Moral e teologia

O pensamento político e o filosófico não andavam só misturados com a Economia. A Filosofia, particularmente a política, a Moral e a Teologia compravam-se e vendiam-se juntas, mesmo quando se confrontavam. É comum encontrarmos conservadores católicos e liberais protestantes, por exemplo. 

É o caso de O protestantismo comparado com o catolicismo e suas relações com a civilização europeia, de que havia quatro tomos na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda. Os três primeiros foram publicados em 1876 e o quarto em 1877, todos em Braga e no Porto, pela Chardron. Infelizmente nada encontrei que me ajudasse a descortinar a história dos volumes. O autor, D. Jaime Balmes (Jaume Llucia Antoni Balmes i Urpia, 1810–1848), “presbítero” e teólogo nascido na Catalunha, discípulo de São Tomás de Aquino, representa precisamente uma das correntes do pensamento católico dogmático e politicamente conservador. A antiga Biblioteca da Câmara possui ainda uma segunda edição, em três volumes, da sua Filosofía fundamental, saída em Barcelona (Balmes, 1846). Este exemplar, em espanhol, pertenceu a J. E. de Salles Ferreira (que assina cada um dos tomos), o que o torna particularmente significativo. A mesma obra está representada na mesma Biblioteca através de uma edição lusófona (Rio de Janeiro; Porto; Braga), da mesma data e com o mesmo número de tomos, porém sem nada que nos permita investigar o percurso dos volumes.

Um livro constante nas estantes do Arquivo Histórico Nacional é L’art de se connaitre soi-même ou la recherche des sources de la morale (Abbadie, 1693), publicado em Toulouse, em 1865, pela Société des Livres Religieux (uma edição considerada fiável). A proposta moral do pensador 'protestante' (nascido em Nay e falecido em Londres), Jacques Abbadie (c. 1654-1727), teve muitas reedições. Ela assenta no conceito de amor-próprio, considerado o motor dos afetos e das ações humanas. O orgulho, a volúpia, a vaidade, a ambição e o desprezo pelos outros são deturpações, ou defeitos, ou desregramentos do amor-próprio. Duas das consequências benfazejas do amor-próprio seriam o desejo de perfeição e o desejo de felicidade. É uma proposta equilibrada, que harmoniza os interesses individuais, o liberalismo de certo modo, acautela equilíbrios sociais e salvaguarda o património moral ativo do cristianismo acordando-o com as monarquias constitucionais e liberais (e pensando sobretudo em Inglaterra). 

Uma presença constante, quer nas fontes pernambucanas e cariocas, quer nas angolanas, é a da “Recreação Filosófica” (às vezes nomeada só como “obra”) do oratoriano Teodoro de Almeida, que a publicou aos 29 anos. A par dela, O feliz independente, muito popular na época, aparece também nos anúncios do Diário de Pernambuco e em Luanda. Para Luanda foi despachado, ainda, O entretenimento do coração devoto, em 1852, obra das que elaborou para a educação das meninas do Mosteiro da Visitação, pelo qual teve apreço particular e, segundo consta, meramente racional. 

O Pe Teodoro de Almeida foi homem do século XVIII: nasceu em Lisboa a 7.1.1722 e faleceu a 18.4.1804 na cidade natal. Foi sócio fundador da Academia das Ciências de Lisboa e das Reais Sociedades de Londres e Biscaia, tendo-se tornado o autor mais lido na Península Ibérica durante um século, apesar da sua ética racionalista e, portanto, nada romântica. Ele e sua obra foram conhecidos em França e na América Espanhola, para além de no Brasil (e em Portugal, claro). Curiosamente, não há nenhuma referência a obras suas nos catálogos de bibliotecas anglófonos que pude consultar em rede, o que desde logo nos configura um território linguístico e uma semiosfera significativos. Tem traduções de títulos seus para francês e espanhol, constando em bibliotecas francesas, portuguesas, brasileiras e espanholas. A perseguição movida pelo Marquês de Pombal à Congregação terá levado ao seu exílio em França, onde viveu desde 1767 até 1778, ensinando “ciências físicas e matemática” (Silva, 1862 p. 302) contribuindo assim para o conhecerem lá. Entre os oratorianos, a julgar pelo que diz Inocêncio (Silva, 1862 p. 301)
estudou o curso de humanidades, a geometria, e a physica, tendo n'esta por mestre o P.e João Baptista, o primeiro que n'esta corte dictou a philosophia moderna ou experimental, até então de todo ignorada.
Pela filosofia reunia as duas vertentes da sua vida intelectual e decerto ajudou bastante o facto de ter entrado novo (aos 24 anos) para substituto da cadeira de Filosofia da Congregação. Não admira, portanto, que a sua obra esteja carregada por dois traços da época na cultura portuguesa: o teológico e o científico ou, melhor escrito, o teologista e o cientificista. 

