Três poetas no rio Quanza
Podemos pesquisar que títulos seriam lidos em
Angola, também, a partir da biografia de alguns dos nossos autores, filhos da
terra ou residentes de longa data, aclimatados portanto. Pelo menos de Cordeiro
da Mata sabemos, pelos seus contemporâneos, ter possuído uma significativa biblioteca,
havendo condições para levantarmos os títulos de alguns dos livros e escritores
que terá lido, quer através de citações que fez, quer através do conhecimento
de bibliotecas de amigos ou conhecidos. Num primeiro momento – este – resumo a
biografia de Cordeiro da Mata e de dois dos seus amigos do rio Quanza e de
Pedro Félix Machado; elas completarão a nossa representação mental do grémio
histórico-social envolvente e que já comecei a retratar ao resumir as
biografias de Eugénio de Salles Ferreira, Urbano de Castro e Alfredo Troni (v. capítulo anterior). Num segundo
momento (a partir da secção «Leque angolense de leituras literárias») retomo a
análise das obras que podiam ter sido lidas pelos nossos autores do século XIX.
Joaquim Dias Cordeiro da Mata
O que faço aqui relativamente a Cordeiro da Mata é um mero resumo
biográfico, alargado a notas contextualizadoras. A apreciação e
contextualização da lírica do poeta já a fiz no primeiro volume de Kicola (Soares, 2012) e para lá remeto o leitor interessado,
pois estas notas e este livro têm aquele primeiro volume como pressuposto.
Entre os referidos poetas do Quanza este foi, sem dúvida, o poeta. Os
outros dois (ou mais) terão sido bissextos com momentos de inspiração, mas de
forma nenhuma se aproximaram, nem tentaram aproximar, da vocação e da concreção
poética e intelectual de Cordeiro da Mata. Ao juntar as referências a eles às do
poeta de «Kicôla!» sigo só a sugestão da própria época, perseguindo uma
eventual convivência literária que se teria formado no Dondo nesse tempo, ainda
então um entreposto comercial significativo e, na prática, sede de boa parte das famílias
crioulas do hinterland de Luanda – as
de A casa velha das margens (Santos, 2010) e as das margens
da casa velha. Tome-se crioulas no sentido em que uso e conceituo a palavra, já
definido por mim várias vezes, pois esse termo é descritivo e não prescritivo.
Para quem não compreenda, descritivo é um termo que se regula e se limita pela
sua referência, não pretende criar nenhum regulador ou condicionador do
pensamento, como fazem vários intelectuais neonativistas e xenófobos com o que
chamam de ‘nativo’ (termo que, sem dúvida, inclui crioulos de vária estória e de vária glória) e como faziam os
neorrealistas com o que chamavam de ‘operário’. Nativos foi só o termo de
referência usado por esses crioulos diversificados para se demarcarem face ao
avanço colonial do seu tempo, sublinhando uma origem e vincando os direitos e
prerrogativas a que tal origem deveria dar espaço. O nosso poeta fez parte dessa crioulidade reivindicativa e demarcada.
Nasceu Joaquim Dias Cordeiro da Mata, sintomaticamente, aos 25 de dezembro
de 1857, “no rico e ameno concelho de Icolo e Bengo” (como escreveu Mamede de
Sant’Anna e Palma), cerca de três meses depois de José da Silva Maia Ferreira
escrever três poemas em Lisboa, onde estivera numa visita curta para promover a
sua candidatura a cônsul, ou vice-cônsul, de Portugal em Nova Iorque. Em
Lisboa, Maia Ferreira convivera com poetas e políticos ligados ao Ultrarromantismo
e de quem era amigo. Cordeiro da Mata iniciará (timidamente embora) a transição
dessa para uma outra escola poética, onde não se chegou a definir, mas de que
aproveitou soluções estróficas ou rítmicas, bem como algum vocabulário,
desbravando caminhos que pisariam certos autores da Luz e crença – nome de loja maçónica e de revista protonacional. A
diferença ilustra bem o destino diverso dos dois primeiros poetas angolanos a
publicarem um livro de versos em Angola – de resto com uma diferença de idades
assinalável: trinta anos, ou seja, duas gerações, seguindo a proposta de Pedro Lyra de contá-las de quinze em quinze anos - embora o crítico aceite genericamente a marca dos vinte anos até mudar a geração, medida que remonta a Eliot. No nosso caso, da geração de Maia Ferreira para a seguinte passaram mesmo cerca de trinta anos.
