegante) foi partilhada pelo homem das ameijoas.

Estes dados e alguns mais caucionam, em grande parte, Fidelino de Figueiredo (referindo-se a Portugal): “a poesia do primeiro quartel [do séc. XIX] era uma perduração do espírito arcádico” (Figueiredo, 1923 p. 7). E a do segundo quartel apanhou qualquer coisa disso, sendo que os dois últimos incorporavam já militantes do parnasianismo e do Realismo, que recuperaram muito do rigor formal clássico e neoclássico, bem como desmontaram muitos dos mitos da poética romântica.

Um ponto de comparação para a nossa pequena sociedade literária do meio e fim de novecentos, para além do estudado mercado de Recife-Olinda, está no Rio Grande do Sul. Explico porquê: em primeiro lugar porque se tratava de outra pequena comunidade literária a ganhar, no segundo quartel do século XIX, um ritmo de sistema, a tomar forma, a criar-se como comunidade de criação, leitura, receção, reprodução, personalização das obras ‘de fora’; em segundo lugar pelas caraterísticas idênticas apresentadas, que avalio pelas secções do seu primeiro periódico literário significativo (coincidentes, em grande parte, com a procura do mercado em Recife-Olinda e as fontes em Luanda-Benguela). O periódico chamava-se O Guaíba (nome de um lago ou rio – polémica a designação – que inicia no delta do Jacuí e desagua na Laguna dos Patos, em torno Porto Alegre). Para Guilhermino César (César, 1971), citado por Mauro Nicola Póvoas (Póvoas, 2017 p. 81), ele marca o instante no qual a literatura riograndense começa a “tomar forma definida”. O periódico inicia-se a 3-8-1856. Justamente nesse ano Maia Ferreira estava nos EUA, tivera que deixas as ‘florinhas’ de Camões e trabalhava ainda para os Figanière, escrevia uma carta ao comerciante e negreiro Avelar[1] oferecendo os seus serviços, deslocava-se a Havana (onde ia regularmente, para negócios vários) e visitava Lisboa, onde recolheu num álbum os citados testemunhos dos amigos escritores e políticos da capital portuguesa. O seu livro já estava publicado e as relações com o Brasil mantidas em ‘lume brando’, como se diz em Portugal. Mas O Guaíba compara-se com o que, na mesma época, estava a suceder em Angola. Entre nós iniciava-se a publicação do primeiro periódico literário, A Aurora, animado por Ernesto Marecos e amigos do setor colonial (F. Teixeira da Silva, Alexandre Balduíno, Alfredo Sarmento, creio que todos do segmento colonial urbano). Ernesto Frederico Pereira Marecos era um ultrarromântico português e trabalhou na Índia e em Angola como alto funcionário colonial (adiante falaremos nele com mais detalhe). Trouxe-nos legou uma versão lírica em verso da lenda lunda que intitulou Juca, a mutambola, aproximando-a de «O Noivado do Sepulcro» de Soares de Passos. Esse periódico, A Aurora, caracterizava-se como recreativo e literário – uma caracterização muito próxima de O Guaíba do Rio Grande do Sul e de muitos outros periódicos da época espalhados pelo mundo que se globalizava e acelerava. Foi o primeiro, em Angola, com tais caraterísticas (antes, imediatamente antes, havia surgido apenas o Boletim oficial, onde por vezes se colocavam pequenas peças literárias e de jornalismo cultural). Os versos publicados em O Guaíba recorriam a temáticas próximas dos publicados em Angola na segunda metado do século: um “eu-lírico” em trânsito entre “o apaixonar-se e o desiludir-se, entre a saudade do tempo de criança e o desejo de morrer, entre o cismar solitário e o apego nacionalista”. A única diferença é que o “apego nacionalista”, entre nós, só se dava com os colonos e era relativo a Portugal, ao mesmo tempo em que os filhos da terra esboçavam cautelosamente o seu apego regionalista, ou protonacionalista (mesmo assim, não todos). Segundo Mauro Póvoas, “o grupo de poetas d’O Guaíba cultivava, no início da segunda metade do século, no Rio Grande do Sul, a beleza, a natureza, o sentimentalismo e a melancolia: em suma, eram casimirianos antes mesmo do lançamento do primeiro livro de Casimiro de Abreu” (Póvoas, 2017 p. 95). Nós também, antes e depois da publicação do popular romântico brasileiro. Mas O Guaíba, segundo Guilhermino César, não tinha acentuado caráter regionalista, nisso também sendo afim da literatura feita na colónia de Angola. As suas colunas fixas incluíam secções como «Romances e novelas», “Traduções”, «Álbum poético» e uma «Revista» de crónica social, em geral jocosa, incluindo ainda “enigmas, charadas, logogrifos, poemas, anedotas e ilustrações” e algumas biografias, entre as quais as de “rio-grandenses ilustres”  (Póvoas, 2017 p. 91). Era mais ou menos este o panorama do Almanach de lembranças e o da colaboração angolense (ou colonial e migrante) no Almanach ao longo do século XIX, bem como o do conjunto de periódicos significativos para a formação do sistema literário angolense.

Mas o que havia antes disso? Os poetas do periódico riograndense ultrapassavam, gradativamente, com o seu romantismo sentimentalista e universalista, as anteriores produções, principalmente femininas. Ora, essas primeiras produções estavam muito próximas ainda do arcadismo, ao contrário dos nossos dois livros de líricas, o de Maia Ferreira e o de A. de Carpo. Os nossos eram tipicamente românticos, comparáveis ao que depois apareceu em O Guaíba. A “primeira obra literária impressa por um autor sul-rio-grandense” veio a terreiro em 1834 (relembro: ano da chegada de Maia Ferreira ao Rio de Janeiro). A obra chamava-se Poesias oferecidas as senhoras rio-grandenses e foi subscrita por Delfina Benigna da Cunha (Póvoas, 2017 p. 76). O título é o sub-título das Espontaneidades de Maia Ferreira (com mudança de lugar: “às senhoras africanas”) e a dedicatória do livro de João d’Aboim que o inspirou, feita às senhoras brasileiras. Era comum na época essa dedicação, mas os poemas escritos por Maia Ferreira e João d’Aboim, como logo depois por Adélia Fonseca, tinham cunho tipicamente ultrarromântico. Porém, como no Rio Grande do Sul, isso não significava distanciamento total em face do arcadismo, mas sim que esse passado imediato já havia sido inteiramente assimilado, logo digerido. Como um alimento que, depois de o organismo o ingerir e digerir, só se reconhece por alguns efeitos mediatos, assim atuava ainda a receita neoclássica dentro do ultrarromantismo angolense e lusófono. O arcadismo tinha vindo, em Luanda e Lisboa também, até pelo menos essas duas décadas, de 1830 a 1850 grosso modo. Portanto, veio esmorecendo e publicando ‘sumas’ líricas ao mesmo tempo em que João Mínimo se transformava em Almeida Garrett e Maia Ferreira no primeiro romântico angolense. Daí que até mesmo em Maia Ferreira, um poeta cuja linguagem é tipicamente huguiana (pela aproximação à língua real, quotidiana), tropecemos, de quando em quando, com inversões sintáticas típicas dos neoclássicos e outros traços que deles vieram quase até final do século XIX. O que ainda acontecia com os primeiros livros de líricas românticas publicados em Recife-Olinda, como iremos ver.

Por esta razão faz todo o sentido, não só estudarmos a presença dos clássicos nos mercados que nos abasteciam, mas também a dos neoclássicos e arcádicos.

A Arcádia Lusitana foi criada em 1756 e teve, sem dúvida, um papel importante nas culturas letradas de Portugal e do Brasil. A portuguesa, a brasileira e todas as outras derivam da Arcádia Romana. Foi esta fundada em 1690 pela rainha Cristina da Suécia, que abdicara e seguira para Roma rodeando-se de artistas e de intelectuais, tornando-se a mais famosa e consequente Mecenas da época.

Para Fidelino de Figueiredo, com a Arcádia se inicia em Portugal uma crítica literária “séria”, sistemática, estando consignados nos seus estatutos dois objetivos: “fazer crítica e fazer poesia” (Figueiredo, 1923 p. 8). Com tal espírito surgiram as mais diversas Academias, nem todas tão voltadas para a poesia, mas outras para a História, para as Ciências, etc. Através das Academias, das Universidades e de alguns nomes integrados no romantismo, as reflexões dos ‘académicos’ e ‘arcádicos’ entraram pelo século XIX com presença mais atuante do que imagina hoje o leitor comum.

A disseminação de uma poética neo-clássica no meio recifense foi de peso, envolvida (se não sustentada) pelo iluminismo e pelo Racionalismo representados por Verney, por exemplo, bem como pelo ensino católico. Comprovam-na muitos títulos em circulação naquele mercado. Dentro do propósito normativo e descritivo de uma arte poética, ofereciam-se os “Principes de Littérature” de Batteux, o “Curso de Literatura” de La Harpe e procurava-se a versificação portuguesa de Miguel do Couto Guerreiro, provavelmente a de 1784!

Revisitemos alguns desses autores e respetiva obra.

Jean-François de La Harpe (1739-1803), segundo Álvaro Manuel Machado, foi discípulo de Rousseau e pré-romântico (Machado, 1979: 35). A sua biografia começou por registar alguma irreverência quando jovem, chegando a ser preso por sátiras que escreveu (Académie française, sn). Aderente apaixonado, no princípio, da Revolução, veio a retratar-se depois de preso no Luxemburgo. Estes aspetos pessoais e políticos terão decerto contribuído para divulgar o seu nome entre os estudantes do Curso Jurídico.

A consequência literária das suas ideias talvez apresente, no entanto, maior solidez. O título mais famoso foi, nesse campo, o Lycée ou cours de littérature (em 18 volumes a edição original, de 1799; uma edição em 14 volumes era anunciada no Recife em 1840). De entre a criação literária circulavam também Heroïdes e a tragédia Warwick. La Harpe veio a traduzir, ainda e polemicamente, Os lusíadas para francês, o que sem dúvida aproximava o seu nome do espaço lusógrafo. Mas ainda não deparei com nenhuma referência direta a ele, nem aos livros que subscreveu, nas fontes angolanas. Os anúncios nos periódicos do Recife e do Rio de Janeiro, bem como a sua presença nos círculos literários de Lisboa e do Porto, levam-me a crer que tivesse também circulado por Angola.

Apesar das polémicas em torno da sua candidatura, La Harpe entrou para a Academia francesa em 1776, tendo sido laureado oito vezes por essa prestigiada instituição. Foi discípulo e admirador de Voltaire (1694-1778), uma das principais referências da bibliografia estudada e sobre a qual escreveu, sob anonimato, o Éloge de Voltaire em 1779. Havia feito, em 1771, o elogio de Fénelon (Éloge de Fénelon), outro autor bastante frequente nos anúncios do Recife e na bibliografia brasileira da época estudada, bem como nas bibliotecas luandenses (ao menos as Obras espirituais, em edição de 1751).

La Harpe foi considerado por Hennequin o fundador, em França, da crítica literária “como género separado na segunda metade do século XVIII”. Sainte-Beuve elogia-o também, considerando-o um excelente iniciador: “ce n'est pas un critique curieux et studieusement investigateur que La Harpe, c'est un professeur pur, lucide, animé... Il était excellent pour donner aux esprits une première et générale teinture” (Académie française, sn).

O discurso que leu perante a Academia, no dia em que tomou posse da cadeira respetiva, começava por uma frase sintomática. Sintoma de como o fim do século XVIII estava já a preparar o romantismo, assim se mostra:  le talent qui distingue les hommes, le génie qui s’élève au-dessus du talent, la vertu enfin, si supérieure à l’un et à l’autre. Portanto imagina-se uma gradação que tem na base o talento, superior ao talento o génio, e, superior a ambos, a virtude. Sabemos o quanto o romantismo exaltou o génio e traçou para o conceito perfis míticos. Mas o génio já era valorizado por La Harpe desde pelo menos 20 de junho de 1776. E claro que não somente por ele. Só que se colocava ainda acima do génio esse outro conceito, o da virtude – que degenerou depois em virtuosismo para uns e egotismo para outros (os que do conceito retiravam a parte racional). O romantismo o que fez foi retirar o tampão e libertar o génio. Mas não o fez de repente, como estamos vendo.

A virtude era exemplificada pelos mestres – os que morreram e os modelos contemporâneos, mesmo que rivais. Ela exercia-se pela razão e pela razão partilhada com os melhores. Essa razão crítica e artística procurava conjugar o verdadeiro e o belo, o racional e o estético. Em torno da conjugação desfilavam perfis magistrais no discurso explícito: Virgílio, Racine (1639-1699), Tácito (ferindo a alma dos tiranos), Montesquieu (1689-1755), Fénelon (embelezando a virtude). Assim preparado, o candidato a escritor poderia élever l’ame sans exalter la tête, polir les mœurs sans affoiblir le caractère, adoucir les passions et affermir les principes, nourrir l’habitude du travail, exercer la pensée et le goût. Aqui, sim, temos apenas o homem neoclássico…

Este homem-poeta precisará, porém, de retiro para recolher a inspiração, para satisfazer a necessidade de criar, que é um dom da sua natureza. O recolhimento criativo tornar-se-á num mito romântico algumas décadas mais tarde, tanto quanto o inatismo do génio. Em contrapartida, o genial escritor precisará também de submeter-se ao juízo dos outros para alcançar a glória. Para que os juízes o louvem, será obrigado a polir a obra até à perfeição – nesse momento já sem entusiasmo, com trabalho humilde e atento, por isso mais penoso. Não só: o criativo, por esse “comércio com as gentes do mundo”, vai tornar mais elegante, mais convivente, mais conveniente e mais ligeira a sua descoberta, a sua obra, o fruto principal da inspiração. Do equilíbrio entre inspiração e trabalho, que está pressuposto, entre talento, génio e exercício da virtude, resultará então a obra que a posteridade sempre há-de reconhecer – uma junção feliz de bom senso (ou razão cultivada) e bom gosto (ou razão animada).

Como é fácil de ver – e em mais ocasiões encontraremos esta recorrência – o equilíbrio neoclássico nem sempre fechava o criativo sob a camisa-de-forças das regras e modelos. Antes procurava equilibrar, embora sempre dominado pela razão e pelo trabalho, mas equilibrar as duas componentes básicas da criatividade que o romântico tenderá a separar, opondo-as muitas vezes. Nesta perspetiva, a visão neoclássica da poesia era mais completa que a romântica, integrava a romântica. Por isso também os poetas do romantismo podiam projetar nela uma parte da sua identificação, aquela que diz respeito ao génio e à inspiração – libertando-os, porém, das grades da racionalidade.

La Harpe representa, ainda segundo Hennequin, o “género de crítica literária” que foi o “único cultivado no século XVIII e no princípio do século XIX” (e que merecia tal nome, de crítica literária). Pouco depois ele abre exceções, por exemplo a Villemain, mas o seu objetivo era caraterizar essa crítica de bom senso e de bom gosto que trabalhava com critérios pré-estabelecidos, é certo, porém razoáveis e estilizados o suficiente para se globalizarem com facilidade apanhando os diversos carismas locais. A história da literatura brasileira dá-nos sinal, precisamente, dessa facilidade e do que rareava com ela, como veremos adiante, num período que foi significativo para nós pela presença dos inconfidentes em Angola. A Marília de Tomás António Gonzaga, evoluindo “com os seus ademanes caprichosos” (Candido, 2000 p. 42), ilustra bem, neste aspeto, a poética neoclássica por assim dizer tropical e, por isso mesmo, foi tão lida no começo do romantismo em língua portuguesa. Note-se que Antonio Candido chega a confessar “algo forçado chamar neoclássico a tal período” (Candido, 2000 p. 42).


A normalização do gosto e do senso expandia-se através de discursos geralmente claros e didáticos, de que é exemplo o prefácio de Francisco José Freire (Cândido Lusitano) à sua tradução da “Arte poética” de Horácio. Completando-as havia obras do tipo Dicionário poético, neste ambiente bibliográfico representado pelo mesmo Cândido Lusitano – e um dos exemplares anunciados era talvez da edição de Lisboa de 1820. Não vi referências, ainda, à sua obra nas fontes angolanas, mas não duvido da sua circulação por Angola, pois há coincidências sugestivas, que passo a considerar.

No «Discurso preliminar» à obra dá o autor conselhos úteis, de que podemos destacar este elogio (Correia, 2007 p. 108) das figuras analógicas para epítetos:
Os [epítetos] que nascem de metafora, ou de metonimia, são os que mais se devem escolher, como por exemplo, coração sereno, appetite desenfreado, morte pallida, pobreza sordida, velhice melancolica &c. Sobre tudo hão de dar huma certa força, e novidade ao conceito, a qual attraha, e deleite os ouvidos. 
No Dicionário, particularmente significativo para nós é o exemplo de epítetos relativos à “qualidade do terreno”. Falava-se em “Arménia monstruosa e África adusta” (Lusitano, 1820 p. 4). Ora, justamente o segundo foi o epíteto que Maia Ferreira aplicou à sua África - a par de vários outros poetas lusógrafos. 

Significativo também era este sinónimo poético para “pérfido”: “do Averno aborto” (Freire, 1794 p. 115). Significativo porque J. D. Cordeiro da Mata, em «A ciosa», só torna a frase à sintaxe comum: “aborto do Averno”. É uma pista para aprofundar, a do rastreamento desta obra na nossa lírica do século XIX e, quiçá, na oratória também.

Mas, de forma geral, as obras de crítica ou doutrina estética escritas por lusófonos, neste período, limitaram-se a realizar versões locais das teorias francesas. Pelo que iniciamos por elas, deixando os seus sucedâneos mais para o fim desta parte. Podemos, por isso também, colocar sempre a hipótese de as influências derivarem diretamente do francês para Angola, que, pelo menos no século XIX, importava diretamente livros de vários pontos da Europa. 


Entre as obras metaliterárias mais requisitadas para enviar ao Rio de Janeiro, no período 1808-1822, estavam, para além das citadas, a de Boileau, o Génie du christianisme, Fénelon – autores que também surgem nas listas por mim pesquisadas em Angola, exceto o primeiro – cujo pensamento, no entanto, se reflete no de Pope, traduzido pela Marquesa de Alorna em edição presente nas fontes angolenses.


Boileau (Nicolas Boileau-Despréaux, 1636-1711) não surge nas bibliotecas angolanas estudadas, mas foi lido pelos colaboradores angolenses do Almanach, além de largamente distribuído em Portugal e no Brasil. Ele vendia-se no Rio de Janeiro, por exemplo em 1830, conforme anúncio lido no Jornal do comércio. Em Portugal a sua tradução era já antiga nesta altura. Em 1818 publicou-se a do Conde da Ericeira, com uma carta em que a mesma é agradecida e elogiada pelo próprio ensaísta que, como se sabe, morrera cerca de 100 anos antes. As traduções preenchiam bem duas lacunas: uma, a da metapoética francesa para aqueles que não dominavam essa língua; outra, a da história de Abeillard e Heloísa, tão cara aos primeiros românticos e que os habilitava a lerem o seu complemento feito por Alexander Pope. Além disso, para os mais exigentes e pró-românticos, a tradução que Boileau fez do Tratado do Sublime de Longino, tal como o respetivo prefácio, trouxeram-nos (para a lusofonia) toda uma vertente da poética clássica ignorada antes e que terá sido determinante, não só para a crítica literária de Villemain (1790-1870), também para a proliferação do romantismo na lusografia. Um romântico da geração e do círculo de amizades de Maia Ferreira e amigo de Camilo Castelo Branco (Ricardo Guimarães) cita a sua Arte poética (Benalcanfor, 1883 pp. 29-30), já no final do século e em publicação do Rio de Janeiro, fazendo-o com naturalidade, sem sentir qualquer espécie de calafrio nem precisar de qualquer espécie de alibi para o fazer. Não estava, portanto, proscrito pelo romantismo – e muito menos depois do romantismo.