Do segundo nos dá notícia na Recriação filosófica, obra enciclopédica dos iluminados conhecimentos científicos da altura, traduzida para espanhol. Do primeiro traço, mas também do segundo, nos dá notícia na sua obra mais lida, traduzida para espanhol e francês, que foi o Feliz independente (Figueiredo, 1946 p. 23) , um 
romance moral inspirado na história da Polónia medieval, em que se combinam elementos do maravilhoso cristão com dados de grande precisão «científica».
Inocêncio chama-lhe “poema em prosa, ou romance moral” (Silva, 1862 p. 304), e recorda que o autor tentou imitar o Telémaco. José Silvestre Ribeiro compara-o às Soirées de Saint-Péteresburg, “se nele brilhassem o engenho, a vivacidade do diálogo, a profundeza e originalidade que avultam no liro de José de Maistre” (Ribeiro, 1872 p. 118). Mas reconhece-lhe, já na segunda metade do século XIX (Ribeiro, 1872)
passagens de admirável beleza, felizmente imitadas de outras análogas da Eneida, dos Lusíadas, etc.; descrições muito bem traçadas; pinturas expressivas; comparações imaginosas e bem aduzidas.
Fidelino de Figueiredo reconhece “a tolerância, já não diremos interesse, dos românticos” para com esta obra, sobretudo no primeiro quartel do século XIX. A explicação para tal viria de algumas 
caraterísticas românticas, como o assunto – a melancolia dum conde que procura um teor de vida que o satisfaça – a noção de relatividade da felicidade, o gosto da natureza e o seu maravilhoso, nem cristão, nem pagão, o das divindades da paixão e do sonho.
O feliz independente do mundo e da fortuna, ou arte de viver contente em quaisquer trabalhos da vida, inicialmente publicado em 1779 (3 vol’s), foi outro livro do mesmo autor a que as fontes pernambucanas (1837; 1840) e angolanas fizeram referência. 

Encontra-se um exemplar deste livro, em muito mau estado segundo nos disseram (não me foi permitido consultá-lo), no Arquivo Histórico Nacional, em Luanda, na coleção «Antiquária». A julgar pelo impensável ficheiro que me deram a ler, trata-se de uma edição pouco posterior à primeira, feita em Lisboa, por António Rodrigues Galhardo, em 1786, já no último quartel do século. Inocêncio achava esta edição preferível à primeira. Dizia, também, que, nela, o “discurso preliminar ou exame crítico da obra” era de António das Neves Pereira, “então presbítero secular” e depois oratoriano, “amigo íntimo e admirador” do autor (Silva, 1862 p. 304).

A obra é dedicada a Jesus Cristo, marcando-se logo por aí uma fidelidade inquestionável aos princípios do Cristianismo. A dedicatória justifica-se por ter sido Cristo a fonte de toda a felicidade. Porém, no «Prólogo», diz que o “público foi sempre o Juiz das Obras”. Diz no mesmo prólogo ter tomado “por modelo o Grande Arcebispo de Cambray no seu Telemaco, e outras Obras deste género, em que com a suavidade do néctar encantador da poesia, se dão as máximas mais salutíferas para os costumes”.

Curioso e antecipador (ainda que aprofundando um pensamento já comum na época), decidiu fazer a obra em prosa para se libertar do verso, quer rimado quer metrificado, pois tanto um quanto outro constituíam prisão, uma prisão muito especial que por vezes obrigava 
a não dizer o que queria, ou a dizê-lo de outra maneira; não me deixando a prisão do verso discorrer o pensamento com a naturalidade, e a veemência que desejava. 
Esta poderá também ter sido uma posição que, embora partilhada com outros neoclássicos, era apreciada por muitos românticos, pelo menos em teoria. É portanto uma razão a juntar às de Fidelino de Figueiredo antes apontadas, para explicar a sua presença no mercado ao longo das primeiras décadas do século XIX.

Teodoro de Almeida diz ter refeito o livro para, “conservando porém as leis da poesia, que me eram convenientes [na medida em que eram cativantes]”, passar à “liberdade da prosa”. Acha que as pessoas não se interessam por uma obra só de pensamento, de moral, etc., e por isso precisam das manhas e das pérolas da poesia para serem atraídas à guerra contra os seus vícios. 

É significativa uma tão alargada noção de poesia quando o termo se iria começar a confundir com lírica em verso; interessante porque, pelo contrário, o conceito integra a “prosa”, nomeadamente a prosa narrativa e fortemente dialógica, entremeada de versos e poemas inteiros, como é o caso desta. No momento, ou pelo menos neste autor, não se tinha confundido ainda prosa com narrativa e verso com lírica. De resto, a redução do poético à sua utilidade na comunicação pedagógica era típica da época e não tem qualquer interesse. Leia-se Verney, por exemplo.

Diz Teodoro de Almeida que o catolicismo romano, claro, é o único com o qual “podemos ser felices na vida”. Mas esse catolicismo está fortemente impregnado pela poesia clássica ou de referência clássica. Cita, portanto, en passant, Virgílio e Tasso.

O livro exemplifica várias vezes como a metáfora pode servir (sobretudo a que se toma à natureza) para incutir a saúde espiritual e regenerar o homem.

Como já disse, ao longo do livro a prosa, narrativa, entrelaça-se com algum poema ou extrato de poema. Há também, claro, muitos diálogos longos e reflexivos entre as personagens, comummente introduzidos sem travessão. Por essas excursões das personagens perpassam algumas das problemáticas da época, tais como a vontade individual, expressão e prova da liberdade humana, ainda que reduzida a este “triste estado”; a propósito igualmente a discussão sobre a liberdade que não teríamos (os seres humanos, em que pôs Deus “a luz da razão”) se, embora sendo-nos mostrado o mal e o bem, não conseguíssemos resistir às paixões. 

Mais adiante, fazendo lembrar uma das fábulas de La Fontaine traduzidas por Bocage, diz a Princesa: “E achais boa esta filosofia? [dos que fizeram o bem sem bem saber o que faziam e fizeram o mal com a mesma inconsciência, arrastados pelo amor] Deos vos livre que os vossos criados o saibam; por que em qualquer desordem, que cometam, ficarão isentos da repreensão, e do castigo. A paixão me obrigou (vos dirão eles), e não tive liberdade para fazer o contrário”. Há algo de estoicismo na postura criticada, ou parece haver, a julgar por este discurso da princesa. 