Nasceu Cordeiro da Mata no mesmo ano em que o romancista brasileiro Aluízio
de Azevedo (m. 1913), dois anos depois do poeta realista português Cesário
Verde (1855-1886), seis anos depois do negrista e político (liberal, abolicionista, republicano) brasileiro Manuel Raimundo Querino (1851-1923) e no ano em que se publicou no Brasil O guarani, do romântico nativista, conservador e elitista José de Alencar (1829-1877).
O ano de 1857 viu nascer ainda Francisco José Teixeira Bastos (m. 1902), um
poeta, médico, ensaísta e jornalista português hoje desconhecido, porém
divulgador proficiente do positivismo e do socialismo em Portugal e citado por Cordeiro
da Mata. Espreitemos essas e mais algumas sincronias.
Aluízio de Azevedo fez a transição brasileira do romantismo e do
indianismo para a narrativa realista, vindo a ser a grande referência
do naturalismo no Brasil. Ignoro se Cordeiro da Mata o leu, mesmo se foi lido
em Angola no século XIX, mas esta coincidência nos permite figurar a dimensão
lusógrafa da geração realista, naturalista, socialista, positivista, que assumiu
contornos diversos conforme os países e rumo aos quais, entre nós, as
narrativas de Pedro Félix Machado e algumas líricas de Cordeiro da Mata vieram
a dar os primeiros sinais.
O guarani, por seu turno, tornou-se um dos ícones da narrativa indianista (por
aí nativista) brasileira. Com ele iniciou o seu projeto literário nacionalista
(e romântico) José de Alencar. O negro era, entre nós, o nativo (se esquecermos os agregados pré-banto), como o índio era no Brasil. Pela popularidade do livro de Alencar, acredito que tenha
circulado na letrada colónia de Angola também. Sendo assim, contribuiu para reforçar estímulos locais ou no local. Entre eles alguns vindos de fora, como o (posterior) de Héli
Chatelain (muito baseado no trabalho de Cordeiro da Mata), mas também internos, familiares até, pois sempre os mais velhos (e
as mais velhas) reclamam o registo, a manutenção, se não mesmo a propagação das
tradições antigas.
Ainda nesse ano Souzândrade publicou as Harpas selvagens (e no seguinte começou a escrever os primeiros
cantos do Guesa errante, a seu modo
neonativista panamericano). Baudelaire publicou as Fleurs du mal no mesmo ano também. Duas referências contrastantes,
ou seja, que definem melhor o que fomos nesse tempo mostrando o que não fomos e
podíamos ter sido. Infelizmente a nossa poesia não seguiu pelos caminhos
audazes dos dois poetas, aliás extemporâneos nos seus próprios países.
Marcando a dupla face dessa data, 1857 foi o ano, ainda, em que faleceu
Glinka, o grande compositor romântico russo, ao mesmo tempo em que o anarquista
Bakunine (símbolo do que viria depois) se viu deportado para a Sibéria: morria
o romantismo e reprimia-se o anarquismo socialista.