Apesar de não ter encontrado referência às suas obras entre nós, ele foi epigrafado na composição de um colaborador do Almanach de lembranças angolense (ou residente) cuja ubicação não consigo precisar. “Um desmemoriado” (AAVV, 1887 p. 218) trá-lo para epígrafe através destes dois versos do Canto III da Arte poética (1674):
La, pour nous enchanter tout est mi en usage;Tout prend un corps, une âme, un esprit, un visage.
Não sei, porém, se o “desmemoriado” leu bem os versos anteriores, que se referem à poesia heroica e ao papel da fábula nesse género literário, que ele achava indispensável para dar corpo ao material épico. Pelo contrário, no nosso poema, intitulado «A música, o desenho e a poesia», as três artes cumprem a função estética defendida por Boileau para a fábula nas epopeias e dão-nos “a eletro-imagem dela” – uma expressão moderna, sem dúvida. Parece, portanto, que o desmemoriado não terá lido propriamente o Canto III, ou generalizou da Epopeia para todas as artes e terá interpretado o “La” do início da epígrafe como referindo-se à Arte. Era assim que Boileau passeava por Angola no fim do século XIX. Mas no meio talvez não fosse.


As Aventuras de Telémaco (de François de Salignac de La Mothe-Fénelon, 1651-1715) também foram significativas neste ambiente. Publicadas em 1699, elas eram ainda comerciadas na zona de Recife-Olinda (em 1837, 1840 e 1842), constavam dos exames de francês em São Paulo (Alencar, 1893 p. 12), bem como dos compêndios do Colégio D. Pedro II (em 1856) e Maia Ferreira refere “Fénelon” como paradigma poético numa composição encimada por uma epígrafe do neoclássico Delille (Ah! Si ma faible voix pouvait chantre! (Ferreira, 2002 p. 142)). Segundo Carlos Pacheco, as Aventuras constavam da biblioteca pessoal de Bernardino da Silva Guimarães, opulento comerciante residente no Bungo (Luanda). As Aventuras de Telémaco, filho de Ulisses, apresentadas como continuação da Odisseia, foram mais uma referência do século XVIII (e já nesse século circulavam em Pernambuco (Verri, 2005 p. 357)) em pleno romantismo, a par das Obras espirituais. A esse título, embora fosse muito lido em francês (era, aliás, uma edição francesa, de 1810, a que residia na biblioteca de D.ª Carlota Joaquina, a par de outra espanhola), é esclarecedora a lista de traduções que o livro sofreu (que Márcia Abreu reúne em Os caminhos dos livros): quatro traduções em vinte anos (1765-1785), com várias reedições (Abreu, 2003 p. 99)[2]. Entre 1808 e 1826, portanto na altura imediatamente anterior ao nascimento de Maia Ferreira, era a obra mais requerida para o mercado carioca (Abreu, 2003 p. 107). Nos jornais do Rio foi publicitada entre 1810 e 1843, pelo menos (Mançano, 2010 p. 283), embora em 1844 já fosse anunciada apenas uma vez no Jornal do comércio. Naturalmente que o decréscimo de interesse existiu, o que não significa ter deixado a obra de ser lida e, mesmo, influente. Tudo isso torna provável a sua leitura por Maia Ferreira e a ficção brasileira em prosa, no século XIX, filiava-se ainda nele. O próprio José de Alencar se dizia mais familiarizado com o francês do Telémaco (e o de Voltaire) do que com o de Balzac (Abreu, 2003 p. 137; Alencar, 1893 p. 12). Portanto, Fénelon, sendo uma referência do passado, passava a funcionar como ponte, como escritor interseccionado entre os neoclássicos e os românticos.

As aventuras de Telémaco, filho de Ulisses, foram compostas para a educação do mais velho dos netos de Luís XIV, que ficara a seu cargo, mas vieram a público no mesmo ano em que Fénelon foi banido da Corte francesa. A sua defesa do Quietismo, condenado por Roma, foi-lhe fatal, num processo em que Bossuet (1627-1704) se revelou desleal e fatal inimigo. Quando recusadas as suas teses, expostas em Explication des maximes des Saints, retratou-se (discute-se até hoje se foi sincero) e submeteu-se à autoridade eclesiástica romana. Luís XIV conseguiu então enviá-lo para a longínqua diocese de Cambrai e proibi-lo de sair de lá. O rei achou que a prosa tolerante das Aventuras de Telémaco fazia uma crítica à sua pessoa e à sua política de fechamento sobre o catolicismo romano (lembremo-nos de que este Rei revogou o Édito de Nantes, que protegia os direitos políticos e religiosos dos protestantes em França).

No entanto, o livro procurava principalmente preparar o futuro Rei no que diz respeito ao autocontrolo, ao exame de consciência e aos seus deveres, enquadrando-o numa perspetiva política tolerante. Reconhece, por exemplo, a grandeza histórica dos egípcios e dos indianos, embora afirme que estes possuíam a mais que aqueles os filósofos que ensinavam os príncipes por apólogos – ou seja, que faziam o que Fénelon estava a fazer. Elogiar a sabedoria dos indianos, numa época tão fechada culturalmente, era um sinal extraordinário de abertura.

Afirma também que nada é grande ou estimável se não for útil ao ser humano. Enfim, com todo esse envolvimento e estes conteúdos, as Aventuras de Telémaco ficaram marcadas pelo prestígio de um livro de príncipes, mas também, desde logo, por uma aura de liberdade e pragmatismo. Cumulativamente, Fénelon terá antecipado ideias mais tarde desenvolvidas por Rousseau. Uma delas é a do bom selvagem, que perpassa por exemplo na estória do persa Alibée. O bucolismo de Fénelon mostra-nos, aliás, como a ideia do bom selvagem pode derivar justamente das éclogas, em que a figura dos pastores (de ambos os sexos) – puros, simples, sensíveis, rústicos e dedicados à arte – era idealizada com a sua vivência natural, ou de bons selvagens... Ora, Rousseau foi outro nome forte da nossa praça de livros, pelo que reforçava com a sua presença a leitura do antecessor.

Fénelon antecipou, por igual, uma espécie de monarquia constitucional – ainda com um peso muito grande da aristocracia (o próprio Fénelon descendia da grande nobreza francesa), mas propondo já que o rei fosse limitado por leis e trabalhasse de acordo com as opiniões da aristocracia e, mesmo, do povo. Propunha também que o rei (por extensão, todos os poderosos) o fosse por mérito e não pela força. Fazia a defesa da liberdade como atitude de consciência, residindo no coração humano e sendo, portanto, irreprimível – o que vibrou decerto muito fundo na juventude romântica e liberal do mundo lusófono também, prolongando o prestígio da obra e o do autor. O caráter didático da obra, expondo lições por contos agradáveis à leitura (em que Telémaco procurava o seu pai ajudado por Atena, mas onde aconteciam muito mais coisas), constituiu, seguramente, outro forte contributo para a respetiva popularidade.

Por seu turno esta obra, via Chateaubriand e outros, ficou marcada igualmente pela discussão em torno do conceito de poesia e pelo ressurgimento da noção de “poema em prosa”, que Chateaubriand tenta radicar na Antiguidade greco-latina. Convém recordar, com Aguiar e Silva e outros, que é na transição do século XVIII para o seguinte, ou do neoclassicismo para o romantismo, que, por consequência do desenvolvimento das narrativas em prosa e outros fatores contextuais, a palavra Poesia começa a ficar definitiva e exclusivamente conotada com o verso e com a lírica. Na Antiguidade que tinham por referência os tratadistas e escritores europeus da época, o género dominante na prosa era a Oratória, não a Narrativa, pois a Epopeia se fazia em verso e era, por excelência, o superior exemplo da Narrativa, usado aliás pelo autor de Os mártires nesta discussão: o século de Luís XIV, tão pleno de Antiguidade, teria adotado “o mesmo sentimento [de separação entre os conceitos de verso e de poema] sobre a epopeia em prosa” (Chateaubriand, 1845 p. 10). Chateaubriand já reage a essa conotação entre Lírica, Poesia e verso tentando mostrar-nos que, desde a Antiguidade, a Lírica não estava reduzida ao verso. À Lírica ele chama, geralmente, “poema”, embora também aceite a Epopeia como exemplo de Poesia, como se vê pelo exemplo acima; mas não faz equivaler “poema” a verso, como também se vê pelo exemplo acima. O último dos exemplos que dá, depois de Aristóteles, Dionísio de Halicarnasso e Simónides, é o Telémaco de Fénelon.

No seu prefácio “à primeira e segunda edição” de Os mártires, o escritor francês resume, a propósito dessa noção e do conceito de Poesia, o historial da colocação da obra de Fénelon como “poema”. Chama em seu auxílio Boileau, Louis de Sacy (“poema épico, ainda que em prosa”), o Abade de Chanterac (Fénelon teria dado ao texto “a harmonia do estilo poético”) e o próprio Fénelon (“poema heróico”). Cita os críticos dessa atribuição, começando por “Faydit e Gueudeville”, passando para Voltaire (eram inimigos de estimação) e La Harpe. Contra eles afirma que o Telémaco “difere ainda mais do romance que do poema, no sentido em que nós entendemos hoje estas duas palavras” (Chateaubriand, 1845 pp. 10-12). Note-se como, aqui, Chateaubriand já coloca o “romance” no oposto do “poema” e o entende no sentido moderno, diverso daquele que tem nos “Romanceiros”. O Telémaco é, portanto, no dealbar do romantismo francês, trazido para uma discussão crucial entre os críticos e os filósofos, incluindo os filósofos românticos. Isso o tornaria mais atual ainda.


Vindo com ele chegavam ao Rio de Janeiro, ao Recife e outras praças, Jean-Jacques Rousseau, como escritor e filósofo político, e o polémico Voltaire – sobretudo como escritor, mas também com o Dicionário filosófico, proibido e queimado no tempo do Marquês de Pombal. Uma edição das Oeuvres complètes de Rousseau, de 1857, existe ainda na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, mostrando que durou até muito tarde, em Angola, o interesse por ele (de resto continuado até hoje em todo o mundo).

Rousseau foi, com maior visibilidade que Fénelon, um marco para muitos românticos, apesar de homem do século anterior (1712-1778). Não por acaso os seus livros, como os de Voltaire, foram objeto de desconfiança e repressão por parte da censura anterior a 1821 no Brasil e em Portugal (Domingues, 1970 p. 355). Apesar disso, o Convento de São Francisco, em Olinda possuía volumes seus, cuja leitura facultava aos alunos do Curso Jurídico. Por essas e outras vias sabemos que foi bem lido nos primeiros decénios de oitocentos. A ele dedicarei, mais à frente, uma atenção particular. Apenas retenho aqui notas sobre as “Poesias diversas”, incluídas no volume das Oeuvres complètes da Biblioteca do Governo Provincial de Luanda.

Nas Poesias diversas o primeiro verso do primeiro poema («Le Verger des Charmettes») exprime o sentimento de Rousseau perante a natureza, típico da poesia protorromântica:
Verger cher à mon coeur, séjour de l’innocence.
Chénier parece ter apanhado bem esta espécie de sentimento verbal. A projeção do sentimento da inocência sobre a natureza não passa daí, aliás esse mito literário influenciou todo o romantismo, não somente Chénier, mas vinha também de muito antes. Na sequência do poema podemos verificar isso mesmo, que é o drama do romântico, de Castilho por exemplo quando quer olhar só para a natureza e não consegue evitar as entidades de papel, os zéfiros de que também fala Rousseau. Dirão ser Castilho um romântico muito clássico. Sem dúvida. Mas é o drama ainda de Chateaubriand (embora sem zéfiros), que não deixará de imaginar a natureza que sentiu com suporte bibliográfico e não diretamente como se defendia e, até, ele próprio.

A deformação bibliográfica faz com que Rousseau, logo a seguir ao atestado de inocência, passe ao “asilo da paz”. Imagine-se: a natureza um asilo! De paz, claro, porque é assim que a literatura clássica maioritariamente a foca e foi assim para ele, das diversas vezes em que morou no campo, sem ter que o trabalhar, desfrutando o remanso de um lar tranquilo e abastecido. Ali não viu tormentas, as feras não se comiam umas às outras (antes de se aproximarem, matavam-nas), não há vulcões, nem furacões, inundações nem tempestades, nada, só um asilo de paz. Tudo bem, para ele foi mesmo isso e para a maior parte da literatura também. De seguida, o que faz o sublime pensador? Lê e racionaliza, pois nesse
Verger charmant j’en partage l’espace.
Sous un ombrage frais tantôt je me délasse ;
Tantôt avec Leibnitz, Malebranche et Newton,
Je monte ma raison sur un sublime ton,
J’examine les lois des corps et des pensées ;
Avec Locke je fais l’histoire des idées ;
Avec Kepler, Wallis, Barrow, Raynaud, Pascal,
Je devance Archimède, et je suis L’Hospital.
Tantôt, à la physique appliquant mes problèmes,
Je me laisse entraîner à l’esprit des systèmes:
Je tâtonne Descarte et ses égarements
Sublimes, il est vrai, mais frivoles romans.
Ouvido nenhum conseguiria escutar as falas das árvores, das águas, dos ventos, dos animais enquanto as reduz a um tapete propício de silêncio sobre o qual se estende este majestoso pic-nic de pensadores. E realmente o poema não fala do bosque, mas do pensamento e da formação intelectual de Rousseau, sempre com o mesmo sentido mecânico do ritmo e da rima:
J’abandonne bientôt l’hypothèse infidèle,
Content d’etudier l’histoire naturelle.
Là, Pline et Neuwentit, m’aidant de leur savoir,
M’aprennent à penser, ouvrir les yeux, et voir.
Ver o quê é que não percebo, pois ele dizia estar na natureza e não via nada além da sua história intelectual. Realmente este homem, intragável como poeta lírico, não aprendia nada com a natureza, gostava era de ler no sossego dos campos e projetar neles uma prévia inocência concebida:
quelques fois m’amusant jusqu’à la fiction,
Télémaque et Sethor me donnent leur leçon.
Portanto, valha-nos São Telémaco!
Era talvez em Horácio que ele melhor lia a natureza, junto com muitos outros companheiros de vários séculos de livros:
O vous, tendre Racine! Ô vous vous, aimable Horace!
Dans mes loisirs aussi vous trouvez votre place;
Claville, Saint-Aubin, Plutarque, Mézeray,
Despréaux, Cicéron, Pope, Rollin, Barclay
Et vous, trop doux La Mothe, et toi, touchant Voltaire
Ton lecture à mon cœur restera toujours chère.
Mais mon goût se refuse a tout frivole écrit
D’on l’auteur n’a pour but que d’amuser l’esprit.
Receita dada, o que se titulava um bosque era afinal um bosque de livros e de filosofias que impediria qualquer um de ver uma flor ou de ouvir um pássaro em silêncio interior e, portanto, com os olhos limpos. “C’est ainsi que mês jours s’ecoulent sans alarmes”. A paz da natureza era de facto um asilo para este homem, sofrendo excesso de letras e, de quando em quando, abeirando-se dos benefícios dos amigos. Isso marcou o romantismo também e a marca autobiográfica, omnipresente em Rousseau, com timbre de formação intelectual e bibliografia bem listada, encontramo-la toda (não só: mais alguma) na lírica de Victor Hugo, herdeiro também desta métrica mecanizada que tanto caracterizou a lírica francesa e por tanto tempo.

A natureza era uma fuga para salvar mesmo os estoicos das pressões do quotidiano de uma grande cidade e de uma sociedade já complexa, tensa e instável. É de uma tal cidade, como da antiguidade greco-latina (os livros, mais uma vez!), que virão estes versos:
D’Épictète asservi la stoïque fierté
M’apprend à supporter les maux, la pauvreté […/…]
et le mal dans mon corps se sent presque abattu
N’est pour moi qu’um sujet d’affermir ma vertu.
Quem vai dessa maneira ao campo só colhe flores secas. E pode levar para companhia a metralhadora métrica do execrável J. A. de Macedo, para surrar agressivo as gorduras bibliográficas.


Voltaire (François Marie Arouet) era outro homem do século XVIII (1694-1778), viajado, que se opôs a Rousseau mas também achava o mal um problema de raiz (e solução) social. Introduziu em França muitas ideias novas, algumas em consequência da estadia na Inglaterra, onde foi amigo de Alexander Pope (cujos ensaios eram comercializados no Recife), de Jonathan Swift (cujas Viagens de Gulliver chegam ao Recife ainda no século XVIII), de Diderot (o enciclopedista, com quem mais tarde se veio a zangar por diferenças de opinião). Paradoxalmente Voltaire terá financiado o tráfico de escravos, mas a sua obra vai muito além disso, que foi para ele um investimento financeiro, infelizmente comum na época.

Durante muitos anos manteve a aura do proibido, uma vez que a censura portuguesa impedia a circulação dos seus livros (Denipoti, et al., 2011 p. 142). Segundo Graça Almeida Rodrigues, um Edital de 24-9-1760 manda queimar em praça pública seis livros, entre os quais o Dictionaire philosophique de Voltaire (Rodrigues, 1980 p. 34). Segundo a mesma autora, o Catálogo dos livros defesos neste Reino, desde o dia da criação da Real Mesa Censória até ao presente, para servir de expediente da Casa da Revisão (1768-1814) incluía Lettres philosophiques, Poème sur le désastre de Lisbonne, e Candide, ou l’optimisme – o último anunciado no Recife em 1845 e os outros estariam incluídos nas edições das Oeuvres de Voltaire (anunciadas no Rio em 1830, por ex.) ou das Obras completas (anunciadas, por exemplo, no Recife em 1842). No ano letivo de 1813 para 1814 foi dissolvida uma sociedade dramática de estudantes na Universidade de Coimbra por “levar à cena a peça Bruto, de Voltaire, acusada de apresentar doutrina de ideologia liberal.” (Rodrigues, 1980 p. 45) Estas afirmações, porém, não podem ser tomadas à letra, pois a circulação de livros não era tão limitada assim pela censura. John Armitage, por exemplo, apercebeu-se de que, até 1808, “alguns poucos volumes dos escritos de Voltaire” circulavam na escassa elite intelectual brasileira. Em 1836, o seu nome constava do espólio bibliográfico do estadista José Lino Coutinho, também pedagogo e médico na Baía (Magalhães, et al., 2017 p. 220), particularmente o volume das Oeuvres respeitante ao Théatre (Magalhães, et al., 2017 p. 248).