Fala-se também na voz sisuda e serena que sempre nos avisa para não fazer algo, que fazemos por força da paixão, mas de que depois nos arrependeremos. De certo modo está já aqui uma discussão fundamental para os românticos, tanto quanto o foi para Camões: no choque das paixões, que lugar será dado à razão?

A sensatez que tal voz nos traria fica assegurada, no tomo III, pelo conselho de seguir a luz da razão e a da fé: “governai as vossas paixões pela luz da razão (que era filha da Razão Eterna), e da Religião, e possuireis a virtude”. Esta união da Fé e da Razão, aqui defendida pela personagem modelar que é Misseno, não aparece apenas numa passagem. As relações entre Fé, Razão e Paixão são uma constante da obra e a solução era já conhecida antes de O feliz independente ser escrito. A moral que em geral anima o livro consiste na defesa do “bom uso do juízo, e da vontade”, como diz no final do Livro III do tomo I. As paixões não deviam ser eliminadas mas sim dominadas, moderadas, amansadas. Para tal, o amor próprio desempenha um papel importante, na medida em que, bem entendido, nos cura das demais paixões. Ele situa-se na mais vincada fronteira moral, visto que, mal entendido, é a fonte de todos os vícios.

Há também a crítica da guerra e a defesa contraposta da vida dos pastores à dos generais, usando-se um símile biográfico. Usa-se também muito o símile e louvor da natureza, de pastores e pastoras, enfim, constrói-se o bucolismo típico destas épocas, que é posto a serviço de uma filosofia moral e natural.

Curiosamente, Ibrahim, não por acaso o mais recetivo ao espírito do Erro, fala várias vezes empolando o seu discurso (cf. a crítica ao empolamento feita por António Pereira). O estilo empolado é, portanto, um sintoma da recetividade ao erro e é claro que, pensando assim, o Romantismo nunca teria surgido, pois exaltava o 'empolamento sentimental'...

Como em Os Lusíadas, de quando em quando intervêm personagens imateriais, quer da corte do Inferno quer da corte do Céu, e é nessas cortes que se decide unir ou separar os diversos intervenientes. No meio de tudo, Misseno vai conseguindo vencer porque domina as suas paixões.

A recriação filosófica ou diálogo sobre a filosofia natural vinha já de 1751, mas foi usada até muito tarde, por falta de manuais que a substituíssem no espaço de língua portuguesa e também no espanhol, sofrendo mesmo várias re-edições, o que dificulta a identificação dos títulos nos anúncios. Comerciou-se no Recife, seguramente, entre 1831 e 1842. Comerciou-se largamente no Rio de Janeiro e, claro, em Lisboa, como no Porto. Mencionava-se, também, no espólio benguelense de 1855 do comerciante Silva Viana.

Nos seus volumes se revela o espírito iluminista e enciclopédico do autor, que foi o 
primero que se atrevió a combatir en Portugal la física que hasta su tiempo se había enseñado en aquellas escuelas (as da escolástica, ensinada pelos jesuítas), sustituyendo sus errores con los buenos princípios (sn, 1845). 
O subtítulo indicia logo o espírito da época, mas ficarmos por aí seria reparar só na metade da sua doutrina. A natureza, como obra divina, é espelho do Criador e a filosofia serve para, a partir do estudo das criaturas, nos mostrar que nelas se estampa o sinal do seu Autor. A descrição da natureza acompanhada de uma adjetivação maravilhada é por isso um dos traços do seu estilo. 

No limite do conhecimento natural se re-encontra novamente o mesmo Deus por outra das suas faces: a da incompreensibilidade. Levando em conta a sua religiosidade, nunca a filosofia natural poderá aspirar ao conhecimento completo do seu objeto de estudo, cabendo-lhe agir em relação às matérias que não ensina a fé. Juntando-as, afirma que, no seu percurso, seguirá a razão e a experiência, criticando os que se baseiam só numa delas (experiência inclui experimentalismo) e aceita que o erro é “indispensável” – embora só se cometa involuntariamente, ou mesmo por isso. 

Ainda que diga não seguir nenhuma escola, sente-se aqui o debate contra os “peripatéticos” – um debate que trouxe para o meio lusófono a revalorização do espírito científico e experimental contra qualquer autoridade na esfera da razão que não seja a do Criador do mundo. As suas posições, inclusivamente contra a ideia de que a maioria signifique a verdade, são relativizadas por esse quadro no qual irromperam o iluminismo, o enciclopedismo e o déspota sábio. O prólogo, aliás, escrito “muitos anos depois de vir à luz esta obra”, está marcado pela resposta à polémica provocada pelo próprio livro numa edição anterior e o álibi para se falar da filosofia moderna é dado por uma personagem que assistiu a um debate entre mestre e arguentes acerca dela (não tendo percebido nada porque era em latim). A estrutura dialógica da obra tem, no contexto, a função de representar o debate que se travava, havendo um peripatético para defender a sua causa e, naturalmente, um filósofo iluminado para lhe fazer frente. A figura de uma terceira personagem representa a confirmação da vitória da filosofia natural, pois “Eugénio” vai a pouco e pouco maravilhando-se com o saber de “Teodósio” (nome etimológica e historicamente significativo, mas que também se parece muito com o do autor, que de resto é assim nomeado num dos anúncios do Diário de Pernambuco). A descrição das máquinas, do universo e do homem, para além de maravilhada, é viva e simples, de forma que qualquer leigo nas matérias facilmente se convence de estar a aprender coisas evidentes. 

Sem dúvida que este traço, somado à animação trazida pelo diálogo, contribuiu largamente para que a obra fosse lida fora das academias, por exemplo por empresários, interessados mesmo em conhecer os mecanismos que se iam criando. De acordo com o mesmo propósito, o miolo da obra começa por uma história da filosofia, para elucidar os menos conhecedores. 