Francisco Gomes de Amorim (1827-1891), talvez o primeiro
neogarrettiano, com uma carta elogiosa de Castilho publicava em 1858 os Cantos matutinos, em que regurgitava uma
lírica menos mecânica ou sonolenta – não menos sentimental – que a dos
ultrarromânticos, com uma linguagem simples, coloquial (lembremo-nos ainda de
que o autor vivera muitos anos no Brasil, emigrante pobre no interior-norte do
país). Um exemplar de Cantos matutinos encontrava-se
há poucos anos (quando lá investiguei) na Biblioteca do Governo Provincial de
Luanda e é possível que tivesse vindo para Angola nesse tempo e que fosse lido
por Cordeiro da Mata, entre outros. Gomes de Amorim foi trazido ao convívio
literário ultrarromântico por Luís Augusto Palmeirim, um amigo de Maia Ferreira
que, junto com Bulhão Pato e outros, ajudara a aproximá-lo mais de Garrett,
objeto da sua grande devoção. A biografia de Gomes de Amorim, na parte respeitante
ao Brasil, esses ultrarromânticos tornaram-na mítica e elogiaram a sua lírica,
sem dúvida mais viva, simples e por isso eficaz que a de muitos dos
artificiosos do Ultrarromantismo (Pato, 1877 pp. 47-53) . Ora, o ultrarromantismo
lusógrafo, quase sem se dar por isso iniciara a busca de alívio do peso
emocional e do estereótipo literário com que foi lido o primeiro romantismo em
língua portuguesa pelos seus seguidores imediatos. Tímidos sinais encontravam
Eduardo Neves e J. Bernardo Ferrão, tal como o poeta de Icolo e Bengo, da autossuperação,
que tinha em Faustino Xavier de Novais, simultaneamente em Portugal e no Brasil,
o mais popular exemplo. Ao mesmo tempo que os primeiros vagidos do realismo se
escutavam na colónia, vinha esta coloquialização, vivacidade, esta linguagem
mais próxima do quotidiano, acompanhada de ironia felina (sobretudo no caso de
Novais), apimentar o marasmo particularista, episódico, sentimental e balofo dos anos anteriores. A
síntese entre as duas escolas e, ainda, a parnasiana (de que nos dará sinais
Pedro Félix Machado), realizou-se com João de Deus (1830-1896), em Portugal.
Ultrarromântico por geração, foi poeta e pedagogo já para além da escola
dominante entre os seus coetâneos e se aproximou, pelo rigor da forma como
pelas preocupações sociais, do parnasianismo e do realismo. João de Deus
constituiu, precisamente, o modelo pedagógico de Cordeiro da Mata, que tentou
fazer, para Angola e o quimbundo (kimbundu), uma cartilha idêntica à do mestre.
João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1864) – uma das
referências de Cordeiro da Mata – havia morrido em dezembro de 1854 e o famoso
compositor alemão (romântico) Robert Schumann falecera em 1856, um ano antes,
portanto, de Cordeiro da Mata nascer. Na Baía morria em 1855 o ultrarromântico (autêntico
esse) Junqueira Freire, devido a complicações cardíacas. Na verdade, o Romantismo
foi morrendo lentamente nos anos 50 e 60 do século XIX lusógrafo, nas mesmas datas em que se publicavam as obras dos ultrarromânticos, ou românticos de
segunda geração, tendo, quase todos, entre vinte e trinta anos.
No espaço lusófono, no que ao Brasil diz respeito, a lentidão em parte
se ficou a dever à popularidade das ficções de José de Alencar e da lírica de
Castro Alves (1847-1871; em 1863 ele publicara o primeiro poema abolicionista,
«A canção do africano», e em 1870 saíram as Espumas
flutuantes), bem como à popularidade da hoje esquecida lírica de Casimiro
de Abreu (1839-1860; As primaveras são
de 1859, dois anos após o nascimento do nosso poeta). No que diz respeito a
Portugal, anote-se a popularidade de Camilo Castelo Branco (1825-1890), de Faustino
Xavier de Novaes (1820-1869), popular no Brasil também, de João de Lemos Seixas
Castelo Branco (1819-1890) e de Luís Augusto Xavier Palmeirim (1825-1893), bem
como o prestígio da família Castilho e do próprio António Feliciano (1800-1875).
Com isso prolongou-se o ultrarromantismo serôdio que foi o nosso também, alheio
(pelo que sei) à publicação, em 1859, de um livro que iria mudar o panorama
cultural europeu e global: A origem das
espécies, de Charles Darwin.
Num contexto mais próximo, a 29.11.1856 é criada em Luanda a Sociedade
Dramática, a funcionar no mesmo espaço onde se construiu depois o Teatro
Avenida, entretanto já passado à História. Em 1856 também se fundou a Aurora, com direta responsabilidade do
ultrarromântico português Ernesto Marecos, que terá vivido poucos mas intensos
anos em Angola (Marecos, 2018) , onde escreveu
vários poemas e recolheu, para produzir um livro de versos, a lenda lunda de Juca, a matumbola (entenda-se maiombola, termo mais comum). De resto,
nos mesmos anos 50 (do século XIX) começou a publicar-se mais imprensa privada
na colónia, que se iria desmultiplicar nas décadas seguintes, incluindo órgãos
entre os ‘naturais’, ‘filhos da terra’ e seus amigos. Por sua vez, a importação
de livros orientava-se cada vez mais para a Europa, com natural destaque para
Portugal, que afastava cultural, económica e metodicamente Angola do Brasil com
a preciosa ajuda de Inglaterra, também ela interessada em cortar os laços
lusófonos no Atlântico-sul e toda a possibilidade de coligações sul-sul.