Os “Romans, Histoire et Contes, de M. Voltaire”, tal como o seu “Teatro”, “a Tragedia de Voltaire” (talvez Tancredo, de que houve tradução carioca (Voltaire, 1839)), mais tarde a Henríada, traduzida, tendo sido objeto de desconfiança por parte da censura, associavam-se também à aspiração geral à liberdade. Note-se, a propósito, que a Henriade (por alguns traduzida como Henriqueida), foi escrita durante a sua primeira prisão, que ficou a dever-se à suspeita de ter ele composto uma sátira contra Luís XIV (Pinheiro, 1872[?] p. 193). Essa obra figura num espólio do Cazengo de 1847, pertencente a um barão do café segundo Carlos Pacheco (Pacheco, 2000 p. 40) e leu-se em Benguela, em francês, constando do espólio, de 1855, do comerciante e negreiro Silva Viana. A Henriade fazia também parte dos exames de francês em São Paulo, pelo que as proibições ali se verifica não terem qualquer efeito já quando José de Alencar lá foi examinado (Alencar, 1893 p. 12). Mas, em outros tempos, os Pensamentos de Pascal (de que havia um exemplar na biblioteca de Manuel Patrício Correia de Castro (Pacheco, 2000 p. 29)) com notas de Voltaire deviam ser apreendidos. No entanto Francisco Otaviano, poeta, político e homem da corte de D. Pedro II no Brasil, herdou da biblioteca de seu pai também um (ou mais) “Voltaire”, sendo que muitos estudantes de Direito em São Paulo desfrutaram da sua biblioteca, onde por exemplo José de Alencar leu pela primeira vez Balzac. O cónego Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, autoridade crítica na metade do século XIX no Brasil, um clássico em pleno romantismo, em 1872 ainda falava de Voltaire com entusiasmo, quer pela biografia, quer pelo teatro, colocando-o na sequência de Corneille (1606-1684) e Racine (Pinheiro, 1872[?] p. 194). Muitos outros leitores do século XIX de alguma forma o herdaram e, por isso, a ficção em prosa desse tempo interage variamente com o polémico parisiense.

As funções do mestiço num dos seus romances mais populares, Candide, não fariam supor investimentos em negócios de escravos. A admiração que tinha pela liberdade vivida em Inglaterra (religiosa, filosófica, de expressão) tornava-o também simpático aos liberais. Garrett, que de certo modo (só mesmo de certo modo…) continua o projeto de Diderot e D’Alembert, verteu para português a Mérope já explorada por Voltaire, em publicação que o mercado recifense conhecia e que, localmente, competia com a tradução, para “verso português”, feita (do francês de Voltaire) pelo tradutor (humanista e classicista) Manuel Odorico Mendes, em 1831 (tradutor de Homero também). Odorico Mendes, que justamente ficou mais famoso pelas traduções do que pelos poemas, ainda traduziu a tragédia Tancredo (1839) e foram muito populares as suas traduções, além de consagradas desde cedo pelo cânone romântico (Silva, 1841 p. 52).

Na linha, ou não, do Candide viria um título para o qual ainda não encontrei mais referências: O ingenuo ou o selvagem civilizado (Voltaire, 1835), saído em Salvador da Bahia. Seria alguma versão do Cândido?

Entre as fontes consultadas, os primeiros anúncios do Jornal do Comércio referindo Voltaire são de 1827, os primeiros do Diário de Pernambuco são de 1837 e em Angola o primeiro registo é o do espólio citado (1847). No Diário de Pernambuco, onde pude pesquisar exaustivamente muitos números, os últimos anúncios a pedirem livros de Voltaire são de 1845, o último ano que estudei exaustivamente.

A presença literária de Voltaire alargou-se, portanto, bem para dentro do século romântico, não sendo anacrónica entre angolanos e brasileiros. Antero de Quental abrigava-o na sua biblioteca, num exemplar de 1834 dos Dialogues et entretiens philosophiques, obra que não vejo referida nas nossas fontes (Fraga, et al., 1991 p. 26), e em outro do Dictionnaire philosophique, edição de 1833 (Voltaire, 1833). No final do século XIX, Sampaio Bruno apelidava os românticos de “filhos de Voltaire pelo desrespeito” (Bruno, 1984 p. 17). Não seria só por aí. Victor Hugo, por exemplo, em Os trabalhadores do mar, coloca, na modesta biblioteca herdada pelo estranho Gilliatt, o Candide de Voltaire e, na memória do aventureiro Rantaine, a Henriade; mess Lethierry, personagem carismática da obra, “costumava ler e lia Voltaire”. D.ª Maria Amália Vaz de Carvalho, casada com Gonçalves Crespo, fez um entusiasmado elogio a Voltaire, particularmente quando realçou a “sã ironia, hoje desdenhada, mas que tão benéfica acção exerceu na treva do espírito humano” (Carvalho, 1896 p. 13).

Desta ação “tão benéfica” não devemos arredar a preocupação pedagógica dos seus contos e romances, as várias chamadas de atenção para a pequenez da Europa se comparada com grandes impérios (esforço em que é muito recorrente a referência à Turquia e ao ‘próximo’ Oriente), bem como a transmissão de uma consciência da globalização já existente. Tudo contribuía para um efeito geral de descondicionamento face às mentes vigiadas e limitadas dos absolutismos e localismos europeus. Por exemplo faz isso na série «Micrómegas», na estória de Zadig, no Candide. Encaminhava assim o leitor para a relativização dos valores e das ‘verdades’, enfim das culturas, confrontado-o com os grandes impérios da Antiguidade, levando-o a imaginar extraterrestres enormes e muito superiores perante os quais éramos anões e ignorantes (em «Micrómegas»), etc.

Ridicularizava igualmente o gosto das senhoras pelos “ridículos novelões” (em «O senhor de 40 escudos») – usando, porém, esse apetite para lhes propor estórias instrutivas que as conduzissem ao espírito moderno, a uma ciência útil, a uma mentalidade cosmopolita e tolerante.

Por tudo isso terá sido muito importante e popular, em Angola também, o seu contributo.


Fontenelle (Bernard Le Bovier, senhor de Fontenelle; 1657-1757), que Voltaire conheceu, pontuava com o Diálogo dos mortos, ou Novo diálogo dos mortos, nas mesmas listas, embora seja escassa a referência ao seu nome e só por essa via, em dois anúncios do Diário de Pernambuco, eventualmente mais um (procurado só pelo título, sem o novo). Nunca me apareceu nas fontes angolanas.

Fontenelle era sobrinho e biógrafo de Corneille, marcou o início do iluminismo, foi um divulgador científico brilhante e um poeta razoável, crítico das religiões, ou dos “oráculos”, como se pode confirmar em Relation de l’île de Bornéo (1686) e Histoire des oracles (1687). O Diálogo dos mortos é uma imitação de Luciano, consistindo num diálogo fictício entre Séneca e Scarron, Sócrates e Montaigne. A ele se associavam os Discursos de Mirabeau e uma recolha de “prosas seletas” portuguesas para polir ao mesmo tempo o gosto e o senso.


Falando mais estritamente em obras literárias, a lista aumenta. Circulavam, como de esperar, as Fábulas de La Fontaine, que também constavam da biblioteca de Manuel Patrício Correia de Castro (Pacheco, 2000 p. 29) e da do naturalista José de Anchieta e circulavam amplamente nas praças de Rio de Janeiro e do Recife. Havia muitas peças de teatro, a maioria sem qualquer relevância depois. Mas havia também a literatura neoclássica brasileira, particularmente uma obra muito popular mesmo durante o romantismo.

De facto, anuncia-se, logo em 1827, a edição “ricamente encadernada”, originária do Porto, da Marília de Dirceu, “a obra lyrica mais estimada e por isso incessantemente publicada durante este quartel” [o primeiro do século XIX]. A obra foi, como se sabe, editada em 1792, mas só alguns anos depois começou a pedir-se à censura autorização para a fazer circular, o que a tornava mais recente ainda para o mercado em geral. Em nota, Fidelino de Figueiredo dá-nos as datas das re-edições: 1800, 1801, 1802, 1810, 1811, 1812, 1813, 1817, 1818, 1819, 1820, 1822, 1823, 1824 e 1825. São números esclarecedores (Figueiredo, 1923 p. 8). Ele pára em 1825, mas é importante para nós, por motivos que expus no começo, a reedição do Recife (Gonzaga, 1842), seguida pela do Rio de Janeiro – “Nova Edicao mais correcta e augmentada de uma introduccao historica e biographica pelo Dr. J.M.P. da Silva” (Gonzaga, 1845) – e pela das Cartas chilenas também no Rio (Gonzaga, 1845), no ano em que Maia Ferreira fez o primeiro retorno a Angola.

Tomás António Gonzaga nasceu no Porto em 1744, de pai brasileiro e mãe de ascendência inglesa; morreu na Ilha de Moçambique em 1810, tendo casado bem e vivido melhor. Dele se vendiam, dez e treze anos mais tarde, as “Poesias”, talvez Lyras, que traziam para a literatura em língua portuguesa as “serranilhas”, ou “modinhas”, segundo o nome do vulgo, por onde persistiam, quiçá junto com a “sanfonina” que tanto refere o poeta como seu instrumento – além da lira convencional. Havia nelas a musicalidade e graça de uma espécie lírica que se implantou em Portugal também e emparceirava no Brasil com os rondós e outros ritmos de Silva Alvarenga. Pela sua frescura, as “modinhas” suplantaram naturalmente “a insipidez das composições arcádicas” e nisso o contributo brasileiro foi mais vivo, mais natural. Bocage e Filinto Elíseo detestaram essas frescuras quando publicadas por Caldas Barbosa na Viola de Lereno (uma “coleção de modinhas” (Candido, 2000 p. 143)), mas penso que isso se devesse mais à figura e ligeireza do autor criticado do que ao género. Teriam razões pessoais, que fizeram estalar as polémicas com as academias, ou entre elas, ou no seu interior. Porém as modinhas entrocavam, não só mas também, nas tradições portuguesas antigas e populares, aquelas mesmas que os românticos iriam estudar, modernizar e trazer para a escrita. No caso brasileiro elas transportavam, para a literatura escrita e erudita, ritmos e linguagem mais próximos da oralidade, quer da oralidade quotidiana, quer da oralidade artística, mas principalmente daquela oralidade já misturada nas ruas, nos quintais e nas senzalas. Os neoclássicos brasileiros, de forma geral, cultivaram modinhas e alguns deles parece terem sido exímios na execução de instrumentos musicais – como seria o caso de Gonzaga e da sua sanfona, mas também o de Silva Alvarenga (“filho de músico, ele próprio bom violinista de salão” (Candido, 2000 p. 139)).

Para além destas, podiam ter outras raízes a presença e popularidade de Tomás António Gonzaga, que se prologam por todo o primeiro quartel do século XIX. Recorde-se que a Marília de Dirceu veio a público em 1792 – parte I – e 1799, havendo uma verdadeira terceira parte de 1812, depois de uma falsa denunciada pelo editor. Assegura-se que, em 1826, quando Ferdinand Denis publicouo a Résumé de l'Histoire Littéraire du Brésil, havia mais de “uma dúzia de edições” de Marília. Seguindo a mesma fonte, “Denis ressalta a popularidade oral das liras no Brasil”. Ele escreve, nomeadamente, referindo-se aos “cantos elegíacos” de Marília (Denis, 1826 p. 569):
[…] passaram-se poucos anos e repetem-se nas novas cidades [os cantos de Marília], como se repetem na nossa velha Europa as queixas d’Abeilard.
Não vou esgotar a enumeração dos motivos dessa popularidade, que se prolongava entre nós, mas é de lembrar a sua biografia (“pour bien comprendre les poésies de Gonzaga, il faut connaitre sa vie” (Denis, 1826 p. 569)), o amor infeliz, o destino difícil, conhecido numa colónia (Angola) para onde companheiros da Inconfidência tinham sido exilados, conhecendo em sua terra o “hábil negro” (Gonzaga, 1812 p. 17). Não só toda a história de Marília e da prisão (esquecendo-se a sua continuação, aparentemente feliz, em Moçambique), mas o facto de o sentimento do poeta se tornar o motivo da sua poesia, um motivo autobiográfico, por isso característico já do romantismo (tanto quanto a leitura que dele fez Ferdinand Denis) – ainda que houvesse autobiografia lírica em Luís de Camões, que também era muito apreciado no romantismo português e entre nós, em boa parte pela sentimental veemência dos sonetos, emparelhando com a magnificência de uma épica várias vezes lírica (“Não mais, musa, não mais”) e dramática (sobretudo no episódio de Inês de Castro, mas não só). Curiosamente, Ferdinand Denis, apesar de fazer uma leitura autobiográfica da Marília e de censurar a Gonzaga algumas imagens e referências mitológicas europeias (não compreendendo as razões estruturantes avançadas, muito mais tarde, por Antonio Candido (Candido, 2000)), argumenta a favor da nacionalidade brasileira de Gonzaga por via da receção (Denis, 1826 p. 571):
Seja como for, Gonzaga é um poeta nacional; os seus cantos, repetidos em todo o lado, animam as regiões mais remotas do Brasil.
É de lembrar ainda que há razões de estilo e de força estética justificando a continuação de uma receção simpática ao poeta mesmo no Brasil, muito anos depois do seu afastamento. Antonio Candido refere algumas delas, em Formação da literatura brasileira. A facilidade e leveza do verso, de resto melodioso, dando corpo à naturalidade do conteúdo pessoal, por exemplo (Candido, 2000 pp. 115-117). No Tratado de versificação, que Bilac escreveu com Guimaraens Passos, é sintomático o louvor que o sanciona no turbilhão de escolas, movimentos e grupos que foi o século XIX. Consideram-no “genuíno” e “elevado”, para além de “superior aos seus contemporâneos portugueses”. E brasileiros também, diria eu. Álvaro Manuel Machado acrescenta mais duas razões para a popularidade de Gonzaga: a moda romântica do exotismo e o “sentimentalismo vagamente erótico” (Machado, 1979 p. 50). Fala ainda num aspeto que já anotei: a vivacidade de alguns dos poemas, que deriva da fidelidade expressiva ao sentimento que os anima, à experiência que os sustenta e que se contém pela própria disciplina neoclássica (Candido, 2000 pp. 117-118). Era um bom feixe de razões e, seguramente, algumas delas tocaram a lírica de Maia Ferreira.  


Com menor vivacidade, mas parcialmente por idênticos motivos, entre os brasileiros ganham particular destaque bibliográfico os épicos. Com o título Épicos brasileiros encontramos referência a um volume no rico espólio de José Luís da Silva Viana, (n. 10-1-1807, Cossourado, Barcelos; f. 6-5-1855, Benguela), um dos principais negociantes da cidade[3], que recebeu e acarinhou os negociantes árabes aí chegados um ano antes de Livingstone descer a Luanda. Silva Viana era um homem culto, provavelmente com tendências liberais e, até, setembrista – a julgar pelo espólio bibliográfico, por algumas afirmações suas e pela participação na homenagem a Pedro Alexandrino da Cunha. Segundo Roquinaldo Ferreira, era também traficante de escravos, inserido numa rede luso-brasileira baseada na zona de Benguela. Literariamente, os seus títulos iam do neoclassicismo em sentido lato (Voltaire, Filinto Elíseo) ao romantismo (incluindo o francês e o brasileiro) e até Eugène Sue, passando ainda por clássicos portugueses como Os Lusíadas de Luís de Camões. Ao falecer, deixou um total de 107 títulos em 261 volumes. E estava ainda vivo quando Maia Ferreira morou em Benguela…

Na Biblioteca Nacional de Lisboa há um exemplar homónimo dos Epicos brasileiros. Data de 1845, tal como os três comentários finais de Varnhagen (acerca de cada um dos autores) e as notas aos livros. Na folha de rosto está escrito “nova edição”, mas tal refere-se ao facto de se tratar da 4.ª edição de O Uraguay e de O Caramurú, as duas obras que dão corpo principal ao volume.

Um exemplar do Caramurú, de Santa Rita Durão, foi doado ao Gabinete Literário do Recife em 1840, não sei de mais nada sobre o exemplar – se seria, por exemplo, da edição baiana  de 1837 (Salvador: Silva Serva). O autor era um dos épicos da “escola mineira” e não estava só. No espólio de Silva Viana figurava, por ironia, o Hyssope, de A. D. da Cruz e Silva (1731-1799).

O livro de Cruz e Silva teve um relativo sucesso com a sua proibição por dez anos, que fez com que saíssem reedições em 1802, 1808, 1817 e 1821 (Figueiredo, 1923 p. 8). Na medida em que esse é um poema “herói-cómico”, em parte se interseciona com a epopeia. Mas o poema e o poeta pouco interesse nos despertam. O Hyssope, como escreveu Mendes dos Remédios, “inspirado no Lutrin de Boileau, é uma interessante sátira de costumes escrita com certa graça, posto que a frouxidão dos versos a torne de leitura fatigante” (Remédios, 1908 p. 430). A relação de Cruz e Silva com o Brasil é, de resto, tão pouco importante quanto a sua relação com a épica: nascido em Lisboa, foi para lá despachado pelo Marquês de Pombal como chanceler da Relação, depois de o Bispo de Elvas se queixar dele por tê-lo ridicularizado. Ademais terá, segundo Varnhagen numa afirmação imprecisa (“o poeta português Diniz foi um dos juízes signatários destas sentenças de seus colegas” (Varnhagen, 1847 p. 27)), contribuído para o degredo de Alvarenga Peixoto. É certo que escreveu as «Metamorfoses», transplantando Ovídio para ali, mas esses poemas nunca são referidos nas fontes estudadas por mim, nas quais apenas aparece “O Hissopo”, no já referido inventário de órfãos de 1855.

José Basílio da Gama, autor de O Uraguay, foi educado “nas aulas dos jesuítas”, tendo, portanto, uma formação comum a alguns dos intelectuais angolanos, ou residentes em Angola. Na mesma altura frequentou as mesmas aulas Inácio José de Alvarenga Peixoto, seu amigo. De Alvarenga Peixoto diz Varnaghen que foi, depois “dos nossos dous épicos”, o que “melhor encarou a propriedade e inspirações da poesia brasileira, já no canto épico ao nascimento de um governador de Minas, já no Sonho que vem impresso no princípio do Parnaso Brasileiro” (Barbosa, 1829-1830).

Basílio da Gama foi noviço da Companhia pouco “antes de se lavrar o decreto da extinção”. Mas a sua carreira não parou por isso. Em seguida estudou Filosofia no Seminário do Rio de Janeiro. Após a morte “do seu heroe Gomes Freire”, embarcou para Lisboa e mais tarde para Roma, onde terá trabalhado num Seminário e integrado a “Arcádia Romana, sob o nome de Termindo Sipilio”. Essa integração permitiu aos poetas mineiros da época relacionarem-se diretamente com a origem das Arcádias – o que lhes trouxe uma razoável independência.

A relação de Basílio da Gama com Angola ganhou relevância no fim da vida, quando compôs, a terminar o ano de 1791, Quitubia, poema de mediano merecimento (“fraca poesia” (Candido, 2000 p. 128)), cujo herói é um corajoso e inteligente conquistador da ‘guerra preta’ (Domingos Ferreira d’Assumpção, filho de soba, que ainda estudou em Luanda na adolescência). Basílio da Gama conheceu Quitúbia em Lisboa, quando o Governador o trouxe para ver a Rainha.  A “tença de 12$000 rs com um dos Almoxarifados do Reino a título de hábito da Ordem de Santiago da Espada” foi-lhe concedida em Lisboa, provavelmente a 30 de Outubro de 1791 (Rainha, 1791-10-03 p. (fl)366). De antes, de Junho (data provável), datam a “carta de profissão” e o “hábito” (Rainha, 1791-10-03 p. (fl.)261v)  As notas apostas no final do poema podem ter sido dadas ao poeta pelo próprio herói nessa altura. 