De Teodoro de Almeida surge ainda, nas nossas fontes, o título Sermões (1787), comercializado no Recife em 1840, em várias edições, incluindo dois exemplares da primeira edição, em três volumes. Além disso constava do espólio do Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro em 1844. O Entretenimento do coração devoto aparece à venda no Recife, na edição de 1790 (dois exemplares), em 1840, vendendo-se no Rio de Janeiro também e seguindo para Angola (a partir de Lisboa) dois exemplares em 1852. 


Benjamim Constant, referido a propósito de Adolfo e de outras obras, surge representado na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda com o tratado De la religion. A edição foi a de Paris, pela firma Pichon & Didier, em 1830 e a consultei in loco, como várias destas obras de que falo. O exemplar contém, na folha de rosto, uma epígrafe de Platão em grego (do Timeu). Nas pp. XL-XLI do prefácio há uma longa nota que vem assinalada a lápis por um traço lateral, na vertical. O que significa ter sido lida. Nada mais, porém, nos fornece indícios sobre a história do exemplar.

A primeira parte do prefácio responde a polémicas provocadas pelas suas teses acerca da religião, particularmente sobre religiões antigas. As teses são, sem dúvida, preconceituosas, mas a defesa que faz do cristianismo lembrou-me, várias vezes, a de Chateaubriand, seu contemporâneo.

Embora preconceituosas elas davam jeito, quer à legitimação do colonialismo, quer à missionação. Um primeiro erro talvez esteja na redução que faz da “maior parte das noções que constituem o culto dos selvagens”. Ele acha que todas se encontram “registadas e consolidadas nas religiões sacerdotais do Egito, da Índia, ou da Gália”. Uma das críticas fundamentais às antigas religiões é feita aos “padres de Méroé”. Havia práticas, calcula-se que também no tempo dos primeiros faraós, em que os sacerdotes mostravam que estava acima de tudo o poder do Deus ou de um deus. Por isso destituíam o faraó, geralmente se começasse a apresentar sinais de debilidade física ou mental. Eventualmente, praticava-se também regicídio ritual, para renovar as forças da nação através da morte do rei débil e da ascensão de um novo, mais saudável e mais enérgico. Não sei até que ponto o regicídio era real, mas Benjamim Constant e toda a ciência europeia do seu tempo acreditavam que sim. Critica ele, portanto, esses “pontífices regicidas”. Mas fá-lo também em nome da liberdade. Baseia-se, para isso, num conhecido episódio em que o imperador persa Cambises solicita (como o fez também Alexandre no Egito), aos “magos” aprovação do seu poder. Estas práticas podiam assentar em dúvidas pessoais, na vaidade pessoal ou simplesmente numa procura de legitimação assombrosa. Creio que seria o caso de Cambises, mas as três hipóteses são cumulativas. A resposta do clero interpelado foi prudente perante tão poderoso senhor: a sua vontade estaria acima das leis. O próprio imperador não terá percebido nisso nenhuma crítica velada, feita por homens que morriam se não lhe fizessem a vontade. O que penso ter feito o clero foi dizer-lhe que ele estava fora das leis e, portanto, não podiam julgá-lo, tudo a partir daí dependeria do seu poder e da sua eficácia. Mas Benjamim Constant não coloca esta possibilidade. Aproveita a narrativa para criticar “esta aliança do sacerdócio e do despotismo”, que era o seu alvo na Europa. Esquecia, no entanto, no discurso explícito e creio que propositadamente, a Inquisição, a aliança que ainda mesmo nessa altura havia em alguns reinos europeus (entre “sacerdócio” e “despotismo”), para falar em pensadores e escritores que também circulavam nesta ambiência bibliográfica: Fénelon (admirador erudito dos poemas religiosos de Gregório nazianzeno), Massillon, Fléchier (este nome não vi referido ainda em nenhuma fonte). Esses escritores teriam sempre lembrado “aos monarcas” que “as leis eram o fundamento e o limite do seu poder”. Esta seria a contribuição positiva de Constant para os leitores do Recife ou de Luanda, contribuindo para associar o cristianismo à liberdade. Ao mesmo tempo dava um fundamento novo, atual, à colonização e à missionação: justificavam-se na medida em que trouxessem humanidade e liberdade aos povos colonizados. Não disse que Benjamim Constant faz essa defesa explicitamente, com propósito político-partidário, mas sim que tal associação (Europa-cristianismo-liberdade-colonialismo) recebeu significativo reforço de interpretações como a sua. Ainda hoje o argumento é válido para o neocolonialismo. E a crítica ao neocolonialismo feita por não europeus, sintomaticamente, baseia-se no princípio da não ingerência nos negócios internos de outros países, ou em tradições locais que legitimariam o despotismo (o que é outra falsa associação entre religião, tradição e política, sem grande fundamento em muitos casos). Significa isso que, para o debate contemporâneo, conceitos como o de liberdade é que estavam em causa.