O avanço do colonialismo moderno e das ondas de choque subsequentes
intensificava-se a partir dessa Europa. László Magyar terminava em 1857 as
suas viagens às fontes do Congo e do Zambeze, largamente possibilitadas pelo
casamento com uma filha do rei do Bihé. A 3.11.1856, um decreto proibira o
serviço forçado de carregadores em Angola – embora sem grande sucesso no quotidiano.
Por decreto de 29.4.1858, o reino de Portugal determinava a abolição completa
do tráfico de escravos num prazo máximo de 20 anos. Em 1859 morria D.ª Ana
Joaquina dos Santos Silva, que chegou a ser a maior fortuna de Angola no seu
tempo. Também neste campo (económico, social e político) estávamos em tempos de
transição, supunha-se que para um mundo melhor e, no nosso caso muito
específico, melhor também para os africanos.
Fora da lusofonia e dentro do âmbito cultural, há sincronias e
assincronias sintomáticas. Por exemplo, 1857 foi o ano de nascimento (com cerca
de um mês de diferença) do linguista suíço Ferdinand de Saussure. As
diferenças entre ele e Cordeiro da Mata resumem quase tudo o que há para dizer
sobre o assunto, conjugando-se ao nascimento, ainda no mesmo ano, em Hamburgo,
de Heinrich Rudolf Hertz, que viria a descobrir as ondas hertzianas. A Europa
entrara, com os EUA, na febre da ciência positiva, ou objectiva, das invenções
tecnológicas, enfim, das transformações que trariam a humanidade para uma fase
radicalmente nova da vida quotidiana e para o século XX. Angola continuava a
ser uma pequena colónia, cujo desenvolvimento se mantinha coartado pela
colonização e, mais, pela colonização de tipo ibérico na África subsaariana
(compare-se com a Guiné Equatorial).
Unindo os dois mundos ficaria o pensamento
político, lentamente se voltando para preocupações sociais, de género e de raça
(numa definição pouco rigorosa, que mesclava o tom da pele e a ascendência
africana escrava). Um facto decisivo ocorreu no dia 8 de Março desse ano de
1857: para reprimir uma greve, numa fábrica de tecidos em Nova York, foram
massacradas 129 mulheres (queimadas dentro da fábrica), independentemente do
tom de pele. Ao mesmo tempo nascia uma grande compositora e pianista em França,
que veio ocupar um lugar seguro numa actividade (a da música profissional) de
que o sexo masculino detinha o monopólio. Chamava-se ela Cécile Louise Stéphanie
Chaminade. Quanto à ‘raça’? Quanto à ‘raça’ tivemos, quase na mesma altura, a
guerra civil nos EUA. Quero dizer: foram anos em que a humanidade passou,
dolorosa mas decisivamente, para o caminho da libertação da mulher e do escravo
e para a (muito lenta, também) dignificação do operário.
O nascimento de Alfredo Binet (a 8 de Julho
desse ano) se, por um lado, se liga à corrente de rigor científico (levando em
conta o que era tido por ciência no seu tempo), articula-se por outro lado com
preocupações sociais, em particular com uma preocupação que terá marcado Cordeiro
da Mata: a da Educação, para a qual o psicólogo e pedagogo francês (nascido em
Nice) trouxe contributos eficazes, tanto quanto para a psicologia experimental.
Infelizmente, o ainda escasso interesse do nosso pequeno tecido urbano nessa
época terá levado as preocupações do nosso poeta apenas até ao método de João
de Deus, que era excelente, prático, intuitivo, mas anterior à elaboração
científica protagonizada por Binet e outros. Cordeiro da Mata, de resto, morreu
jovem, não podendo acompanhar a evolução científica do seu tempo também por
isso. Mas lamentou, poeticamente, os poucos estudos que teve (Matta, 2001 p. 69):
Passei infindas noites
– sem tréguas – sempre a ler;Não me prestava o poucoQue pude n’aula aprender!Tresloucado e bem loucoQuis a raia passarDo pobre que na escolaMais não podia avançar!Quis, enfim, ser poeta […]
Finalmente, a morte de Augusto Comte (5-7-1857), em plena glória,
contribuiu para reforçar a divulgação e o apreço pela cultura científica no
resto do mundo – pese embora o descrédito em que depois caiu, graças sobretudo
ao facto de o positivismo ser mais um cientismo do que, propriamente, uma
teoria científica.