Quanto a O Uraguay, é uma epopeia em cinco cantos, com tons brasílicos e tecnicamente neoclássica, embora muitos dos seus decassílabos sejam bem mais melodiosos do que os austeros e exilados compostos por Filinto Elíseo com luminosa secura. Os versos não possuem rima, são também rigorosamente metrificados e ritmados como decassílabos heróicos. Varnhagen, que a considerava uma epopeia “de mais merecimento” entre as “modernas”, realça o “talento da harmonia imitativa”, o “mecanismo da linguagem, sabendo sempre adotar os sons às imagens” (Varnhagen, 1847 p. 23). Nota ainda que “às vezes, faz correr os versos fluidos e naturais”, alongado-os quando quer “representar distância, sossego ou brandura”. Talvez isso se deva ao “tom lírico” observado por Antonio Candido na epopeia de Gama, que ele aproxima de uma hipotética espécie, de resto híbrida, uma “écloga heroica” (no livro ainda grafam com acento: “heroica” (Candido, 2000 p. 121)). Os recursos versificatórios e estróficos de O Uraguay não eram desconhecidos de um dos fundadores do romantismo português, justamente o mais próximo de um espírito épico e um dos mais lidos em Angola: Alexandre Herculano. Uma das suas reedições no Rio de Janeiro dá-se um ano antes da primeira viagem de regresso de Maia Ferreira a Angola (Gama, 1844). De resto, encontrava-se à venda, na capital carioca, na casa dos irmãos Laemmert.

Na então colónia, o diretor da “aula primária” Alfredo de Souza Netto publicou dois poemas tecnicamente (apenas tecnicamente) comparáveis a estes. Saíram no Amanach de lembranças para o ano de 1878 (p. 375) e 1882 (p. 121). Os dois estão escritos em decassílabos heróicos. O primeiro deles é uma versão de um poema de Raynouard, a que já fiz alusão (creio que de uma parte da tragédia Os templários, exibida em 1805 perante Napoleão e exibida a 13-12-1822, em Lisboa, numa tradução portuguesa). Retrata a morte dos templários e não apresenta qualquer rima. Centra-se na tardia chegada da clemência, encontrando aí um núcleo trágico (não épico) e na profecia final. O segundo é um pouco diferente, na medida em que as suas estrofes estão compostas por oitavas que, na verdade, são quartetos agrupados dois a dois. Em consequência do tema abordado (no primeiro a morte dos templários e no segundo a morte de Rousseau) não há referência à cor local, embora o segundo ainda fale do Nilo e dos seus habitantes (conotando-os negativamente).

O livro de Basílio da Gama foi elogiado por Almeida Garrett e por António Feliciano de Castilho, duas figuras fundamentais do romantismo português, ambos lidos e seguidos com veneração pelos escritores e versejadores angolanos ou residentes em Angola, durante o século XIX. Ambos os autores realçam na epopeia o tratar de matéria própria, no sentido de brasileira e americana. Garrett diz que os “brasileiros […] lhe devem a melhor coroa de sua poesia, que nelle é verdadeiramente nacional, e legítima americana”. Este nacionalismo, de maneira mais ou menos velada, marcou mesmo outros poetas mineiros contemporâneos. Castilho, depois de um longo palavreado inócuo e do elogio de dois episódios (“O terremoto de Lisboa e a expulsão dos jesuítas”; “a morte da virtuosa Cleopatra americana, a amável Lindoya”), reconhece-lhe o pioneirismo: “outro é porém o verdadeiro louvor de Basílio da Gama. Foi elle o que estreou, primeiro em Portugal e dos primeiros na Europa, a poesia do mundo novo”. Foi esse também o tópico desde o início observado por I. J. Alvarenga Peixoto, no soneto que lhe dedica: “a cultura / das novas terras”.

Gonçalves Dias não seria, por tanto, muito justo ao escrever a D. Pedro II dizendo que os portugueses tinham demasiados preconceitos para poderem elogiar epopeias brasileiras, embora descontasse, realmente, Garrett e Herculano (Dias, 1964 pp. 195-196, 117). Eram preconceituosos, sim, mas isso não lhes impediu o elogio dos épicos brasileiros. Não é dispiciendo, perante o nosso objetivo, repararmos no facto. A procura incessante, quer por leitores europeus, quer por locais, do assunto “americano”, para o presente caso o americano brasileiro, desde esta época marca a ambiência cultural e poética da qual mais tarde emerge, pioneiro também sem também ser genial, o nosso José da Silva Maia Ferreira.

A introdução da temática, numa perspetiva global, iniciara-se antes, claro. Imediatamente antes em obras como o Candide de Voltaire. Ali encontramos outra expressão dessa apetência pelo “novo mundo”, quer na subtil ironia do autor sobre o mito do Eldorado, quer na pintura das paisagens desse mundo, quer pela figura do novo mestiço, especialmente elogiada e caraterizada em Cacambó – personagem com aspetos positivos que são de realçar, assumindo um especial destaque o da fidelidade, e logo em seguida o seu realismo e a sua habilidade, quer para os contactos, quer para resolver problemas práticos. A personalidade híbrida dessa América está retratada ali com justiça e não saiu, portanto, maltratada.

Justamente Candide aparece nas nossas fontes, era portanto lido e procurado nos mercados em que José da Silva Maia Ferreira se formou e que Arsénio de Carpo frequentou. Residiria aí mais um reforço para que em Angola se criasse interesse e conhecimento acerca da literatura que falava de um “novo mundo”. E haveria já, nessa altura como durante os dois séculos seguintes, uma projeção dos angolanos sobre o Brasil, uma atenção especial ao que ali se ia fazendo, numa colónia e ex-colónia portuguesa. Tal projeção se veria reforçada com a leitura da épica de Basílio da Gama.

A apetência europeia por notícias da América foi mesmo decisiva para o aparecimento de O Uraguay. Em Roma teria nascido a ideia, a Basílio da Gama, de escrever esta epopeia. O género certamente lh’o sugeriu o meio académico e neoclássico no qual se movia; o assunto veio-lhe à ideia por muitos lhe perguntarem coisas sobre o Uraguay, ou seja, veio-lhe à ideia pelo interesse que o público romano e erudito da época mostrava ter por um assunto local. A expectativa dessa receção surdiu na ideia do poema épico mais tarde concretizado. Muito concretamente Basílio da Gama confessa que “as primeiras ideias deste poema” vieram da “admiração que causava a estranheza de factos entre nós tão conhecidos”. Essa mesma motivação se arrastaria por todo o século XIX, com a sua exploração do exótico, do continuado gosto pelas viagens a lugares e sociedades bem diferentes da Europa, até mesmo a sua exigência de que os escritores locais tocassem nesse ponto sensível do ‘imo’ dos leitores.

O impulso para a publicação do livro de Basílio da Gama veio, inesperadamente, do Marquês de Pombal – e com a ironia que passo a contar. Ao voltar ao Brasil, o autor foi preso como jesuíta e enviado para Lisboa. Estando prestes a ir degredado para Angola, escapou fazendo elogios a Pombal, à sua família, enquanto simultaneamente criticava os jesuítas. A reviravolta foi tal que o famoso Marquês passou a querer Basílio da Gama junto de si, bastando, para lhe merecer a confiança, que publicasse O Uraguay, que principalmente nas notas é a profissão de fé anti-jesuita mais decidida, como observa Antonio Candido com mais pormenor e concluindo que “o grosso do ataque […] vai alojar-se realmente nas notas”, um verdadeiro sistema alternativo de representação e de significação (Candido, 2000 p. 122). Para cimentar melhor ainda a amizade e reciprocidade, a epopeia foi dedicada – apropriadamente – a um irmão de Pombal, que tinha sido governador “na América”[4].

A ligação à América, mais significativa que as notas anti-jesuíticas (fruto da pressão para não ser degredado e para arranjar e garantir o emprego), é naturalmente mais intensa e vários dados atestam que o interesse europeu sobre o “novo mundo” foi decisivo para a publicação da obra. Na p. 8, verso 16, é introduzida a personagem Cattaneo. Cattaneo seria, segundo Varnaghen, corruptela de Caetano. Caetano era o nome do “autor de umas cartas em francez sobre estes acontecimentos do Paraguay, que o poeta devia conhecer, pois foram publicadas em 1756. – E em allemão se publicaram ellas nesse mesmo anno na obra de Muratiorius”. Para além das fontes locais, que certamente Basílio da Gama dominava, a localização da ação era também conduzida por essa fonte específica editada na Europa e a que ele teria tido acesso, eventualmente, aí.

O cruzamento de interesses e referências é fundamental para percebermos que, também no Brasil, o próprio e o alheio não tinham fronteiras fixas e que a atenção aos motivos locais não tem somente explicação nem raiz local. É numa extensa e mal definida rede de leituras que nascem e se localizam estes interesses, às vezes só coincidentes por instantes e acasos.

Na teia dinâmica de pressupostos e de implícitos em que se enredam os mercados de leitura, a linguagem de Basílio da Gama tornou-se também significativa. Em primeiro lugar porque, reportando-se ao continente americano, transportava um léxico local que era inédito para a generalidade do público europeu. Em segundo lugar pelas virtudes que Almeida Garrett e outros lhe apontam: a clareza, a “phrase pura e sem affectação, versos naturais sem ser prosaicos e quando cumpre sublimes sem ser guindados”. O que tem suporte num decassílabo próprio, que terá aberto o caminho ao decassílabo romântico brasileiro, “transfundido de melodia, não obstante equilibrado e sereno” (Candido, 2000 p. 122). A aproximação das frases ao português do Brasil, condicionada saudavelmente pelo rigor que evita o prosaísmo, resultava realmente em versos de uma naturalidade que era já percursora e que certamente estimulava expressões idênticas em outras comunidades literárias. Veja-se, por exemplo, o que diz do “nosso bom Dirceu”: “Mettido no capote a ler gostoso / O seu Virgílio, o seu Camões e Tasso” (muito mais interessante, sem dúvida, esta imagem e seu ritmo que a dos versos de Rousseau a ler os imortais no bosque). O último verso dá-nos uma clara indicação de leituras clássicas, que eram de esperar em Tomás António Gonzaga e outros e que se prolongaram (pelo menos) na primeira metade do século XIX, se não mesmo por todo o século, quer em Angola, quer no Brasil, quer em outras paragens. Essas leituras acompanhavam-se com antiguidades ativas como a de Petrarca. Confirmaremos ainda em outras ocasiões um tal arco enciclopédico e o alargaremos. Mas, para o que no momento nos interessa (o casticismo da linguagem), temos o “nosso bom Dirceu”, “mettido no capote” e “a ler gostoso”. Isto mostra-nos que a circulação de epopeias e poemas neoclássicos podia estimular ainda algumas das caraterísticas habitualmente atribuídas ao romantismo, quer na Europa, quer em África ou na América. O casticismo, ou melhor, o portuguesismo de um poeta português marcante como Filinto Elísio, marcante mesmo para a maioria dos primeiros românticos lusitanos, via-se reforçado pelo brasileirismo, o vernáculo de Basílio da Gama, elogiado por todos incluindo Garrett e Castilho, dois dos ‘pais’ do romantismo lusitano. A introdução de algum vernáculo angolano, ainda que pouca, tímida, a princípio, se vem ser despoletada sobretudo por poemas de Ernesto Marecos e Cândido Furtado no que diz respeito a presenças no terreno, era preparada por toda esta ambiência. E, se olharmos bem, já aparece de vez em quando em Maia Ferreira, acompanhada por outra caraterística importante para o percebermos (iremos lá, de certo modo já fomos também, por via da colocação de alguns clíticos no seu verso).

A convivência das referências da antiguidade clássica europeia (por exemplo a guerra de Tróia) com os motivos históricos e geográficos americanos há de servir mais tarde de exemplo para os poetas angolanos do século XIX, exemplo reforçado e aprofundado em produções posteriores, como a de Gonçalves de Magalhães na Confederação dos Tamoios, a de Gonçalves Dias nos Timbiras e as do orgulho nativista de José de Alencar, que fez o terceiro ano de Direito no Recife em 1847 e era filho de uma heroína da revolução pernambucana de 1817.

Entre os neoclássicos mineiros e a poesia de Maia Ferreira há também a modulação ambígua e profundamente literária com que trabalham a sua localização – um na América, outro em África. O arcadismo brasileiro e o poeta angolano partilhavam a mesma duplicidade, a mesma declaração de amor à terra apesar da rudeza de suas paisagens e musas, o mesmo reconhecimento da superioridade das outras culturas face à sem cultura das “senhoras africanas” ou americanas. Mas ainda assim uma adesão que os fazia referir como sua a sua terra, que os fazia ainda assim escrever integrando elementos dela. Veja-se, por exemplo, a «Fábula do Ribeirão do Carmo» de Cláudio Manoel da Costa, o «Templo de Neptuno» de Silva Alvarenga, o «Canto Genethlíaco» de Alvarenga Peixoto e mesmo várias passagens de Tomás António Gonzaga.

Para finalizar, é de referir que apenas encontrei anúncios relativos a O Uraguay no Rio de Janeiro, mas, como vimos atrás, integrada em Épicos brasileiros a sua epopeia circulou pelo Recife e por Benguela seguramente.

Quanto a O Caramurú, de Fr. José de Santa Rita Durão, é uma epopeia tecnicamente muito mais próxima de Os Lusíadas, desde logo pelas oitavas em que é escrita, que são oitavas camonianas. Varnhagen achava-o “mais acabado que o anterior [O Uraguay], é de fácil e natural metrificação, dicção clara e elegante” (Varnhagen, 1847 p. 23). Se pensarmos que Os Lusíadas, seguindo exemplos canónicos, devia ter por título O Lusíada (como A Eneida de Virgílio), sendo que tal observação nem sequer é nova, mais próximo ainda fica O Caramurú do modelo épico da época (o virgiliano) e portanto mais diferente, por uma justa razão, do épico português – mas mais diferente dentro da proximidade que tem com ele. É como se Santa Rita Durão reconhecesse a justiça da crítica feita a Camões e a levasse em conta para o seu canto que, dessa forma, se apresentava tecnicamente mais ‘perfeito’, ou seja, mais acordado ao cânone da época.

O seu autor foi “religioso professo na ordem dos eremitas de Santo Agostinho” e doutorou-se em Teologia na Universidade de Coimbra em 1756. Era um aficcionado de Virgílio, tal como José Basílio da Gama. Sofria, também como Basílio da Gama, grande atração por Itália, que terá visitado com demora. A leitura de Virgílio aproxima, uma vez mais, ambos os poetas do ambiente bibliográfico de Angola e do Brasil no século XIX, visto que era comum na intelectualidade artística da época.

O autor do Caramurú terá sido lente de Teologia na Universidade de Coimbra, quando foi seu Reitor outro mineiro, D. Francisco de Lemos (a admissão deve ter-se dado cerca de 1778). Revestia-se de uma cultura enciclopédica, portanto própria do tempo. O Caramurú foi, provavelmente, escrito nesse ambiente (o da Universidade Coimbrã no fim do século XVIII). Pouco depois do ano de 1778, o lente começou a ditar a obra a um “pardo” que trouxera consigo do Brasil (enfim, ao seu Cacambó, sem dúvida mais aficcionado às letras).

A epígrafe do livro é de Ovídio (Metamorfoses, XV), outro autor cuja receção atravessa o neoclassicismo e o primeiro romantismo, sofrendo a famosa e faustosa tradução de A. F. Castilho. Ovídio e as Metamorfoses representam igualmente, na cultura clássica, um dos mais interessantes e híbridos livros que ela podia legar ao romantismo, o que confirma o acerto de Castilho em resgatá-lo aos séculos anteriores e a intuição de Santa Rita Durão em captá-lo para a epígrafe.

Não é só essa a ponte entre neoclássicos e românticos de que o autor do Caramurú dá sinal. Se, como em Basílio da Gama, uma linguagem “elegante e clara” nem sempre carateriza os românticos, já “a metrificação fácil e natural” é procurada pelo génio romântico, embora nem sempre conseguida. Castilho, aliás, elogiar-lhe-á justamente o “estylo facil”, acrescentando-lhe a nobreza de que não falara Varnaghen e a referência a uma versificação geralmente boa, algumas vezes muito boa. Também Garrett reconhece que, “onde o poeta se contentou com a simples expressão da verdade há oitavas belíssimas” e Schlegel, o “mais fino crítico em litteratura dos tempos modernos”, é invocado por Varnaghen para justificar o elogio do Caramurú, numa indicação preciosa quanto a influências teóricas e críticas sobre o romantismo lusófono da época. Todos estes elogios reforçavam a continuação da leitura do Caramurú em Angola, numa comunidade muito sensível às opiniões de Castilho, ao mesmo tempo que às dos brasileiros.


Do lado português circulavam e compravam-se, “em bom uso”, as “obras”, “obra poética” (Recife, 1837), “obras poéticas” (Recife, 1837), “obras completas” (Recife, 1837-1842) de Bocage (1765-1805). No Rio de Janeiro anunciavam-se também os “Improvizos” (JC, 30-4-1830), provavelmente os Improvisos de Bocage na sua mui perigosa enfermidade, dedicados aos seus bons amigos (Bocage, 1805), livro que foireimpresso no Rio de Janeiro, em 1810.

Enquanto autor, aparece Bocage a meio da tabela nos livros mais requeridos, para o Rio de Janeiro, entre 1808 e 1826, melhorando em um ponto a posição relativamente ao período anterior (1769-1807) (Abreu, 2003 pp. 90, 107). Pelo menos entre 1769 e 1812, as edições dos poemas do autor estavam consignadas no título Rimas, que pede esclarecimentos.

As Rimas que referem as estatísticas, não se especifica para elas nenhum volume, mas eram dois e um terceiro que, apesar de se chamar Poesias, circulava também como terceiro tomo das Rimas. Daniel Pires aponta três edições do vol. I: 1791, 1794 e 1800; quanto ao vol. II, lembra-nos que foi “dado à estampa em 1799 com o objetivo de incensar as personalidades que” tentavam libertá-lo e não me parece que se trate deste volume, pois não seria tão popular (Pires, 2007 p. 145). Dado que o terceiro volume, como refere ainda Daniel Pires, é “na realidade intitulado Poesias de Manuel Maria Barbosa du Bocage Dedicadas à Ilustríssima e Excelentíssima Senhora Condessa de Oyenhausen”, suponho que viesse indicado como Poesias nos anúncios para diferenciá-lo do primeiro tomo, apesar de este se ter popularizado como tomo III das Rimas.

Por Angola circulou também o título Rimas, durante o século XIX, sem especificação de volume. São referidas no espólio de Benguela enumerado em 1856 (e, coincidência, Maia Ferreira intertextualiza com ele (Ferreira, et al., 1980 p. 93)), a par da sua tradução da “História de Gil Braz”, que também se comerciava no Recife e no Rio de Janeiro.

Mas a edição marcante foi, talvez, a de Inocêncio, como passo a explicar. Ainda pude consultar as Poesias na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, em duas coleções dessa edição de 1853. Coincidência ou não, Cordeiro da Mata refere por duas vezes “Elmano”, uma delas recordando o seu “verso”, outra numa estrofe que reestrutura o final de um soneto satírico de Bocage (v. mais adiante).