Também no prefácio de Constant se aprofunda o sentido dessa liberdade. Mas aí, parece-me, sempre com base no sentimento religioso, sobre o qual assentava a sua visão da vivência espiritual do homem. Ela baseava-se na “emoção indefinível que parece revelar-nos um ser infinito”. Bem o contrário de Teodoro de Almeida. Ao basear a religião na emoção, não só Constant contribui para a teoria romântica da vida espiritual como também ajudava na crítica ao racionalismo dialético e redutor que negasse o fundamento emotivo. Tocava ainda num outro tópico do Romantismo e que foi se espalhando até aos nossos dias, nomeadamente quando afirmou: “ser infinito, alma, criador, essência do mundo (que importam as denominações imperfeitas que nos servem para o designar?)”. A adjetivação do “ser” como inominável é conhecida pela mística mais apurada. Porém, associada à emoção e liberta para se conotar a qualquer experiência espiritual profunda e positiva, livre do racionalismo, da escolástica, dos dogmas, isso é que talvez fosse novo. A sentida presença de um Deus desconhecido apareceu também na lusofonia, por exemplo em Garrett. Observe-se esta passagem do prefácio às Folhas caídas
o meu deus desconhecido é realmente aquele misterioso, oculto e não definido sentimento d’alma que a leva às aspirações de uma felicidade ideal, o sonho de oiro do poeta. 
Esta liberdade não será a do liberalismo, nem a da partidocracia, nem a das primeiras experiências pós-revolução em França. Tudo isso é reavaliado, como foi por Chateaubriand e vários outros intelectuais sérios da época. A sociedade pós-revolução, como aconteceu em Portugal depois da vitória definitiva do liberalismo, tornara-se numa caricatura da liberdade. 

O alheamento em relação ao sentimento fundador da vida religiosa conduziu a sociedade para a degradação moral e espiritual, abolindo valores necessários como o da piedade ou o da abnegação. Os valores morais, “as virtudes”, perderam o carisma que “atesta a sua origem celeste”. Cegos e órfãos, os cidadãos perdiam também o sentido e a solidez da vida. O “interesse bem entendido permitiu à vaidade criticar indiferentemente o bem como o mal”. Um racionalista cético nos perguntaria, como Pilatos na Bíblia, o que é o Bem e o que é o Mal. Neste contexto (como em outros) o mal assinala-se por uma falha, uma carência, uma ausência. O mal é “a inteligência que tudo analisou” mas, afinal, apenas “semeou a dúvida sobre as verdades e os erros”. O sentimento religioso, a vida religiosa vivida pela emoção, isso é que nos permitiria discernir entre o bem e o mal, guiando a razão no percurso inquiritivo e ético. A sua ausência traz a plasticidade imoral do cidadão médio, profundamente criticada. “Serviu-se o poder injusto, porque o interesse bem entendido não queria que se entravasse a carreira de um filho”. Esse mesmo interesse que não nos previne em face das ameaças à liberdade: 
o perigo apareceu, e o interesse bem entendido aconselhou aplaudir prudentemente o mal como o bem: de maneira que sob o poder moderado se mostrou errante [frondeur], e sob o poder violento se mostrou servil.
É o mesmo desprezo de uma via sentimental – o que significa: autêntica – a raiz do economicismo, que proscreve os “braços” desnecessários como “supérfluos” e oferece ao pobre a subsistência em troca da sua liberdade, como se isso fosse piedoso e os proprietários os donos da vida que, por tolerância, nos permitem. A ausência da raiz viva da religião e da própria existência levou a que surgissem estes homens perfeitos, sem vícios: prudentes, aritméticos, lógicos, razoáveis, separados no entanto da sua parte mais nobre e elevada. O que por sua vez originou uma sociedade desinteressante, desinteressada e onde cada indivíduo está isolado no meio da multidão que não passa de poeira, não é um corpo com vontade própria e solidária. Daí o apelo final: “amigos da liberdade, não é com tais elementos que um povo a obtém, a funda ou a conserva”. 

Consequentemente ele reduz “todos os sistemas” a 
dois. Um nos designa o interesse por guia, e o bem-estar por princípio. O outro nos propõe por princípio o aperfeiçoamento, e por guia o sentimento íntimo, a abnegação de nós mesmos e a faculdade do sacrifício.
Baseado numa teoria apropriada da evolução das civilizações, identifica o seu tempo com uma decadência da qual, porém, sairão novas descobertas (do espírito) que irão enriquecer-nos e conduzir-nos a um grau mais elevado. A evolução seria, portanto, espiralar, tocando ora o extremo da degradação, ora o extremo da gradação e, nessa evolução, por força justamente do cristianismo, a degradação não era tão grave quanto fôra, por exemplo, nos tempos de Diocleciano.


De uma época mais recuada, mas com a atualidade garantida pela sua arte e pela índole dos homens, vinham-nos as obras do Pe António Vieira. Ele continuava a ter discípulos nas variadas facetas da complexa personalidade cultural de que nos deu sinais. Os mais diferentes títulos apareciam nas fontes brasileiras, sobretudo nas do Rio de Janeiro, incluindo no Gabinete Português de Leitura, na Biblioteca Fluminense, no Catálogo Laemmert – além do Bertrand, de que também havia conhecimento no Rio, suponho. 

Associada ao seu nome, surgiu uma Tentativa teológica, vendida no Recife e oferecida ao respetivo Gabinete Literário. Não sei de que livro se trata, pois não vi referências a tal título com o seu nome. O título homónimo, conhecido e lido nessa época, era o do oratoriano António Pereira de Figueiredo, cuja atuação já comentei nesta obra. 

O místico e pregador luso-brasileiro, porém, era bem mais famoso e mais lido. Os seus sermões, de uma irrepreensível e sagaz moralidade, de uma beleza viva que ainda hoje agrada e de um domínio retórico exemplar, fizeram parte do lote de livros enviados de Portugal, em 1852, a pedido do Bispo de Angola. Ainda em Luanda, no Arquivo Histórico Nacional, existe uma edição das suas Cartas, que não pude consultar mas, mais tarde, consegui ler em linha. É em uma dessas cartas que o famoso padre assegura haver em Santiago (de Cabo Verde) 
Clérigos, e Cónegos tão negros como azeviche; mas tão compostos, tão auctorizados, tão doutos, tão grandes Musicos, tão discretos, e bem morigerados, que podem fazer invejas aos que lá vemos nas nossas Cathedraes.(Vieira, 1838 p. 125) 
Certamente estes elogios eram reconfortantes e, mesmo, úteis aos filhos da terra que veriam, poucas décadas mais tarde, o colonialismo positivista e salazarista afastar gradualmente os cónegos negros e mestiços da Igreja (pouco interessa, para o caso, que o tenha feito por indiretas pressões).  