Os factos mencionados contextualizam bem o mundo a que veio Cordeiro da
Mata: contraditório, de transição, violento, impiedoso, abolicionista e
explorador, modernizante e arcaizante, concretizador e criativo,
globalizando-se mas reclamando-se de identidades locais. Em boa parte foi, de
resto, a visão que dele o próprio poeta nos legou no conhecido poema ao século
XIX, comentado por E. Bonavena (Pestana, 2012 p. 8) .
Passemos agora à resumida panorâmica da sua vida. A citação relativa ao
nascimento foi transcrita de um depoimento de Mamede de Sant'Anna e Palma,
datado de “Loanda, 19-5-89”, publicado em Arauto africano, numa recensão impressionista ao livro Delírios («Bibliografia / Os Delírios», 1889) . Apesar de amigo de Cordeiro
da Mata, Sant'Anna e Palma erra o ano de nascimento, pois aponta 1859, enquanto
Mário António e Manuel Ferreira indicam 1857 (o último, por gralha, indica
1875, mas é claro que pensava em 1857). A data por que optei confirma-se em
outra fonte ainda: a notícia necrológica enviada para o Almanach, baseada em cartas de A. J. Nascimento, Pedro Alexandrino
do Vale e A. Nogueira da Rocha. A nota dá o poeta como tendo 36 anos em 1894,
quando morreu. Tendo falecido em Março, ainda não comemorara o aniversário
nessa altura, pelo que 36 deve subtrair-se ao ano anterior, 1893, para sabermos
a data do nascimento – o que dá 1857. Por último, na re-edição do livro Delírios publicada pela IN-CM, mais
concretamente no poema «No meu aniversário», escrito a 25.12.1884 (dez anos
antes da morte), o poeta fala nos seus “vinte e sete anos”, número que,
subtraído a 1884, dá o mesmo ano (1857).
Cordeiro da Mata pertence a uma típica família das terras de Icolo e
Bengo. O primeiro progenitor conhecido dessa família terá sido José Agostinho
Cordeiro, que em 21-6-1835 era votante no distrito de Icolo e Bengo (Mascarenhas, 2008 p. 440) . Da sua relação com
Catharina Lourenço Alexandre nascera o pai do poeta, Agostinho José.
Agostinho José Cordeiro da Mata foi professor, asseverando Mário António
que o filho estudou na escola em que lecionava. Pitigrili
afirma que lá estudaram também dois irmãos seus, embora para um deles eu
não tenha encontrado referências (Mascarenhas, 2008 pp. 381-385) . As inclinações
literárias e as preocupações regionalistas do pai levaram-no a participar
também no Almanach de lembranças, ainda
que não tenha aí precedido Joaquim Dias, contrariamente ao que pensava Mário
António. Possivelmente o pai sobrevivera ao filho, visto que uma portaria (n.º
561) posterior o passa de “praticante de imprensa d’este governo” para o
exercício (interino) do “lugar de compositor de 2.ª classe da mesma imprensa”[1]. É possível também que fosse este último um sobrinho homónimo do pai,
embora eu não tenha conhecimento da existência de sobrinho homónimo. Digo-o
porque o pai de Cordeiro da Mata, como veremos abaixo, ocupou cargos tais que
não me parece que o levassem a terminar a carreira, com tão proveta idade, em
lugares mais humildes da Administração.
Agostinho José Cordeiro da Mata nasceu em Icolo e Bengo a 9 de Julho de
1822, sendo, portanto, cinco anos mais velho que José da Silva Maia Ferreira.