Uma das coleções da antiga Biblioteca Municipal de Luanda é de uma edição que circulou por Angola, seguramente, naquele tempo. Ela foi comprada por Joaquim Eugénio de Salles Ferreira a alguém de apelido “Rocha” (não foi o único livro que ele comprou a alguém com esse nome). Isso vem no vol. I, onde se especifica a data da compra (“3/7/80”) e o preço: 13.500 réis. A outra coleção das Poesias, que vi na Biblioteca do Governo Provincial, está muito estragada, sobretudo nas primeiras páginas do vol. I, dando somente para ver o carimbo da “Biblioteca Municipal de Loanda”. Para esse volume, danificado no início, onde faltam folhas, não foi possível encontrar uma data, nome de editora, ou local de publicação. O final do livro inclui uma «Advertência» por causa das gralhas, que é da autoria de Inocêncio Francisco da Silva, o que nos dá uma pista. Essa nota vem datada de 30.3.1853 e localiza o subscritor em Lisboa. É a data mais aproximada que tenho. No outro exemplar se percebe que o autor do estudo biográfico se chamava L. A. Rebelo da Silva (1822-1871) e que o volume saíra para as ruas em Lisboa, da casa de A. J. F. Lopes (António José Fernandes Lopes), em 1853. Trata-se, portanto, da edição de Inocêncio. Tem, para além disso, carimbos da “Biblioteca Municipal de Loanda” e da “Câmara Municipal de Luanda – Biblioteca”. Portanto: os dois exemplares devem ser da mesma edição.

A posição literária de Bocage é inquestionável no romantismo, quer pelo humor, quer pela mestria artística e pelo domíno da língua portuguesa, quer pelo sentimento vibrante, quer pelas paisagens fúnebres, noturnas, arruinadas, de alguns dos seus sonetos. Ele foi, como diz Fidelino de Figueiredo, o “mais evidente dos percursores”. O crítico aponta-lhe uma “impulsiva”, biológica “versatilidade [...] e o entusiasmo lírico, a veemência sentimental, a visão poética com que coloria quanto representava”. Mas não só, a sua literatura tinha ainda outros pontos de interesse para angolanos e brasileiros, como veremos mais à frente.

Não era apenas um poeta com popularidade nos leitores em geral, os seus congéneres continuadamente o admiraram até hoje. Garrett, em 1826 (no Parnaso lusitano), achava Bocage (e Filinto Elíseo) dotado “pela natureza de prodigioso engenho poético” e separa-o dos ‘elmanistas’, ou seja, dos seus epígonos (Monteiro, 2005 p. 119). Gonçalves Dias cita-o, colocando-o positivamente no cerne do movimento romântico brasileiro. No referido Tratado de versificação, onde seguem elogiosamente Castilho, partilham com ele Bilac e Passos a opinião de que Bocage é o mais “delicioso” e perfeito “de todos os nossos metrificadores”. Muito mais perfeito que Filinto segundo os três.

Pode-se argumentar que os parnasianos e Castilho estariam mais propensos a tal admiração, pode-se também lembrar que Almeida Garrett criticava a monotonia métrica de Bocage (muito repetida por Bilac e, na verdade, era mais o cânone da uniformidade, da unidade formal – oposto ao cânone romântico de adaptação das soluções métricas aos estados de alma sugeridos). Mas o metro aqui, sobretudo para os parnasianos, não é somente uma operação matemática e uma adição sintática. Ele “se dobrava flexível à ideia, prestando matiz e relevo aos pensamentos”, segundo o biógrafo da edição das Poesias adiante comentada (Bocage, 1853), que nisso corrige o seu amigo e mais velho Garrett. Com justeza passava Rebelo da Silva do metro para o ritmo, considerando que, ritmicamente, Bocage interpretava “o coração e a vida” e, se não fossem “os vínculos da imitação clássica”, não “deixaria de subir com a alma às eminências, onde campeia orgulhosa a escola moderna”. Portanto, bastava que ele tivesse outros modelos para que a sua plasticidade métrica se tornasse romântica, ou simplesmente moderna. Há certa contradição quando Rebelo da Silva passa do metro para o ritmo, pois acha que o metro “se dobrava flexível à ideia”, não limitando a representação ou expressão dos conteúdos, mas quanto ao ritmo acha que os “vínculos da imitação clássica” limitavam o poeta relativamente à “escola moderna”. Talvez apenas quisesse dizer que, usando ritmos contemporâneos, seria dos melhores entre os românticos. Ou talvez se trate de um texto de transição, de um pensamento crítico ainda não totalmente convertido ao romantismo…

Na nossa lírica, a mestria técnica revelada por Maia Ferreira, na qual Mário António reparou com acerto, não nasceria só da leitura de Gonçalves Dias (outro metrificador exímio), mas também desta herança neoclássica admitida pelo romantismo e com ele partilhada. No que não estava sozinho, pois também Garrett (em D. Branca) e Castilho (em A primavera), rentabilizaram a “dulcificação” das formas da poesia e outras influências do poeta maior do século XVIII português.

Uma vertente bocagiana indissociável da popularidade do autor é, sem dúvida, a da sátira. No mesmo Tratado, Bilac e Passos dão-no como exemplo superior de sátiro português. O autor do “estudo biographico e crítico” da já citada edição das Poesias, que sobrevive nas recuperadas prateleiras da Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, fala da “alma” de Bocage “feita como a de Chenier para acerar o jambo da satyra” (Bocage, 1853). Falo da sátira nela incluindo a crítica e a denúncia políticas ou sociais. Um exemplo de como essa crítica e essa denúncia calavam fundo no nacionalismo brasileiro nota-se numa correspondência enviada, de Pernambuco, para o Correio brasiliense em 3-12-1816 (Fiel, 1817 p. 468).

A correspondência refere-se aos abusos sobre os negros e ao desbaratar de custos. A repressão a uma “insurreição” imaginária de “pretos” numa fazenda de Alagoas (eles estavam apenas dançando ao redor do batuque) resultou no degredo para “Fernando” (Fernando de Noronha, talvez) e no enforcamento de um, tirado ao acaso. O correspondente relata: “no fim da cena, em lugar da pateada, apareceu o clamor do público, não repetindo com Bocage “folga a justiça, e geme a natureza”, mas sim “geme a justiça, e geme a natureza”. Enviada nessa época para o primeiro jornal brasileiro, feito em Londres e de cariz liberal, ela cria já ambiência para a revolução pernambucana de 1817. Para o nosso particular assunto, o importante é que o faça com uma citação de Bocage, que assim era visto como justiceiro (Piwnik, 2007).

Um último aspeto a considerar prende-se com mitos românticos como o de Byron, particularmente repercutido na chamada segunda geração romântica brasileira (Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e outros). De Bocage se espalhava, talvez mais e antes que a poesia, a figura do boémio, do aventureiro (um pouco menos, mas também a do maçom), do que denunciava o cinismo da sociedade e declamava (ou compunha também), inspirado, nos bares os sentidos poemas a uma clientela de má fama. Espalhar-se-ia a lenda do revolucionário preso que, por esse motivo, não pôde juntar-se à mulher amada, a quem a mãe proibiu que o visse assim que ele entrou para a prisão do Limoeiro.

Em resumo: a biografia turbulenta e a personalidade desregrada, a sátira, as anedotas, o arrebatamento de muitos dos seus poemas, o erotismo, as paisagens (românticas já) de vários sonetos, o vernáculo da linguagem, rítmica e emotivamente forte (também por isso Herculano o consideraria popular), a “invenção metafórica” (Monteiro, 2005 p. 124), “o espiritualismo plangente que depois vemos nas Meditações de Lamartine, e n’algumas odes de Victor Hugo” (Mendonça, 1855 p. 55) e o sentido de justiça fizeram com que se visse em Bocage um percursor e se mantivesse ativa a sua leitura. Como disse Rebelo da Silva, de cuja apropriação passarei a falar: “príncipe na arte clássica, percursor, para nós, da revolução literária”. Desses aspetos, alguns podemos ver melhor através do prefácio e da figura do prefaciador da edição a que me reporto.

Luís Augusto Rebelo da Silva cresceu no meio dos primeiros românticos. Almeida Garrett e Alexandre Herculano (Pato, sd) frequentavam a quinta do seu pai (transformada na casa de Joaninha das Viagens na minha terra (Barreiros, 2006)), próximo de Santarém. Mas foi no ambiente lisboeta que principalmente se formou, estreando-se na Revista universal de Castilho, que lhe deu a primeira comunhão em 1842. Por recusa de Alexandre Herculano, foi ocupar o lugar que seria do grande Historiador no Curso Superior de Letras (Leone, [2008]). Foi também cofundador do Grémio Literário lisboeta, juntamente com Almeida Garrett, Herculano e outros (Barreiros, 2006). Nas páginas da Illustração luso-brazileira (propriedade de A. J. F. Lopes, o editor do livro de Bocage prefaciado por Rebelo da Silva) foi, por muitos números, Rebelo da Silva elogiosa e detalhadamente comentado por Ernesto Biester (1829-1880), que Camilo Castelo Branco adjetivou como “um dos mais observantes e impecavéis sócios do elogio mútuo.” A partir do n.º 8, a Ilustração começa a sair aos Sábados e tem como diretor este estudioso de Bocage (L. A. Rebelo da Silva). Note-se que o periódico era do mesmo editor de O panorama e de várias obras constantes das nossas fontes, girando como órgão de um grupo nuclear no romantismo português e na sua disseminação. O próprio Rebelo da Silva colaborou desde o primeiro número – onde publicou uma biografia curta, esperançosa e bajuladora de D. Pedro V, nessa altura com 19 anos, um deles de reinado. Rebelo da Silva, aliás, tinha boas relações literárias com brasileiros, entre elas se destacando a amizade e consideração de Gonçalves Dias.  

O que Rebelo da Silva escreveu foi, portanto, sintomático de como o primeiro romantismo (e o segundo) absorveram Bocage. Com a vantagem de nos dar um texto já tardio, portanto de um momento no qual a apropriação de Bocage estava consolidada em Portugal – e a vitória do romantismo também. 

Bocage é interpretado quase como um primeiro romântico, um romântico escrevendo ainda sob recortes clássicos, ideia que depois se tornou comum e a que não eram estranhas as considerações de Garrett sobre em 1826. A re-visão do poeta pelo romantismo fica resumida nestas frases de Lopes de Mendonça: “há, nas composições do poeta, uma tal expansão de sentimento, uma tão grande irradiação de sensibilidade, uma presciência tão veemente de uma outra escola, que se percebe que aquela poderosa inteligência está desterrada da sua época” (Mendonça, 1849 p. 24). Ao grande sonetista e sátiro português dedicou Luiz Augusto Rebelo da Silva uma obra, talvez o desenvolvimento do estudo incluído no volume das Poesias de Bocage que vimos: Memoria biográfica e litteraria ácerca de Manoel Maria Barbosa du Bocage : do caracter das suas obras, e da influência que exerceu no gosto, e nos progressos da poesia portugueza (Silva, 1854). O “estudo biographico e crítico” é um primeiro exemplo, que Rebelo da Silva nos dá, da aquisição do neoclássico pelo romântico operada sobre a figura de Bocage.

Uma das primeiras aquisições é de índole estilística, do próprio ensaísta (que denuncia as suas opções estéticas na prática discursiva): ele compõe frases apuradas, comedidas, expressivas e sentimentais como estas: “a sua agonia foi ainda um cântico!” (se o leitor reparar bem a frase é feita com dois pentassílabos, o ritmo dominante nas citações seguintes); “via sobre si a sombra imensa da morte”. Acompanha-as uma imagem típica do poeta inato, do genuíno génio: “vate desde a infância [...] ainda balbuciava, e já as palavras lhe acertavam com a melodia poética” – portanto: nascera a cantar e a cantar morrera (por pancada: “as palavras lhe acertavam com”).

Repare-se que o meu parêntesis não contém apenas ironia: as palavras ‘acertavam-lhe’ – não tinha de as procurar. Portanto a Poesia não resultava de um esforço, mas, romanticamente, era o fruto de uma vocação, de um talento como o da eloquência. No entanto, os poemas mais elucidativos da sua genialidade foram, não somente sentidos, bem limados: “abram os seus livros nos poemas onde a lima passou mais lenta, e a meditação se demorou um pouco”, diz Rebelo da Silva. Classicamente, o equilíbrio trazido por uma “lima” dá correspondência à ponderação no campo das ideias e a um resultado estético melhor.

As ambiguidades continuavam. A ambiência, na qual a morte levava o poeta, participava de uma sintonia absoluta. Toda a paisagem física e humana remeteu para o drama da sua morte nesse dia. Diríamos hoje que é um quadro holístico, o do passamento de Bocage na biografia:

[…] o último dia, que respirou, nasceu sepultado em nuvens. Parecia que tinha medo a claridade de romper. O céu forrado e escuro; o sol encoberto; e o sul gemendo sobre a cidade, tornavam triste o aspeto de Lisboa.
O autor assume como verdadeira esta relação entre a natureza e o sentimento da personagem, que não se dava mal com a adequação do visível ao sentido na poética horaciana, mais tarde na poética realista e em escritores africanos como Manuel Lopes. Leia-se, a propósito, esta passagem do ensaio de Rebelo da Silva: “a melancolia do tempo estava em harmonia com a melancolia dos homens” (repare o leitor, paralelamente, como o ritmo da frase pode ser segmentado numa sequência de 5’2’5’5’2).

A paisagem humana e física é a da cidade de Lisboa. O romantismo, período literário acompanhado pelas revoluções liberais e nacionais, ou simplesmente por revoluções, ergueu, mais do que nenhuma outra fé literária, o mito do poeta que iconiza a identidade coletiva, de uma cidade como de uma nação. O quadro da morte é, não só holístico, mas o momento apropriado para mostrar a identificação da cidade, sinédoque do país, com o poeta agonizante: “curvada diante das cinzas do seu vate predileto a bella capital não fingia o lucto, carregava-o!”. Observe-se a hipérbole (“a cidade”, “a bella capital” – como se toda a cidade estivesse inteiramente suspensa do desenlace). O quadro social envolvente era transversal, pois são referidas pessoas de todas as classes e condições acorrendo para saber notícias e acompanhá-lo. Até os desentendidos naquele momento apareciam, mesmo os que tinham polemizado com ele, ou se tinham indisponibilizado com ele em vida, perguntavam pelo seu estado, preocupados e solidários, se não mesmo santificados.

O processo alquímico da transformação de uma poesia profundamente pessoal numa figura coletiva tinha referências literárias contemporâneas na Europa: “o interesse dos inglezes por Walter Scott, o seu romancista querido; a ansiedade de Paris por Mirabeau, o seu orador sem rival, dava-se em Lisboa por Bocage”. O crítico e biógrafo tem a preocupação de mostrar que Bocage conhecia bem essa literatura: imitou “(mais do que sublime tradutor)”, Ovídio (43 AC – 17), Delille[5] (1738-1813) e Castel (1758-1832), o naturalista-escritor do poema Les plantes e tradutor de Le mariage des plantes (anónimo, sd).

Camões é, claro, uma sombra pairando sobre o cenário bibliográfico e citadino. Camões era nesta época o poeta nacional por excelência e Bocage queria segui-lo também no panteão. Parece que se dispôs a “entoar o canto das guerras dos semi-deuses da conquista, na Ásia e na África portuguezas!” (Bocage, 1853). Pela sua biografia e pelos “primeiros rudimentos de um poema, intentado sobre o descobrimento da América”, ele vem legitimar a colonização contemporânea. A leitura que se fazia de Os lusíadas era idêntica, tornando a figura de Bocage ainda mais pertinente para a justificação e glorificação das colonizações portuguesas.

A outra referência a África nos seus poemas advém da polémica violenta com os novos árcades. A polémica levou à composição de vários sonetos e teve como alvo destacado o violoncelista e letrista Domingos Caldas Barbosa. Caldas Barbosa, que nascera no Rio de Janeiro em 1739 ou 1740, era mestiço (de ‘branco’ e ‘negro’), o que não parece ter inibido a sua carreira em Lisboa. Quando, porém, estalou a polémica, a veia satírica de Bocage revelou-se igual à de Gregório de Matos, ou do poeta Chiado, recorrendo a preconceitos raciais para humilhar o adversário. Nesse momento, funcionaliza-se a referência africana, pois chama ao letrista, sem qualquer apreço, “neto da rainha Ginga”. Transcrevo:
Preside o neto da rainha Ginga
À corja vil, aduladora, insana:
Traz sujo moço amostras de chanfana,
Em copos desiguais se esgota a pinga:
 
Vem pão, manteiga, e chá, tudo à catinga;
Masca farinha a turba americana;
E o ourango-outang a corda à banza abana,
Com gestos e visagens de mandinga:
 
Um bando de comparsas logo acode
Do fofo Conde ao novo Talaveiras;
Improvisa berrando o rouco bode: 
 
Aplaudem de contínuo as frioleiras
Belmiro em ditirambo, o ex-frade em ode;
Eis aqui de Lereno as 4.ªs F.ªs

As referências africanas são três e duas delas remetem para o espaço que hoje é Angola. A rainha Ginga não tinha, pelos vistos, grande prestígio em Portugal. Se tivesse, o autor não usaria a menção ao seu nome para desprestigiar o alvo. Mas isso quer dizer que havia ali memória dela. O “mandinga” era já associado à feitiçaria, à magia negra, como parece estar sugerido aqui e, por vezes ainda, nas páginas do Diário de notícias de Lisboa, onde os ‘mestres’ que tudo curam gostam de conotar-se com mandingas. A banza é, como se sabe, uma palavra angolana até hoje, mesmo a m’banza do Miranda contada por Arnaldo Santos. Mas a este ponto voltaremos ainda, mais à frente (v. «Afinidades lusófonas e locais»), estudando as intertextualizações angolanas do século XIX com a lírica de Bocage.

São talvez o amor ardente e experiente, a autorreferência atormentada (“ó Céus! Que sinto n’alma! Que tormento!/Que repentino frenesi me anseia!”) e a estética da língua portuguesa, a par do mito pessoal (Carvalho, 2010), o que mais prolonga até ao fim do século XIX a popularidade de Bocage. Num Ensaio sobre o parnasianismo brasileiro, Duarte de Montalegre chama várias vezes a atenção para isso e lembra que o próprio Bilac dedicou um comovente soneto a Elmano, onde o trata por “Mestre Querido” (Montalegre, 1920).


O amor à língua portuguesa, que é uma das caraterísticas elogiadas por Bilac no soneto a Bocage, ter-se-á revisto igualmente nas Obras de Filinto Elíseo (Francisco Manuel do Nascimento; 1734-1819), que também circularam por Angola, fazendo parte do acervo bibliográfico benguelense do comerciante José Luís da Silva Viana (numa edição das Obras em 22 volumes).