Deparei-me também, no Arquivo Histórico Nacional, com referência a outra edição (em três tomos) das Obras políticas e várias

Este volume é importante no cenário local porque nos demonstra o continuado interesse pela obra do Pe António Vieira, talvez mantido nos seminários, mas não sei se estas Obras políticas, pois elas continham teses heréticas. A presença do título vem comprovar que havia na altura em Angola fontes bibliográficas para se ler acerca do sebastianismo e da obra heterodoxa, divergente, em que o grande sermonista procurava mostrar como provável e desejável o regresso do rei encoberto, personificado inicialmente em D. João IV. 

É um tema que passou de proibido ou censurado a esquecido, mas há um sebastianismo angolano. Não sei quando ele se originou, portanto a partir de quê, ou de quais quês. As primeiras notícias históricas falam de Francisco Casola e o seu ápice dá-se com o mito criado por D.ª Beatriz Quimpa Vita (ou Kimpa Vita). Um misticismo popular africano, com uma ou outra pinga do misticismo popular português, foi-se desenvolvendo em Angola. Na introdução à sua gramática do Kimbundu, Héli Chatelain fala num comprovativo mais desse intercâmbio de oraturas e crenças entre reinóis e filhos da terra. Ele refere “uma terceira produção no mesmo dialecto”, esta “inédita, sem data nem nome d’auctor, é o cântico religioso, chamado «o Mukunji», o qual se conserva e perpetua na memória do povo”. O Mukunji trata do nascimento e morte de Cristo e Chatelain acha que “deve ser uma versão ou imitação do latim”. O missionário suíço entende, ainda, que será um “curioso, natural de Angola”, o autor do hino – sem justificar (Chatelain, 1888-1889). O mesmo tipo de osmose, em que a oralidade apropria textos escritos, abrange fenómenos como o da Senhora da Muxima, e a leitura das Obras políticas e várias pode ter reforçado tal corrente no seio, subterrâneo, dos próprios seminaristas. Note-se que alguns dos seminaristas vinham de nobrezas locais, não só a do Congo (Kongo) mas também essa. Tais nobrezas estavam profundamente envolvidas com os fenómenos citados, o que se vê pela manipulação que deles faziam. Os seus filhos puderam ler, no seminário e não só, peças do tomo I, como a «Defesa do livro intitulado Quinto Império» (que era a apologia da Clavis prophetarum) ou as «Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo». O segundo título, de resto, prolongava-se falando na “primeira e segunda vida de El-Rei D. João”. A mestiçagem cultural do Padre revela-se aí numa defesa velada, se calhar confusa, de uma espécie particular de ressurreição (“segunda vida”) de D. João IV. No tomo II, o último texto reforça tal componente, sendo um «Discurso em que se prova a vinda do Senhor Rei D. Sebastião». Aproximava-se dessa forma de uma crença que era comum no Congo e outras paragens (por exemplo relativa a D. António, o ‘Mani Mulaza’ da historiografia colonial), que era reprimida pela ortodoxia católica e no entanto estava ali, escrita por um jesuíta, ao que parece com algum sangue negro e índio, defensor dos índios, que elogiava o seminário de Cabo Verde como um dos melhores do Império… 

O seu papel de defensor dos índios não terá sido igualmente ignorado pelos filhos da terra que estudassem nos seminários e viessem das nobrezas circundantes da colónia de Luanda. Na verdade, ele defendera a importação de mão de obra escrava tomada em Angola e na Guiné, porque sem Pernambuco não havia açúcar e sem escravos africanos não havia Pernambuco. Mas também é verdade que, relativizada a sua afirmação pela época, facilmente se transpunha para a Angola do século XIX o que dizia dos índios: que os portugueses lhes tomaram as terras de que eram senhores e não foi por ‘guerra justa’. Além disso, o Pe Vieira estudou línguas de Angola, tanto quanto do Brasil e conhecia os trabalhos “de carmelitas descalços” entre nós, a cuja origem associava a sua pessoa (por uma carta escrita ao rei português) e cuja missão valorizava.

O tomo III das Obras políticas e várias incluía «Direções sobre o julgamento da liberdade e cativeiro dos índios do Maranhão» (pp. 97 ss) e um «Parecer sobre a conversão e governo dos índios e gentios» (sublinhe-se “e gentios”). Finalmente, numa sociedade urbana e colonial em que havia descendentes de judeus e cristãos novos (a nossa), os seus apelos a favor da “nação hebrea”, dos “mercadores judeus” e dos “cristãos novos” não cairiam em saco roto. Tudo isso junto manteve a atualidade da sua obra durante o século XIX, tanto quanto hoje.

A filosofia moral estava também representada pela “moral universal” do Barão de Holbach (1723-1789), referência ética da Revista universal lisbonense. O título era vendido no Recife e constava do espólio de 1836 de José Lino Coutinho (Magalhães, et al., 2017 p. 219), bem como num espólio do Cazengo, de 1847. Integro-o com outros, livros simplesmente nomeados como “Elementos de moral”, sem mais nenhuma indicação, ou ainda “Elementos de Filosofia Moral de Keinecio”, traduzidos. Com ela florescia a Cultura do coração humano, a par, entre outros, do Ramalhete de novas bernardices, ou d’O vício castigado, liga da falça theologia com filozofia, sem indicação de autor, ou, ainda, de “O Perigrino da América”.