Apesar das críticas que lhe foram movidas, encontrei no Recife mais três anúncios das suas obras poéticas do que das de Bocage. Isso, ainda que dado muito relativo, demonstra a influência do acabado modelo poético do neoclassicismo português. Ele foi, depois do Bocage, o que mais influenciou as gerações seguintes, pesem embora as reservas de Castilho, subscritas por Bilac e Passos. Podemos dizer que o século XIX lusófono se dividiu entre a devoção a Filinto Elíseo e a devoção a Bocage, muitas vezes se opondo ambas. Elíseo foi admirado por Herculano e Garrett e, de forma geral, pelo domínio, pureza e vernaculidade da língua. Foi admirado ainda por Gonçalves de Magalhães, que lembra o exilado e patriota em Paris. Em 1884, Pereira da Silva o elogia com entusiasmo e detalhe (Silva, 1884 p. 401). Entretanto, o seu prestígio, na perspetiva de Fidelino, deve ter-se confinado “estritamente na influência estilística” – do que também suspeito, ao fim destas leituras. Há talvez algo desse estilo e de Herculano, por exemplo, nos dois poemas de A. J. Nascimento publicados no Almanach de lembranças e atrás referidos. Mas há mais: uma austeridade que disciplina o verso a par do raciocínio e da sensibilidade.

Para além do estilo, outro fator tê-lo-á tornado simpático aos primeiros românticos. Ele foi dos que menos apelou às personagens de papel oriundas da literatura greco-latina e que não tinham nenhuma correspondência viva – estavam mais mortas que as línguas onde se fixaram. Por justas razões a sua poética passava, portanto, para o bojo do próprio romantismo. Ora, essa poética transcrevia tragédias de “João Racine” (admirado por Chénier) e de La Harpe, cartas de Voltaire (odiado por Chénier e vários outros), uma elegia de Tibulo (outra leitura típica de Chénier, “a doçura de Tibulo” – na palavra de Marcial) e de Longino (o sublime), enquanto “recapitulava em epístolas críticas a estética de Horácio”, referência das nossas fontes e do romantismo moderado como o de Chateaubriand e Chénier (aliás, mesmo Victor Hugo, apesar de o ter lido por castigo, o admirava como a um companheiro mais velho).


Outra presença portuguesa importante em Angola e no Recife era a da Marquesa de Alorna (Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre, também condessa de Oyenhausen e de Assumar; poetónimo: Alcipe; 1750-1839). Álvaro Manuel Machado considera-a “fundamental” na passagem da poesia portuguesa “para o pleno romantismo” (Machado, 1986 p. 16). Ele refere um texto de Alexandre Herculano sobre o assunto, publicado em O panorama em 1844 – periódico e ano significativos para José da Silva Maia Ferreira.

Encontravam-se ainda, nos anos em pesquisa, um exemplar da edição de 1844 no Gabinete Português de Leitura e outros (da mesma edição) em Luanda e Benguela. No exemplar de Luanda (a que faltam o vol. I e o VI) incluem-se Epístolas e Odes, Elegias, Canto Fúnebre, Égloga, Sonetos, Cantata, Hymnos, Paraphrase dos Versos de S.ta Thereza de Jesus, Pensamentos [em verso], Cantigas, Sextinas, Apólogos, Epigramas (incluindo um em francês), Décimas, Quadras. O volume V inclui a “Arte Poética de Horácio”, o “Ensaio sobre a Crítica” de Pope (escrito em verso, sob influência de Horácio e Boileau), o Roubo de Prosérpina de Claudiano.

A maioria destes títulos nos remete para o ambiente neoclássico sem nenhuma surpresa (incluindo nele o que podemos conceituar como pré-romântico). De entre textos críticos ou teóricos há dois a destacar: a “Arte Poética” de Horácio, poeta maior da sua predileção, que os leitores no entanto podiam apanhar em várias outras edições; o “Ensaio sobre a Crítica”, de Alexander Pope (1688-1744), que era mais difícil encontrar e de que tirou Maia Ferreira a epígrafe para a o texto de entrada («Às minhas compatriotas») das Espontaneidades, como observou Francisco Topa. Por ser mais difícil e porque falei de Horácio já, centro-me agora no que podia significar a leitura da obra de Pope.


A tradução da Marquesa de Alorna veio chamar a atenção dos intelectuais lusógrafos para a vertente anglófona da metaliteratura, que andava encoberta sob o espesso manto racional do neoclassicismo francês. Assinale-se, por exemplo, o contraste com Verney, referido a seguir.

O nome do autor traduzido era cotado no Recife pelo Ensaio sobre o Homem e pela História da Grécia (de que não vi nenhuma referência na sua bibliografia). A 27 de Julho de 1801 foi proibida, por decreto, a leitura e circulação do Ensaio sobre o Homem no espaço lusógrafo, pelo que a obra adquiriu ainda, décadas mais tarde, a aura das doutrinas reprimidas. Entretanto imprimiu-se, em 1817, uma tradução de A. Teixeira desse “poema filosófico”. O catálogo onde vi a menção à obra não indica o editor, nem o lugar de edição, mas consta da lista de livros que se vendiam numa livraria do Cais do Sodré, lista que vem no final da tradução da Arte poética de Boileau feita pelo Conde da Ericeira. À circulação dessas obras podemos acrescentar a versão portuguesa do ensaio crítico de Pope. Com ela redobravam de prestígio os nomes de Homero, Aristóteles (mas não dos tomistas e scottistas), Horácio, Petrónio, Longino, Erasmo, Boileau – tidos por mestres. As citações das notas passam por La Bruyère, Racine, Quintiliano, Horácio, Virgílio, Platão, Homero. Mas isso não é tudo.

A tradução de Pope, que achava o patriota em qualquer época um tolo, tem paradoxalmente aspetos em que os românticos se podiam comprazer. Por exemplo quando expõe a teoria de que as “escholas” (literárias) são a causa da perda do saber: “no labyrintho das escholas quantos / Desvairando se perdem!”. Apesar de atido à consciência dos limites das “cousas”, presa voluntária da “sábia Grécia”, o poema tem afirmações essenciais (ainda que de pouco efeito estético) agradáveis para um poeta romântico: “vida, força e belleza nos reparte, / Que são origem, fim e prova d’arte”. É mesmo isso que parte significativa da poética romântica vem reclamar: “vida, força e beleza”. Sendo possível, ironicamente, com dois “ll”.

A origem e fundamento da crítica, segundo Pope, é que já seria só partilhável (em parte, justamente) com o romantismo: “da Crítica o germe n’alma existe: / Certo clarão dispende a natureza; / Linhas ligeiras traça, mas direitas; / Esboço ténue, porém bem traçado”. A crítica romântica era tipicamente biográfica e escrita com maior lirismo. No jornal Polícia africano (1890-1891), Mamede de Sant’Anna e Palma publica uma extensa recensão aos Delírios de Cordeiro da Mata, com data de “Loanda, 19-5-89”, que é um exemplar caraterístico da crítica biográfica (resumido ao formato do jornal). Não podemos dizer que haja nesse artigo linhas muito direitas ou bem traçadas, parece antes escrito ao correr da pena, com alguma correção posterior. Neste aspeto Pope estava bem nos antípodas.

Além de biografista, o romântico era muitas vezes o visionário, pretendendo teorizar para lá dos limites das coisas. De maneira que não partilhava a subordinação ao realismo clássico, a circunscrição aos “limites próprios [...] / Com os quais sabiamente a Natureza / Quebra a esperteza vã do presumido”. O juízo crítico dos românticos não a seguia assim, porque muito menos pensava que ela fosse “a mesma, certa, invariável”, de uma constância descoberta já pela “Antiguidade” – que desde a Grécia lhe fixara as “úteis regras”. As regras que, respeitadas, ajudariam a evitar os “extremos” a que um romantismo adolescente e esfaimado se atirou.

Porém, mesmo sem fazer equivalência entre “Homero e Natureza”, o romântico podia partilhar o “esboço ténue”, o “clarão da natureza”, a “vida, força e belleza” nas suas imagens. Só que fugia da régua, das linhas direitas e bem traçadas a que Pope associava tais palavras pela visão racionalizante do legado clássico greco-latino. A fuga (para a frente) amparava-se numa outra prática regulada por Pope: as obras deviam ser lidas “no espírito do mesmo autor que escreve”. O que os leva (a Pope, aos românticos, a Castilho, já para não falar do antigo mestre Longino), o que os leva a perceber que é preferível (aos “grandes génios”) “errar com glória”. O que os leva também a depreciar “[...] versos sem fluxo nem refluxo, / Corretamente frios, sempre baixos, / Que evitam erros, sem tropeços marcham”. Nesses “não há que criticar – dormir podemos”. O que os leva, ainda, a reconhecer “o que em juízo [...] / Mais toca os corações, surpr’ende as almas, / Não consiste na exatidão das partes”. Pope está nesse aspeto próximo (por antecipação) do estruturalismo: o que interessa é “a força junta, o pleno resultado / das partes todas / Constitue o belo”. E do belo não fazem parte as “bagatelas”.

O sentido do vigor, da força das paixões, também terá contribuído para a popularidade de Pope no primeiro romantismo, agora por via da carta Eloisa a Abelard. Escrita, possivelmente, em 1717, ela foi conotada com uma paixão breve, juvenil e malograda de Pope. Mary Wortley Montagu era o seu nome. A conotação deriva, como sempre acontece, de coincidências biográficas. Ambos se conheceram em 1715, tornando-se amigos e, no ano seguinte, ela partiu para fora de Inglaterra. Em 1717, numa carta com data de Junho, Pope envia-lhe o poema dando a entender que o sentimento representado na parte final é também o seu depois do afastamento dela. Nestes casos, fica sempre no ar ambiguidade suficiente para não sabermos se ele aproveitou a composição do poema para aplicar a uma situação concreta ou se foi o contrário. Enquanto o ovo não põe a galinha, vamos, no entanto, percebendo motivações literárias neste nosso contexto.

Há muito já que o romance de Abelardo e Heloísa inflamava as mentes na Europa. Reporta-se ele a um caso real, vivido no século XII, entre dois grandes intelectuais católicos. Ele é, ao mesmo tempo, trágico e revela o papel grotesco de certas instituições ligadas à Igreja católica, ou pelo menos de pessoas que as dirigiam. Paul Zumthor, com a intuição e o rigor que lhe conhecemos, abordou a tradição escrita que se reporta ao caso. Ela baseia-se em manuscritos que foram todos reunidos como uma espécie de ‘obra’, pretensamente recolhendo os textos originais, e que se terá criado num convento, espalhando-se a partir daí.

Em 1280, Jean de Meun adaptava a Historia calamitatum (a primeira parte da documentação reunida, fosse ela fictícia ou não) a um título que, sofrendo uma ligeira alteração, se tornou famoso no final do século XX: Roman de la rose. O famoso poeta e libertino medieval François Villon (François de Montcorbier, ou François des Loges) não perdeu a oportunidade e consagrou-a em verso. Mas é sobretudo no século XVIII que surgem uma série de versões da estória (era já estória). Zumthor, entre o final do século XVII e o princípio do século XIX, teve conhecimento de “treze imitações mais ou menos livres em prosa e onze em verso, duas contrafacções burlescas”. A estas se podem acrescentar outras com maior grau de intertextualização e menor grau de imitação. Zumthor refere “que se podem acrescentar narrativas mais originais, como a que Rodolphe Toepffer inseriu em suas Nouvelles genevoises” e lembra que (“não por acaso”) Rousseau deu título de Nouvelle Heloise, como sabemos, a uma das suas obras, que aliás circulou bastante no mercado lusófono. Dá-nos também notícia de “dois romances um pouco posteriores [que] versam sobre esse tema, um anónimo, o outro de Restif de la Bretonne, Le Nouvel Abailard (1778-1779)”, que também vi nas fontes por mim consultadas mas de que não reencontro a referência. A série termina num romance do medievalista (Les puits de Babel) publicado em 1969 (ou terminava, na altura em que ele fez o estudo). O mito fervilhou de tal forma em Paris, ao longo do século XVIII, que no final do século se ergueu no Père Lachaise um túmulo aos dois amantes!

É nesta longa série que inserimos a motivação literária de Pope, reforçada ou não pelo convívio com a senhora Montagut. Da série de documentos reunidos no século XIII faz parte uma carta de Abeillard a um amigo, na qual relata a sua história de amor e o estado em que se encontra. Essa carta teria chegado às mãos de Heloísa, como se resume na introdução ao poema de Pope, resolvendo-se ela a responder, sob o incêndio do Amor e debatendo-se entre o que sente e os votos de monja que fez (incluíam, como se sabe, dedicar a sua vida apenas a Cristo). Essa é a carta de que Pope nos apresenta uma versão.

A carta foi traduzida e vertida para português várias vezes. Uma das versões registadas nas fontes é a do matemático José Anastácio da Cunha:  Cartas de Heloísa a Abailardo, e de Abailardo a Heloísa (Cunha, 1822). A ele tem sido, ora atribuída, ora rejeitada a autoria de A voz da razão, que o Diário de Pernambuco anuncia em 1832 no Recife e de que não vi nenhuma referência nas fontes angolenses. O que surge, em Luanda, é a edição (também póstuma) das Composições poéticas (Cunha, 1839), onde se inseriu A voz da razão, ali atribuída ao matemático pelos editores (Garrett?). Entre muitos outros atributos foi o famoso leitor de Newton um poeta erótico e as cartas dos amantes o terão também atraído por isso.

Outra versão terá sido a de Bocage, também ele autor de poemas eróticos. Estes dois nomes servem já para ilustrar o potencial romântico da estória e da carta, pois se trata de dois autores portugueses apresentados como de transição para o romantismo, ou pré-românticos, ou tendo composições onde notamos traços característicos da sensibilidade romântica, ou 'moderna'. Uma terceira tradução – na verdade uma terceira versão, se bem que a de José Anastácio ficou muito próxima do original – divulgava-se no Jornal do comércio em 1830, assinada por “**Mos”, que vem a ser José Nicolau Massuelos Pinto. O autor da versão pertencia a uma família bem posicionada, já brasonada em Portugal e que entrou aí, vinda de Hespanha, durante o século XVIII (o ascendente que entrou no reino português, que aí se casou com uma portuguesa, chamava-se D. Pedro de Torres e Massuelos). Foi feita em heptassílabos, com ritmo grácil e vocabulário simples, pelo que deve ter sido bastante lida. Ficou, no entanto e sobretudo no aspecto semântico, muito afastada do original.

O que todas as versões e tradições respeitam e vem já do original, não de Pope, mas do século XIII (ou mesmo XII), é a estrutura sobre a qual se alicerça a principal fonte de tensão, expetativa e produtividade semântica da obra. Deriva ela da oposição entre o cumprimento de regras da instituição religiosa e a persistência dos desejos, instintos e afetos que nos ligam a uma pessoa de outro sexo, ou seja: reprodutivos.

Na Idade Média europeia, no contexto específico de Heloísa e Abelardo, conforme lembra Zumthor, essa oposição tinha um significado específico também. Podemos configurá-lo, de acordo com o grande estudioso, na oposição entre a Escolástica e a Cortesia. A Escolástica, de cujo nascimento e consolidação o próprio Abelardo teria feito parte, racionalizava tudo o que pudesse chamar de verdade ou realidade. A ligação que promoveu entre razão, filosofia antiga (sobretudo aristotélica) e mensagem bíblica reduzia, por essa formalização racional, a vida do espírito às capacidades do raciocínio reguladas pela herança clássica já filtrada (não a de Ovídio, nem a da época helenística – para dar só dois exemplos de filtragem). Por esta redução à racionalidade, acompanhada pela vivência fechada (no circuito fechado dos conventos), mística e muito próxima da escrita, as pessoas que a ela aderiam encaminhavam (por sublimação, diriam os freudianos) as energias físicas e emocionais numa só direção, que permitisse religar o Homem, pelo purificação racional, ao Ser divino e, portanto, infigurável – de onde se deduzia que nunca sensual. Aquilo que não fosse passível de racionalização ficava fora da linguagem, do sistema cultural e, portanto, da existência legal, admissível, portável. Esse ‘outro lado’, que os freudianos iriam furiosamente resgatar no século XX, veio a representar-se e construir-se por uma linguagem mais poética, mais emotiva e misturada com a vivência subtil da Corte. Nela nasceram regras finas e muito requintadas de convivência e de escrita em que, apesar da codificação intensa, ou até potenciados por ela, os trovadores puderam expandir toda a sua teoria mística do Amor e aproximá-la da rítmica popular, da oralidade e das tradições heterodoxas a partir de então cada vez mais militantemente banidas e, ao mesmo tempo, secretamente expandidas.

Mas uma das caraterísticas da Poesia vem da intensidade da sua aposta em configurações que sugerem resultados diversos em contextos diferentes, ou mesmo só em pessoas diferenciadas. Isso é que a mantém viva ao longo dos séculos e nas mais diversas sociedades. A tensão criada naquela polaridade cultural, uma vez que as premissas básicas da polaridade se mantivessem, funcionaria sempre. As premissas básicas, em geral, estão mantidas: os afectos e as razões, o instinto e a lógica, a liberdade e a autoridade, a paixão e o cálculo, continuam constituindo paradoxos no nosso tempo. Na verdade, há uma premissa que faz parte da vida: chega sempre um momento, ou instante, em que temos de escolher e nos apercebemos dos perigos trazidos quando vamos ‘onde nos leva o coração’. Podemos decidir-nos por um lado ou por outro, ‘apagar’ um dos lados como fizeram os escolásticos e os freudianos, mas o sentido de sobrevivência e o instinto reprodutivo continuarão muitas vezes opondo-se na vida ‘real’. No romantismo a balança pendia (por compensação histórica) para o lado dos sentimentos, dos afectos, em particular para o triunfo do Amor sobre a razão social ou qualquer outra limitação que se lhe impusesse. Como vemos pelo estudo das novelas setecentistas, e por peças como esta de Pope, bem como pelo índice de casamentos clandestinos e relações proibidas (incluindo no interior dos conventos), o século XVIII foi já de reivindicação do Amor como fonte da moral e, portanto, como regra ou lei. Nessa medida ele preparou também o romantismo.

No Romantismo foi esta oposição tão popularizada e canónica que se releu o mito de Heloísa e Abelardo à luz dela. O amor impossível dos dois, a consciência do pecado que Pope tão bem explora a par da fatalidade do amor, ou da paixão, jogam o leitor numa tensão que repõe a força da estória original, a revigora e sustenta a circulação da peça, com as respetivas versões, nos mercados bibliográficos portugueses e brasileiros – como também no angolense.


O romântico não era, no entanto, a única personagem literária típica do século. Como sabemos, o século XIX também deu continuidade a uma linhagem crítica, de aproximação à natureza mas orientada um raciocínio sôfrego de regularidades e vamos vê-la ressurgir, na nossa bibliografia, transfigurada pela estética naturalista portuguesa que chegou a Angola.

A circulação das obras da ilustrada Marquesa contribuiu para a continuidade desta linhagem crítica. Mas havia nela referências indissociáveis do romantismo. Ainda nas Obras completas, no vol. IV, faz uma “imitação livre da 28.ª Meditação de Lamartine, intitulada Deos”. As “imitações” são sempre acompanhadas da edição na língua original. Dão, portanto, a conhecer também a obra imitada. A presença de Lamartine, que noutro espaço comento, é mais um traço de união entre a Marquesa de Alorna e o específico romantismo angolano – que a liga também a todo o romantismo português, incluindo a Antero de Quental, o realista romântico. O facto de ter escrito um soneto e uma epístola a Lord Byron, outro mito do romantismo lusófono, reforça a curiosidade sobre ela. O interesse pelos clássicos (traduz fragmentos da Ilíada) mistura-se com versões de Darthula (“poema traduzido ou imitado de Ossiano” – este numa edição unilingue) e Oberon (traduzido do alemão por Wieland, não-bilingue também).

Há, portanto, muitos pontos de contacto entre a sua obra e o romantismo, que desfazem o efeito anacrónico inicial da sua presença nas listas bibliográficas pesquisadas. Esse efeito estava, de resto, esbatido pelas datas de publicação das suas obras no próprio século XIX.


Luis António Verney (1713-1792) é outro nome constante das nossas fontes. Dele se referencia no Recife, nos anos de 1831 (em oferta à Biblioteca Pública de Olinda) e 1832 (em anúncio do Diário de Pernambuco), a “Philosophia Rationalis” e, em 1837, a Gramática Latina (Verney, 1758). Não se considere esta última uma simples gramática, pois veiculava toda uma conceção cartesiana da língua e, consequentemente, do que devia ser a sua gramática. Segundo Pedro Calafate, Verney defende nessas páginas “a concepção de uma ordem natural das palavras na sintaxe, comum a todas as línguas, tese nuclear das gramáticas cartesianas do séc. XVII, como também da gramática generativa contemporânea” (Calafate, 2011).

Não apanhei menções ao Verdadeiro método de estudar (1746), mas é bastante provável que ele fosse lido no Recife e em Luanda, ou Benguela. De qualquer modo é a obra representativa, não só do seu pensamento estético, também de uma estética de época – e isso faz com que a aborde aqui – justamente no que à poética diz respeito.

No Verdadeiro método de estudar (Verney, [1984]; Verney, 1991) segue uma definição imitativa típica, nomeadamente ao afirmar que “a poesia é uma viva descrição das coisas que nela se tratam”. Fidelino de Figueiredo lembra, na História da critica literária em Portugal, que estávamos perante “a fórmula do velho António Ferreira” e fala também de Horácio (Figueiredo, 1916 pp. 63, 64). No que diz respeito ao classicismo da definição, ela confirma a genologia aristotélica. Isso era típico do seu tempo e das ideias que perfilhou (Silva, 1971 pp. 142-160). Esse tempo teve os respectivos tratadistas e, com razão Fidelino fala, a propósito, da poética de Boileau e do Cavaleiro de Oliveira (Figueiredo, 1916 pp. 64, 63).

A imagem da “viva descrição” deve-se a uma perspectiva aparentemente empobrecedora, mas por igual coetânea: “a Poesia é uma retórica mais florida”. É preciso dizer que “florida” não remete, mesmo em Verney, só para mais figuras de estilo, mas para a causa desse aumento, que vinha da imitação da vivacidade expressiva, cuja, por sua vez, havia de vir da intensidade do sentimento e havia de sugeri-la também. Neste ponto, não se afastava tanto quanto parecia do “furor” das musas, anos depois o do génio – só que o via pelo aspecto concreto e frio da retórica. A sua visão de poesia e de género mostra-nos, aliás, um horizonte teórico oscilante, a dualidade problemática de um discurso voltado ainda para a crítica ao fim do período barroco e já apontando, na discussão sobre o “engenho”, argumentos que mais tarde servirão para resistir aos impulsos românticos, ou para com eles se confundirem, nomeadamente os que se prendem com a necessária subordinação do “conceito engenhoso” à “verdade”. O que o romantismo vem mudar é, muitas vezes, o rol de conceitos básicos gravitando à volta de substantivos abstractos e nucleares como «natureza», «autênticidade», «verdade». A verdade neoclássica era iluminada pela voz clara da razão e sentida como autêntica por isso mesmo. Não coincidia só com a vivência interior, aquela que os românticos entendiam como contrária à voz da razão. Em vez de autêntica podemos dizer aliás real, melhor, imitativa da natureza humana ou não-humana. Uma vez que o mundo estava organizado, a obra reflectiria, na sua arquitectura, a ordem natural das coisas. Havia na arte uma função de ilustrar, tanto quanto de imitar.

Por isso Verney reparava no aspecto construtivo do texto e verberava as “ridicularias” barrocas, onde faltaria o senso das boas lições de retórica. O apelo dos iluministas ao equilíbrio pela racionalização reage, sobretudo, à artificialidade bacoca anterior. Tal senso fazia falta ao nível macro, mas também microtextual. Apesar da visão florida, ele denunciava como artificiais e forçadas as imagens do vocabulário artificioso, amaneirado, nomeadamente no que diz respeito a figuras do velho paganismo, sobretudo quando aplicadas a assuntos corriqueiros. Nisso antecipa, sem querer nem saber, a sensibilidade romântica, inicialmente alérgica ao mofo, ao bolor e ao bafio do barroco requentado. O objectivo comum prende-se com a noção de autenticidade poética. Contrariamente à barroca e à romântica, a sua regula-se, para atingir o real, pela razão esclarecida e pelo bom senso. Está próxima de “uma realidade observada cientificamente” (a naturalista, por exemplo defendida por Júlio Lourenço Pinto) (Mendes, 1980 pp. 69, 81). Por motivos diferentes ela, tal como a romântica, ridiculariza tudo o que não for sentido como real – daí a exclusão de mitos e figuras que já só tinham existência literária, que eram letra morta de uma língua que, por isso, devia morrer também. Só o conceito de autenticidade muda.

Pelos mesmos motivos, o engenho é verdadeiro e bom (verdadeiro pela verosimilhança e bom pela semelhança das ideias), se não se basear na semelhança de palavras, sílabas e letras (artifício caraterístico do período barroco). Tal semelhança romperia a ligação com a realidade, a natureza, tal como teorizadas pela enciclopédia iluminista e só tinha, também ela, existência literária. Tive oportunidade de verificar que, pelo menos em comunidades literárias como a de Angola do século XIX, tais preceitos não foram respeitados por poetas românticos ou ultra-românticos. Entre eles encontrei também práticas de charada incluídas em poemas. Para além das explicações históricas e circunstanciais, dominadas pelo cruzamento entre o barroco luso-brasileiro e as tradições bantos, a emergência desse tipo de práticas mostra que os românticos lusófonos estiveram menos afastados delas do que os neo-clássicos. Ainda assim, a poética do romantismo rejeitou explicitamente, em nome da autenticidade expressiva, todas as engenhocas barrocas, incluindo as metaliterárias. É o meramente literário (excepção feita a Novalis) que os afasta, junto com Verney, das práticas anteriores em nome do real e do actual. O que o romantismo veio trazer de novo foi essa visão da poesia e da história literária que transformou a conceituação dos seus termos-chave (Silva, 1971 p. 160). No caso português, pelo menos, a transformação conviveu com o decalque substancial do “esquema elaborado pelos árcades sobre a evolução da nossa poesia desde o final do século XVI” (Silva, 1971 pp. 166, 167-174).

A aliança entre a retórica neoclássica e a arte é, no entanto, um dos fatores que distanciam a poética romântica do «Verdadeiro Método». Ela só não torna balofa a arte por causa da já citada subjugação do engenho ao juízo. Feita para criticar o poeta barroco e bacoco, essa fórmula era justamente a receita que se iria antepor à romântica, onde haveria “furor” mas não “gravidade”, nem “juízo” para aplicar o engenho (a capacidade de criar imagens) “onde deve” (Verney, [1984] p. 131) – como também diria Cavaleiro de Oliveira. Entre barrocos e românticos, apesar da rejeição do barroco pelo romântico, havia um desequilíbrio, uma irracionalidade, que afugentavam o racionalismo de Verney.

O juízo tem uma tripla função nesta fórmula racionalista:
1.ª) serve para aplicar correctamente as “ideias semelhantes e agradáveis” (as desagradáveis ficavam para os românticos – e no entanto para Bocage também);
2.ª) serve para conjugar os conceitos de semelhança (que estava na base das metáforas) e de verosimilhança (o parecer verdade, em que ela é tão importante quanto os nossos condicionamentos culturais e, portanto, quanto o leitor);
3.ª) serve para regular, pela correspondência das imagens com uma visão iluminista da natureza, essa conjugação dos dois conceitos, de modo a produzir imagens belas e credíveis ao mesmo tempo.
O bom engenho, para além de controlado assim pelo juízo, é definido numa rigorosa equidistância em relação ao “engenhoso” barroco e ao “genial” romântico: ele sabe regular a invenção, a aproximação e a comunicação das imagens, dando vida às ideias correctas mais do que aos truques da linguagem. O mau engenho (na verdade o falso engenho) consistiria em copiar mecanismos, instrumentos e ideias dos outros — havendo ainda um terceiro tipo de engenho, o misto. Mas mesmo aqui, no seio desta equidistância, pela defesa da importância das ideias (dos conteúdos) face à elocução, ainda que num relacionamento sempre condicionado pelos conceitos de semelhança e verosimilhança, e pela crítica à mera reprodução de achados alheios (apesar da imitação dos bons modelos), o discurso de Verney estabelece mais algumas pontes com as teorias românticas posteriores.

Na classificação dos géneros, o neoclassicismo parece esmagador. Desde logo pela distinção entre poemas dramáticos e narrativos, onde retoma a diferença aristotélica entre Epopeia e Drama, que integra e supera a de Platão: no dramático temos acção viva, no narrativo o discurso apresenta-se sozinho, sem acção viva (Aristóteles diria que o dramático se realiza “mediante as pessoas imitadas, operando e agindo elas mesmas” (Aristóteles, 1998 p. 106)). Isso devia levar a uma denominação diferente, entre modo mimético ou dramático e modo discursivo, se não estivéssemos no século XVIII e se o desenvolvimento do raciocínio não fosse barrado pela diferença entre imitação de acções e de estados de alma (Guerrero, 1998).

No dramático entram a Comédia e a Tragédia e no narrativo (que tanto é o de Platão quanto o de Aristóteles) é feita a separação pelos contextos comunicacionais: “poesias que se cantam” (odes, hinos, cantigas), “as que se lêem” (doutrinais, como os poemas do epicurista Lucrécio e a Física de Epicuro; históricas e oratórias) e os “panegyricos” ou género demonstrativo (“epitalámios”, “epicénios” ou “apoteoses”, todos cantos de louvor — o primeiro aos que se casam, o segundo a “outros”, o terceiro aos deuses).

O tipo de classificação e os exemplos, é fácil de ver que estão marcados pela cultura greco-latina de forma decisiva e com o formato que o neoclassicismo lhe dava, muitos séculos depois das lições de Platão, Aristóteles e Horácio. A esse propósito vale a pena comparar a genologia desenhada por Verney, a régua e esquadro como o Terreiro do Paço, com a de Cândido Lusitano (Francisco José Freire), que Fidelino de Figueiredo comenta com entusiasmo e que está representado nas nossas fontes pelo Dicionário poético.

A classificação de Freire é também a da tríade romântica e ainda a dos modos platónicos, não ignorados por Aristóteles: dramática ou representativa seria a obra em que o autor “se occulta”, cedendo ao cenário da enunciação às personagens; lírica seria aquela em que só fala o autor (fica, portanto, no lugar do modo narrativo simples de Platão); épica, se as duas modalidades enunciativas se apresentam juntas. O critério distintivo não é bem o mesmo de Verney, porque mais próximo das modalidades platónicas e da conversão de uma delas à lírica. A sua genologia aponta mais, por isso, o passado e ao mesmo tempo o futuro. O próprio Fidelino compara o quadro genológico de Cândido Lusitano com o de Lacombe, que teria seguido “o mesmo critério”, remetendo-se em nota para a Introduction à l’histoire littéraire, de 1898 (Lacombe, 1898). A comparação repete-se em A crítica literária como ciência (com nota a citar a p. 43 da História da Crítica Literária em Portugal) onde Lacombe é comentado em pormenor (Figueiredo, 1920 p. 24).

Fidelino de Figueiredo é precoce também, dado o seu sentido crítico. Antecipando em várias décadas a crítica de Genette, aponta a Francisco José Freire o não ter percebido que “os antigos e os poetas e críticos da Renascença nunca quizeram significar com o termo poesia épica o processo duplo, ora dramático ou dialogado, ora de narração pelo poeta; olhavam principalmente aos caractéres impressivos, grande e elevada acção, ser obra para se ler e não para se vêr representada” (Figueiredo, 1916 pp. 74-75). Pelo que Fidelino propõe a terminologia de literatura subjectiva, dramática e mista para esses modos, num esboço que será ampliado em A crítica literária como ciência (Figueiredo, 1920 pp. 25-26), visando ultrapassar a “restrição de” o romantismo, com a sua “confusão de géneros”, ter tornado obsoleta a classificação. Sendo embora essa a restrição, a resposta que lhe dá aproxima-o da classificação de Verney, curiosamente. Passado já o romantismo, a reavaliação crítica do século vai regressar, em parte, aos neoclássicos…


As Poesias de Paulino Cabral de Vasconcelos, o Abade de Jazente (1719-1789), foram anunciadas ainda no comércio recifense. Porém, só lhes encontrei uma referência, no Diário de Pernambuco, em 1845. Este árcade foi diferente dos outros: recorria a uma linguagem mais simples e menos afetada em muitos poemas, com muito menos referências às mitologias de papel herdadas da Grécia e de Roma, um pendor satírico próximo da oratura popular portuguesa e muitas imagens campestres que me parecem verosímeis, ao invés das de Rousseau. Ele foi popular em Portugal, mas não terá tido grande saída no Recife do século XIX e de Angola não há nenhuma notícia para os seus livros.


De José Anastácio da Cunha (“independente das academias” e “Lente” de Matemática na Universidade de Coimbra), a quem se atribuíram “epístolas racionalistas de Bocage”, anunciava-se no Recife, em 1832, a multifacetada A voz da Razão. Na antiga Biblioteca Municipal de Luanda conservaram-se as Composições poéticas do Doutor José Anastácio da Cunha, coligidas então pela primeira vez (pelo bibliófilo Inocêncio Francisco da Silva) e impressas na Tipografia Carvalhense (Cunha, 1839). Fidelino de Figueiredo dá-o como desconhecido até 1809, mal conhecido depois, apenas lhe referenciando “algumas poesias publicadas numa anthologia” (a Coleção de poesias dos melhores autores portugueses, editada em Lisboa entre 1809 e 1811). Em 1819 publicou mais dois poemas inéditos e um repetido no Investigador português em Londres (Figueiredo, 1923 p. 12).

Nasceu ele em Lisboa em 1744 (as Composições poéticas, de 1839, dizem 1742) e faleceu em 1787. Teve uma vida acidentada e uma profissão considerada pouco literária (Tenente de Artilharia), chegando a ser condenado pela Inquisição (o que já era mais poético, ou pelo menos dramático). Entretanto conseguiu reabilitar-se e superar essa crise (Machado, 1979: 51). Foi também “Lente de Matemática na Universidade de Coimbra”, como disse.

A sua lírica suscita um sentimento amoroso de tons eróticos, que terá contribuído para lhe criar um público apreciável. J. P. Coelho (Coelho, 1965 p. 8) afirma que
Garrett não irá mais longe que José Anastácio da Cunha na expressão fremente do amor total, e seguirá os passos de Bocage na descida ao inferno erótico, de alma repartida entre o sentimento de culpa e a sedução do prazer.
Machado acha que a maior contribuição do poeta-matemático (aliás, Lente de Geometria segundo outros autores), para o Romantismo português derivou, não só do erotismo corpóreo (o que me recorda algum Chénier, mas o português chega a ir além disso e é mais direto e popular na nomeação de órgãos e funções), também do gosto que tinha pelos autores ingleses, clássicos como Shakespeare (imitado pelo mesmo Chénier) e pré-românticos como Young. O caráter reflexivo de alguns dos seus poemas terá, eventualmente, marcado escritores românticos que dos outros se distinguiam justamente pelo tom (quando não caráter) reflexivo.

Fidelino de Figueiredo, porém, é de opinião que a sua influência “deve ter sido nula”, precisamente porque as poesias do Lente eram “muito filosóficas, muito interrogadoras sobre a divindade” (Figueiredo, 1923 p. 12). Parece haver alguma incoerência nesses comentários de Fidelino, porque ele também diz – e é verdade – que “em Portugal a revolução romântica foi racionalista” (Figueiredo, 1923 p. 13). A linguagem transparente e simples, a ironia subtil e o humor rasteiro em convivência paradoxal (conforme os poemas), a epopeia erótico-pornográfica inserida em A voz da razão (caso seja de sua autoria), tudo isso terá ficado nos poetas seguintes, assim que ele foi conhecido e publicado com maior abrangência. A sua poesia não foi desprezível e merecia, em meu entender, um estudo aprofundado.

Para nós, Fidelino avança um dado importante: que um dos poucos “escritores então em voga” subscritores da edição de 1839 era, para além de Garrett, Ernesto Marecos. Marecos era ultrarromântico português e veio a criar em Angola o primeiro periódico literário da colónia. Da vivência angolana tirou também a versão em verso lusíada da lenda lunda de Juca, a matumbola (na verdade, devia dizer maiombola). Não estranhemos essas presenças (Garrett, Marecos). Fidelino de Figueiredo reconhece a tais poemas qualidades que os aproximam dos românticos: “a sinceridade no lirismo e um certo poder de análise psicológica, de exame do próprio sentimento, conseguindo assim exprimir estados verdadeiros de paixão. O aparato clássico é mínimo nas suas longas composições, forçosamente longas já por essa auto-observação, já também pela veemência que as tornava insuscetíveis de se vazarem num soneto” (Figueiredo, 1923 p. 13).

As Composições poéticas anexavam uma tradução das “cartas de Heloise e Abelard”, que os editores (Cunha, 1839 p. XII) acham tiradas da “epístola de Pope” que já comentei. Essas Cartas e toda a obra referente ao episódio famoso de Heloísa e Abelardo, mantiveram-se populares durante pelo menos as primeiras quatro décadas do século XIX, incluindo no Brasil (Mançano, 2010 p. 278), ajudando a sustentar a circulação das poesias de José Anastácio.


A bibliografia do polémico José Agostinho de Macedo (1761-1831) registava uma afluência razoável no Recife, incluindo vários livros de poemas e as Obras completas. A Biblioteca Estadual de Pernambuco possui diversos livros seus, da época. No Recife imprimiram-se, em 1836, A Lyra anacreontica : a illustrissima senhora D.M.C.D.V. (Macedo, 1836) e Viagem Extatica ao Templo da Sabedoria / Poema em quatro cantos (Macedo, 1836), ambos na “Tipografia de Santos”. Ele era tão requisitado, nos anúncios de jornais, quanto o próprio Castilho. Em 1825 anunciava-se na régia Gazeta de Lisboa a publicação de um dos seus sermões, pregado em Novembro perante o Cardeal Patriarca e o anúncio incentiva-o a reunir para o público a “Colleção anunciada dos seus Sermões”[6] – a parte mais limpa da sua bibliografia, sem dúvida. A edição veio a lume e era anunciada no Recife em 1837, 1840 e 1845.