O Compêndio narrativo do peregrino da América em que se tratam vários discursos espirituais e morais com muitas advertências e documentos contra os abusos que se acham introduzidos pela milícia diabólica no Estado do Brasil, apesar de só uma vez aparecer no quadro bibliográfico, é um livro de muito provável leitura em Angola, pelo menos no início do período considerado. O interesse por ele vinha de muito antes. Manuel Nunes Viana, o chefe eleito dos Emboabas, mandou imprimir a suas expensas a obra, do padre Nuno Marques Pereira, nascido em Caíru (Bahia) em 1652 e falecido em Lisboa (9.12.1728). No século XVIII ela teve, no mínimo, seis edições: 1726, 1728, 1731, 1752, 1760 e 1765 (Hansen, 2014 p. 73). 

Focalizando o Brasil, permitia estabelecer alguns paralelos com Angola. Incluía até a narração do milagre que levou D. Afonso I (do Kongo) à vitória sobre o irmão pagão, vencendo os seus vinte mil soldados com apenas vinte homens. 

Também os “calundús” entre “os escravos” nos aproximam de África e de Angola. Sabendo do interesse que esta matéria podia provocar no leitor exótico e, por outro lado, fundamentando-se na popularidade (julgada nociva) dos “calundús”, refere-os várias vezes e define-os por uma voz local: “uns folguedos, ou adivinhações, me disse o morador, que dizem estes pretos que costumam fazer nas suas terras, e quando se acham juntos, também usam deles cá, para saberem várias cousas; como as doenças de que procedem; e para adivinharem algumas cousas perdidas; e também para terem ventura em suas caçadas, e lavouras; e para muitas outras cousas”. O “Mestre dos Calundús” é depois interrogado pelo Peregrino e, “com grande repugnância, e vergonha me disse: que era uso de suas terras, com que faziam suas festas, folguedos, e adivinhações” – curiosamente aqui o discurso é indireto, como se, obedecendo a um preceito platónico, o narrador não desse voz direta ao vilão. Depois pergunta-se a um “preto” o que significa a palavra em português e, dizendo este que não sabia, explicam-lhe: “pela etemologia do nome” quer dizer “que se calam os dous: cala duo. Sabeis quem são estes dous que se calam? Sois vós e o diabo”. Após uma grande e caricata prédica (pelo menos hoje seria), mandou queimar todos os instrumentos usados nos calundús. A luta contra a feitiçaria, que santificava assim a personagem, era certamente um tema comum para todos os sacerdotes e cristãos, quer no Brasil, quer em Angola. Compare o leitor estas páginas com algumas das mais ‘santas’ páginas de Cadornega, por exemplo. 

Dentro do mesmo tipo de assuntos aparecem os comentários sobre “quigilas”, que o autor mostra conhecer bem. Kijila vem do kimbundo, língua na qual indicava, segundo Assis Júnior (Júnior, sd p. 120),
Proibição imposta pela religião, pela tradição ou pela lei. | Prescrição; jura: renúncia. | Abstenção; privação de prática de certos actos […]. Abstinência. 
Na passagem para português, como é comum suceder entre línguas, a palavra perdeu parte do seu campo semântico. Ela ficava geralmente reduzida a “proibição” e “dieta”. As duas aceções aparecem também no Dicionário de regionalismos angolanos de Óscar Ribas, que me continua a parecer o mais seguro de todos. O verbo de raíz é, seguindo o mesmo autor, kujila (kimb.), “abstinência”, porém a dieta é uma consequência da proibição, tal como a aceção de “antipathia que os pretos têem a certos comeres ou ações”. Quanto a essa primeira aceção, ela precisa por isso mesmo o sentido do “preceito”, na medida em que o preceito passa pela regra proibitiva. É nesse ponto que o termo passa ao Brasil e se conserva entre tradições de origem africana e aparece no Peregrino da América. Transcrevo: 
porém oferece-se-me outra dúvida; e vem a ser: de que procede nesta Gentilidade, que vem de Angola, e Costa da Mina, haver entre eles aquele abuso das quigilas, o qual guardam alguns tão pontualmente, como se fora um Mandamento da Lei de Deus, e antes morrerão, que deixar de observá-lo; e este consiste em não comerem caça, ou peixe, marisco, e outras muitas cousas. Pergunto, se he isto pecado? 
A pergunta é dirigida a um padre, que logo viu pecado nisso. Porém, mostrando conhecer profundamente o que estava em jogo, diz na página seguinte: 
quigila é um pacto explícito, que fazem estes gentios com o diabo, sobre o qual assenta alguma conveniência corporal da parte do que o faz, como de terem bom sucesso na guerra, fortuna na caçada, na lavoura, etc.
Como sempre sucedeu no meio dos homens, uma autoridade (moral, espiritual, ou científica) prescreve receitas de comportamento que tornam as pessoas mais fortes e as aproximam do sucesso; ou que as limpam de outros males. Por isso, tanto o feiticeiro quanto o quimbanda (kimbanda) quanto o médico fazem prescrições. Se umas são mais eficazes e seguras, isso prende-se com a própria evolução dos conhecimentos. Cada pessoa, por si, não descobre sozinha a dieta ou abstinência mais eficaz, por isso precisa da receita para sobreviver, ou viver melhor, ou conseguir outro objetivo. Mas pedir este exercício de relativização e comparação naquela época, era pedir de mais. E hoje não é pedir pouco… o interessante, para nós, é que o autor, ainda que diabolizando aquilo de que fala, transmite-nos essas práticas.