O Motim literário (Macedo, 1811) era uma das obras metapoéticas requisitadas à censura para entrar no Rio de Janeiro entre 1808 e 1822, segundo Márcia Abreu (Abreu, 2003 p. 227). Trata-se de uma sucessão semanal de considerações sobre obras e pessoas, feitas sem formulação de um juízo crítico sistemático, coerente, alicerçado pelo menos nas regras do bom senso e do bom gosto. Aí o que vale, como quase sempre neste autor, é a sátira. Melhor dito: “a sua prosa límpida e clara, ao mesmo tempo desprovida de imaginação, e mais de uma vez rasteira, prestava-se maravilhosamente a essa espécie de assalto de espada preta, em que o jogador deve ter o pulso rijo, e o florete perpetuamente em riste.” (Mendonça, 1855 pp. 60-61). É justamente pela sua sátira que ele se tornará conhecido quase até hoje, apesar da deselegância com que tantas vezes manteve “o florete perpetuamente em riste”. Em Benguela, num espólio de 1856, havia um exemplar do “Poema dos burros”, uma das suas mais famosas diatribes contra as vagas liberais e românticas. Portanto, o ódio que lhe votaram pelo comportamento aviltante, por ter sido censor literário (Braga, 1880 p. 85), defensor acérrimo do absolutismo e da repressão contra liberais, maçons, até mesmo contra seus inimigos literários, isso não o prejudicou muito nesse tempo, nem mesmo o fraco poder estético das suas peças.

Polemista, jornalista, sermonista, poeta, tradutor das Odes de Horácio, com alguma pretensão filosófica também, todos estes aspetos estão representados nos mercados em estudo, como se verá no quadro bibliográfico anexo. Ele ocupava uma posição muito própria e talvez isso o tornasse atraente. Entrou para a Ordem de S.to Agostinho em 1778 em Lisboa mas, logo nessa altura, por causa do feitio turbulento, mudaram-no para Coimbra. Aí veio a conhecer o protobrasileiro Santa-Rita Durão, que o iniciou na poesia e nos estudos literários (confessa, na Viagem extática, ter tratado com ele “de mui perto”). Foi várias vezes preso (algumas por roubar livros, que vendia aos alfarrabistas), fugiu do Convento, viveu com meretrizes, atrizes e religiosas (com a última delas até à morte, em 1831), refugiou-se em tabernas e prostíbulos até ser expulso da Ordem em 1788, sendo readmitido e expulso várias vezes, retornando sempre a uma vida licenciosa, devassa e marginal até à expulsão definitiva em 1792: portanto, não era nada santo, nem canónico, para defender tanto absolutismo. Deve ter achado que isso lhe dava jeito.

Era um anticamoniano virulento (“A censura das Luziadas” vendia-se no Recife em 1837[7]), o que também o afastaria dos românticos – tanto quanto o cultivo de sermões, espécie literária que o romantismo português iria relegar para fora do espectro da literariedade, ou converter à mediania partidária numa prática infelizmente seguida até hoje. Integrou a Nova Arcádia (1790-1795), no início uma Academia privi­legiada mas que depois se desintegrou, em grande parte por polémicas que o envolveram, a ele, a Bocage e a vários outros membros (Ribeiro, 1872 p. 23).

Algumas das razões que os seus críticos lhe apontam, resumidas numa carta publicada no Correio braziliense (L., 1817), podiam identificá-lo com os românticos. Entende-se, por essa carta, que são cânones neoclássicos que reprovam a obra de José Agostinho. Alguns deles em nada incomodariam românticos – por exemplo as contradições afetivas e, mesmo, conceptuais, o excesso de paixão e de veemência, algumas sem razões. Outros aspetos ferem qualquer sensibilidade, quer moral, quer estética. Significativo é verificarmos que Almeida Garrett, por exemplo, vai criticar em Bocage que ele não tenha métrica nem ritmo apropriados aos conteúdos, usando sempre os mesmos; isso é mais provável encontrarmos em José Agostinho, que não morria de amores pelos românticos e, muito menos (apesar de um momento de vacilação), pelos liberais.

José Agostinho de Macedo parecia ser neoclássico por antiliberalismo, ou meramente por reação. A própria visão que tinha da poesia, para além dos lugares comuns neoclássicos (ser ela, por exemplo, uma “elegância harmoniosa”), muitas vezes era intrinsecamente romântica. De resto conhecia o movimento. Na advertência aos leitores incluída no poema épico Viagem extática, uma advertência fortemente antiliberal, fala da “poesia romântica dos Alemães”, na “descritiva dos Franceses” e na “Erótica dos Italianos” (Macedo, 1830 p. 12)[8]. Umas páginas antes afirmava (Macedo, 1830 p. 4):
…quando dou o título ao Poema, e o chamo  = Viagem Extática = dou a conhecer que é um arrebatamento, um processo mental, e um sublime delírio, cuja linguagem, e cuja expressão são as imagens.
A teoria da criatividade assim exposta é já uma teoria romântica e o romantismo português teria ganho em desenvolvê-la (a teoria, à qual não me parece ter correspondido a prática). Infelizmente o autor inspirou-se mais em temas menos importantes, usando e abusando da sátira e da linguagem grosseira, pelo que esse arrebatamento geralmente caiu no seu contrário.

Pela sua presença no espólio de 1856 de Benguela, o do “cirurgião médico Joaquim Joze Vieira de Carvalho” (1820, Lisboa; 16-4-1856, Benguela), darei alguma atenção ao poema «Os burros», que foi de resto popular no Recife. O título completo é Os burros ou o reinado da sandice / poema herói-comico-satyrico / em seis cantos. Desde logo revela, quer a veia polemizante (reforçada pela citação legitimadora de Juvenal: “Facit indignatio versum”), quer o hibridismo genológico, algo inusitado para um árcade mas próprio já da época. A edição consultada em Luanda, na Biblioteca Provincial, consiste num pequenino livro de bolso, impresso em Paris, “na oficina de Rignaux”, em 1827 (ano em que nasce Maia Ferreira), mas o poema terá sido escrito, segundo afirma na edição de 1837 (a primeira impressa em Portugal), no ano de 1812 – ano em que saiu das oficinas da Impressão Régia. As datas são muito importantes, porque ele remexia no poema (que chegou a renegar, para evitar processos judiciais) cada vez que republicava. A partir de 1824, ao reaproximar-se dos religiosos, expurgou-o da maledicência relativa a eles, segundo Jorge Pedro de Sousa (Sousa, sd). Nessa edição lida em Luanda, o verso da folha que vem a substituir a capa tem escrito: “Silva Marques”. O exemplar foi oferecido e tem escrito a lápis, na vertical, “Pereira da Silva, pai, 600.00” (em plena folha de rosto). A edição de 1835 é impressa em Paris, mas na casa tipográfica “de Casimir”. Na edição de 1837 diz-se, na folha de rosto, “composto em 1812 e impresso agora pela primeira vez” – mas só foi impresso pela primeira vez nesse ano em Portugal.

O livro elucida-nos acerca das ideias políticas do autor, dos seus conhecimentos literários e das suas opções estéticas. Na p. III do «Prólogo» expõe uma teoria realista, sensualista e indutiva do conhecimento: “as nossas idéas veem todas pelos sentidos” e “dos objetos com que lidámos, e de que somos cercados, veem as nossas propensões e hábitos”. Diz ainda, facto sintomático hoje e significativo já na Angola desse tempo, como no Portugal de sempre, diz ainda que do “cruzar das raças provêem organizações originaes e mixtas”, assumindo pois uma postura que não foi comum a todos os seus pares, muitos deles racistas. Tirando isso, o prólogo vasa o verboso caudal de fel do autor, especialmente quando fala na política.

Diz na folha IV que os burros “fomentaram a maior intriga entre El Rei e seu Filho, matando aos couces o primeiro, quando cuidavam dá-los no segundo: sendo também elles os que separaram o Brasil de Portugal; e enfim os que chamaram os Inglezes para os montar, entregando-lhes os fortes e o reino”. Fica, pois, claro quem foram os burros e por quem foram montados. Para além de uma versão meramente reacionária dos acontecimentos, ele faz uma leitura muito própria (porém, tinha companhia) da presença inglesa em Portugal desde as invasões napoleónicas (essa presença é vista como outra invasão). O elogio ao Marquês de Pombal é coincidente com a filiação nos estrangeirados e a defesa da mestiçagem. Ela pode explicar, em parte pelo menos, a defesa ou elogio do Marquês, que se estende a “Vernei”, o “grande” (Macedo, 1827 pp. I, 15) pelo que diz respeito aos estrangeirados. Apesar disso ironiza sobre quem “vai ver ao Pantheon nacional os ossos / De Voltaire fallador, Jacques mijado” (Macedo, 1827 pp. II, 32) e critica os “ricaços Bretões […] / De Constancio  e Bentham alvares Burros” (Macedo, 1827 pp. II, 37; III, 59), de quem “Assás lições aqui se nos mandaram” (recorde-se que “burros”, na gíria académica, designava também traduções literais de autores clássicos, feitas para a judar os estudantes nos exames). Em nota diz: “Benjamin Constancio, membro da Camara-dos-Deputados, e um dos corypheus do liberalismo” (Macedo, 1827 p. 132). O ódio visceral ao liberalismo, dado como estrangeiro e contradizendo o seu estrangeirismo (o estrangeirismo acastiçou-se!), fê-lo escrever ainda: “que será sem o Times o Palmella[9]? / E sem Constitucional o Burro Abrantes?” (Macedo, 1827 pp. III, 60). Em nota esclarece-nos que se refere ao “Jornal francez o Constitucional”, para onde mandava correspondência política o “sotaina Abrantes” (Macedo, 1827 p. 132). No Canto V equipara o “letrado” Ferreira Borges[10] a Danton (Macedo, 1827 pp. 96-97). No Canto VI, e último, coloca a Maçonaria, a par dos ingleses e dos liberais, ao nível de uma corja, fazendo todos parte da conspiração que trouxe o domínio e demónio britânico a Portugal – o mais antigo aliado...

Estética e tecnicamente há outros aspetos a notar. Em primeiro lugar a composição em decassílabos. Os decassílabos são, ora sáficos, ora heroicos, ora nenhuma dessas coisas, têm só dez sílabas e não são marcados por nenhum ritmo. Há, portanto, algum desleixo nos versos, o que desloca a leitura mais ainda para o conteúdo e o afastará para sempre de qualquer interesse artístico.

Em segundo lugar, é de ler o “Prefácio” da edição de 1837, que substitui o Prólogo da de 1827 mas se diz escrito “neste corrente anno de 1826” (Macedo, 1837 p. 203). Aí faz iguais a sátira e a epopeia, uma vez que acha tão “immortal e permanente” o “nome do piedoso, ou tartufo Eneas nos versos de Virgílio, como é o de Crispino nos oráculos de Juvenal” (Macedo, 1837 p. 201)[11]. Cita, elogiosamente, por esta ordem, Alexander Pope (1688–1744), Horácio (65 AC – 8 AC), Virgílio (70 AC – 19 AC), Juvenal (c. 60 – c.127, ou depois), as Cartas de Cantor (não sei qual deles), Leibniz (1646–1716), Newton (1643–1727), Lucínio (Licínio?), Luciano (de Samósata, c.125–180 ou depois) “e dos modernos Beguier e Boileau” (Macedo, 1837 p. 203). A configuração bibliográfica releva também de um quadro mental típico da segunda metade do século XVIII em Portugal e mostra que o seu problema não era com estrangeiros, mas sim com as ideologias posteriores às que iluminaram o “grande” Marquês…

Afirma ainda, na edição de 1837, que “entre nós o Hyssope” tem uma relação vaga “com estes estúpidos e malvados” (Macedo, 1837 p. 208), pelo que censuraria certamente o livro aos seus admiradores, o que não deixa de ser curioso e emendado mais tarde por outros. Tirando isso não vejo nenhuma alteração de maior importância.

A leitura que faz da história literária e cultural recente fica resumida no Canto VI, onde cita Ovídio também (Macedo, 1827 p. 102):
E que o fulgor da antiga Academia
Na trampa do Instituto converteram:
Os sábios em farcistas se mudaram,
E os paes da Poesia, os da Scena,
Boileau, Corneille, Crébillon, Racine,
Em Febre d’Églantine se transformaram.
 
Cai o pano. E no melhor pano caíra a nódoa.


Destas épocas e mentalidades, anunciava-se ainda no Recife, com uma súbita rima premonitória em Chateaubriand, a Sacro theose: a Beleza do Cristianismo ou o Rosário Místico – “poema filosófico-sacro, em XV cantos”, de Vicente Nolasco. Vicente Pedro Nolasco da Cunha (1773-1844) terá sido “venerável maçónico” (por causa dessa acusação exilou-se em Londres, onde publicou, juntamente com Bernardo José de Abrantes, médico da Real Câmara, o periódico O investigador português). Chegou a ser preso acusado de jacobinismo e era sobrinho de José Anastácio da Cunha. Formou-se em Coimbra, sendo filósofo, físico e racionalista convicto. Dele só encontrei uma referência – mas estava lá (Cunha). Creio ser este o autor da letra do Hino lusitano com que João Domingos Bomtempo (futuro compositor oficial do constitucionalismo português) celebrou em Londres as vitórias sobre o exército napoleónico. O facto nos dá nota da importância que ele tinha na época. Não vi até hoje nenhum exemplar deste livro, nem referência a ele em rede, nos catálogos das bibliotecas consultadas. A restante obra de Nolasco é, porém, pelos conteúdos, bem mais interessante e bem menos conhecida que a de José Agostinho de Macedo – excetuando-se os últimos títulos.

As Poesias do ‘académico’ Elpino Duriense (António Ribeiro dos Santos, 1745-1818), oferecidas em 1840 ao Gabinete Literário também compareciam no mercado pernambucano, mas apenas nessa lista de ofertas. Em Angola não colhi qualquer menção ao nome dele. Não teremos perdido nada, no que à poesia diz respeito. Os seus versos são programáticos, com métrica e ritmo muito martelados. Ficaria, por isso, bem mais conhecido como jurista.

As Rimas de João Xavier de Matos (provavelmente na edição de 1827), anunciaram-se entre Fevereiro e Março de 1837 no mercado recifense, depois de muito terem caminhado por ali e por todo o Brasil. Eram rimas aproximadas à lírica de Camões, a quem as dedica. Nesse aspeto emparceira com o janota e bem disposto Abade de Jazente. Deixaram, no entanto, de aparecer entre as mais requisitadas a partir de 1808.

Também os Poemas do lente Manuel Paes de Aragão Trigoso (1750-1810), Vice-Reitor da Univ. de Coimbra, publicados em 1808, surgiram por uma vez nas fontes pernambucanas e, de novo, ainda bem que assim foi. Não deparei com referências aos seus poemas em Angola.

Os Versos de B. A. de S., Belmiro (Bernardo António de Sousa, “pastor do Doiro”, 1758-1797) compunham o rigoroso ramalhete... Os versos de Belmiro relevam da mesma preocupação formal dos neoclássicos e dos parnasianos. Eles subdividem-se em «Sonetos» (a forma preferida de Félix Machado), «Odes», «Sátiras» e depois as «Éclogas» e «Cantigas» sorvidas do Renascimento português. No tomo II inclui-se ainda uma tentativa de epopeia, chamada «Elizaida, ou o amor vencido», cujo título evoca tanto as novelas neoclássicas quanto as românticas, mas só nisso há alguma analogia, porque o tomo está cheio de «Canções», «Odes», «Idílios» que os românticos deixaram de ouvir. No terceiro tomo repetem-se as façanhas formais, incluindo ainda «Quadras» (estruturas com mote de quatro versos e glosas de dez), «Epístolas», epitalâmios, elegias, romances. O leitor do século XIX tinha, portanto, ao seu dispor, um vasto leque de modelos formais, métricos e rítmicos anteriores e um panorama de rigor técnico que lhe permitia exercitá-los. A perícia técnica revelada por Maia Ferreira (como por Garrett e Castilho em Portugal) talvez não fosse tão versátil e tão notória sem essas leituras.

A Creação do homem e da mulher (Barreto, 1842), do pernambucano Francisco Ferreira Barreto (1790-1851), que chegou a admirar José Agostinho de Macedo, trazia ainda ao mercado pernambucano uma derradeira nota arcádica já dentro do romantismo. A obra divide-se em dois poemas-partes, um dedicado à criação do homem e outro à da mulher. Escrita em versos de cinco (para o homem) e de quatro sílabas métricas (para a mulher), ela responde ao poema «A criação da mulher», de José Bonifácio de Andrade e Silva, o famoso político e orador brasileiro que, felizmente, escreveu poucos poemas. O propósito é o de limpar a história da criação das figuras de papel da mitologia grega, mantendo-a na beleza primitiva da Bíblia segundo a leitura do Catolicismo. Termina assim:

Não nos separe 
Momento algum: 
De dois que somos 
Sejamos um.

Pela facilidade de leitura, pela contemporaneidade da linguagem, a obrinha deve ter sido razoavelmente lida nesse tempo, ao menos em Pernambuco. O autor foi deputado à Constituinte de 1823 e diretor do periódico O eco da Religião e do Império, que também consta das fontes pernambucanas. Publicou uma sugestiva abordagem de um soneto de Bocage, mostrando uma apurada capacidade de análise e de perceção das relações entre aspetos formais e conteúdos (Barreto, 1849). Tornou-se um marco do novo país e o seu poema tem vários pontos de interesse, mas não circulou por Angola, tanto quanto saiba, tal como a maioria dos anteriores escritores de transição.

















[1] António Severino de Avelar, “é tio do Dr. Avellar da Praia Grande”, como diz na carta ao irmão de 8.8.1855.
[2] Leia-se todo o capítulo.
[3] Por exemplo, contribuiu, a partir de Benguela, com 100.000 réis para as “Exéquias fúnebres e Monumento do Exm. Conselheiro Pedro Alexandrino da Cunha”, segundo o Boletim oficial 329 (17-1-1852), p. 2. Era também um (o primeiro da Lista, que não é alfabética) dos negociantes de Benguela autorizados pela Junta da Fazenda (em Luanda) a passar Letras no 2.º semestre de 1852 (Boletim oficial. 358 [7-8-1852] 3). Entrou numa cabala política, sendo então (21-12-1846) Presidente da Câmara Municipal, contra o soba Handa, do Dombe Grande, “contra as suas convicções” e por se encontrar “abandonado da fortuna” (Menezes, 1848 pp. 122-123) – abandono de que, a julgar pelo espólio deixado, recuperou.
[4] Francisco Xavier de Mendonça Furtado, fundador da cidade de Soure no Pará, governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão; militar de carreira, foi para a América socorrer a colónia de Sacramento, precisamente.
[5] Discípulo de Rousseau, considerado pré-romântico segundo Álvaro Manuel Machado - As origens do romantismo em Portugal. Lisboa: ICALP, 1979. p. 35. Uma sua tradução do Paraíso perdido, de Milton, vendia-se no Diário de Pernambuco. Recife. (5-3-1842) 4. Maia Ferreira retira-lhe um verso para epígrafe de um dos seus poemas (Espontaneidades…, p. 142). De Milton não vi até hoje nenhuma referência nas fontes angolanas.
[6] Gazeta de Lisboa. Lisboa. 10 (12-1-1825) 40.
[7] Diário de Pernambuco. Recife: 114 (29-4-1837) 4.
[8] José Agostinho de Macedo – Viagem extática ao templo da sabedoria: poema em quatro cantos. Lisboa: Imp. Régia, 1830. p. 12.
[9] O Duque de Palmela.
[10] Biografado em Revista literária…, 15-8-1838, pp. 137s. A inimizade com Macedo começou quando Ferreira Borges ainda estava exilado em Londres.
[11] Não é gralha: por aí começa a numeração.

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