O autor aborda igualmente o problema da escravatura e de uma forma que não o tornava totalmente antipático no século XIX. Para consolar escravos negros obrigados a trabalhar aos Domingos, fala de brancos que vão cativos de Mouros e são obrigados a trabalhar aos Domingos e fala deles a propósito dos escravos que ali encontra e cujo senhor obriga a trabalhos dominicais. Mas diz que Deus há de olhar pelos escravos e eles irão deixar de trabalhar em dia santo: “… e não vos pareça que vossos Senhores, por serem brancos, e forros, deixam de ser castigados por Deus, por não guardarem seus Mandamentos”. 
Insinua que, na confissão, ou por conselho de alguém, esse senhor entrado em pecado será advertido. 
Nem vos meta desconfiança a vossa cor preta, e serdes humildes, e desprezados no Mundo por pobres, porque este é o meio, por onde se alcança o Reino do Céu.
(Pereira, 1728 pp. 149-150)
Também, mais adiante, realça que o escravo pode ser inteligente (Pereira, 1728 p. 156)
admirado fiquei de ver a prontidão, e confiança de um rapaz escravo, criado entre montes, seguir tão acertada narração; porém vim a conhecer que o entendimento é como a pedra preciosa, a qual ainda nascida no monte sempre brilha, e mostra seu valor
O Peregrino da América é também significativo pelos traços poéticos que reforça no meio. Fá-lo diretamente, uma vez que mistura verso e prosa, descrição e ficção; fá-lo indiretamente por um muito resumido conselho poético posto na boca do mestre.

No primeiro caso está o ‘romance’ colocado logo no início da jornada para as “Minas do Ouro”, hoje Minas Gerais (Pereira, 1728 pp. 47-50). Podemos dizer que ele antecipa o nacionalismo romântico, mostrando seguros conhecimentos da fauna local. Vale a pena citar algumas passagens, começando pelos primeiros versos:
Lá cantava o Sabiá
Hum recitado de amor 
em doce metro sonoro,
Que às mais aves despertou.  
Num raminho o Curiò,
com sonora melodia,
e com requebros na voz.  
O Mazombinho Canário, 
Realengo em sua cor 
Deu tais passos de garganta 
que a todos admirou. 
[…] 
Nesta suave harmonia
Se divulgava huma voz 
Pelos ares, que dizia: 
Arara, Arara de amor. 
Naõ fallo aqui das maás aves,
Nem dos Sahuins, e Guigós,
Que com bayles de alegria
Festejaõ ao Creador.
Isto são apenas cinco exemplos (três dos quais compõem o começo do poema; os outros dois o fecham. A lista de pássaros locais é porém muito maior: “De picado o Sanhaçù”, “A encarnada Tapiranga”, “A linda Guarinhataã”, “Despertando o Pitahuaã”, “O lindo Cucurutado”, “As fermosas Aracuaãs”, “A fermosa Jurutì” (glosada mais tarde por Casimiro de Abreu, quando se encontrava em Portugal), “Saiu de branco a Araponga”, “Periquitos, Papagayos, Tocanos; e mais Paós”, “Nem dos Sahuins, e Guigòs” nos podíamos esquecer. A estes (e mais) misturavam-se outros conhecidos já da poesia europeia, por exemplo Rouxinol, Picapau, Pintassilgo, Bem-te-vi. 

A satisfação do exotismo liga-se aqui à recordação gostosa de um convívio atento com tal orquestra natural. Isso fica. E em Angola veremos até colonos cantarem aves e instrumentos musicais do mato em seus versos despretensiosos ao longo do século XIX.

Apesar da época pomposa na qual foi escrito, os versos do livro são geralmente de sete e cinco sílabas, portanto versos populares, na altura mais usados na sátira. As rimas do poema são toantes e intercaladas, o que é típico dos ‘romances’ em verso. Tais poemas reforçam, portanto, uma componente popular (da poesia popular luso-brasileira) que vemos emergir em Angola no século XVII (com o capitão António Dias de Macedo), como demonstram as composições transcritas por Cadornega na História general das guerras angolanas (Cadornega, 1942; 1972). Infelizmente a obra não tem sugestão estética muito intensa, não suscita nenhuma espécie de encanto, pelo que a sua influência pode ter sido nociva também. 

Os conselhos poéticos são transmitidos através de um diálogo, alicerçado numa linguagem de compromisso entre o cânone e o português real. Após uma pergunta ao Desengano sobre 
de que partes necessita um homem […] para ser um bom poeta? Primeiramente, me respondeu, é necessário ser mui lido em toda a lição das letras Divinas, e humanas: conhecer todos os Signos, e Planetas celestes: saber as fábulas dos antigos, e suas origens. E para ser universal, deve entender todas as ciências, artes, e ofícios; e depois disto estar mui presente nas regras, e preceitos da arte Poética, para saber de quantos pés se compõe o verso, que pertende fazer, e de quantas sílabas; e ver se acabam em agudos, ou quebrados, fugindo dos longos, e curtos. Deve também acomodar, e enxerir ao intento as fábulas, equívocos, e pan[c]adas, no sentido, de que trata. E finalmente, é um processo infinito dizer o de que carece um Poeta, para fazer bem versos. 
Isto explica-nos claramente porque só depois de mortos os escritores são reconhecidos... Não deixa, no entanto, de corresponder a um ideal neoclássico também, com raízes entre alguns filósofos da Grécia antiga, por exemplo Platão, para os quais era preciso primeiro dominar a filosofia para depois se escrever alguma obra fundamental e bela. Nesse aspeto, o seu livro defendia teses que o sentimento romântico veio arrasar completamente. Mas não abandona os conselhos práticos, alongados em pleno Romantismo pelo pedagogo Castilho, tão lido como prestigiado entre nós. 









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