Em 1850 era Escrivão (interino) na Feira de Cassange, posto comercial importante, que
permitia negociar com a Lunda (no Leste) e com Luanda (no litoral). Em 1856 era “Comandante da 3.ª divisão de Icolo
e Bengo e como tal cobrador do dízimo da Fazenda Publica. Depois amanuense da
secretaria da administração por 10 anos sucessivos”. No ano em que nasceu
Joaquim Dias, tornou-se Professor de Instrução Primária de Icolo e Bengo,
nomeado por Portaria do Governo-geral de 19.9.1857. Em 1861 foi Escrivão do
Julgado de Icolo e Bengo e passou para Vereador da Comissão Municipal”. Em 1863
exerceu, “muitas vezes”, a função de Juiz Ordinário substituto em Icolo e
Bengo. Em 1866 foi subdelegado interino no mesmo Julgado. Em 1876 foi, por
“Portaria n.º 511 de 8 de Novembro, nomeado subdelegado do Zenza do Golungo,
tendo antes servido de Vereador da Comissão Municipal da Barra do Dande”. No
dia 10.11.1877 foi nomeado Escrivão da Administração do Concelho de Icolo e
Bengo. Dizia-se que sabia “Ler e escrever portug. Sommar, deminiuir multiplicar
e repartir” (Mascarenhas, 2008 pp. 563-564) . A comprová-lo, consorciou-se
com Isabel Bernardo Afonso, sendo Joaquim Dias o primeiro filho dessa ligação
(tinha uma irmã mais velha, filha de Laureana João, chamada Isabel também), que
ainda criou mais seis irmãos e dois meio-irmãos.
O poeta gerou, por sua vez, duas filhas e dois filhos, um dos quais se
consorciou com Teresa da Conceição Pinto de Andrade, cruzando assim duas
grandes famílias tradicionais da zona. Um dos irmãos, o “alferes de 2.ª linha”
Sebastião José Cordeiro da Mata, na sua certidão de óbito é dado como filho de
Agostinho José Cordeiro da Mata e Isabel Afonso Bernardo, havendo uma troca na
ordem dos apelidos. Nessa certidão, Sebastião José foi dado como “filho
ilegítimo”, pelo que se pode deduzir que o consórcio dos pais não estivesse
legalizado por altura do nascimento. A certidão não é, no entanto, de inteira
confiança, pois também o dá como solteiro e sem filhos, tendo ele tido vários
filhos (Mascarenhas, 2008 p. 571) .
No conjunto, a sua família surge integrada numa vasta rede familiar e
de interesses, ainda hoje presente em toda a Angola, na qual se incluem, para
além dos Pinto de Andrade, os Pinheiro Falcão, os Dias dos Santos, os Palma e
Aleixo de Palma, os Santos Torres, os Viegas, os Oliveira Neves, os José da
Costa (lembremo-nos de Teófilo José da Costa, por exemplo) e os Piedade (Mascarenhas, 2008 pp. 381-383) .
O retrato feito no “Registo Doloroso” do Almanach de lembranças para 1895 dá-nos alguns traços de carácter
para Cordeiro da Mata. Dizia ele que o conterrâneo (e cónego) A. J. Nascimento
definia o poeta como pessoa “afável, inteligente, extremamente reconhecido aos
beneficios, caráter firme e sério, génio pouco expansivo e coração de pomba”.
Estes traços psicológicos veem-se corroborados por Carlos da Silva, que escreve
n’O echo de Angola (n.os 8
e 9) um “folhetim” que é, na verdade, um comentário aos Delírios (onde um poema lhe foi dedicado, «O fogo das paixões»,
datado de 1884 (Matta, 2001 p. 165) ). Ele nos garantia
que o poeta angolense “nasceu para amor e amizade” (n.º 9, 10.5.1889, p. 2) – como se diria de
Gonçalves Crespo em Portugal. Estas datações e estes títulos pedem, no entanto, uma verificação.
Analisando fotografias do exemplar, enviadas por Eduardo António Estevam Santos (Universidade Federal da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, Instituto de Humanidades e Letras), esse 'folhetim' acaba no n. 7, de 28.4.1889, e trata-se do quinzenário Arauto Africano. Por lapso escrevi O Echo de Angola, o que era impossível, pois esse periódico já não se publicava em 1889 (confirmei - que não foi retomado - nas mais diversas fontes). Aliás, em Notícia da literatura angolana o lapso não existia. Também não me parece provável que o "folhetim" de Carlos da Silva a propósito dos Delírios se repetisse nos dois números seguintes (o que não seria caso único). Só tive acesso, em Lisboa, à segunda parte, publicada a 28 de abril. Em se tratando de um quinzenário, o n. 6 teria saído a 22.4.1889 e lá se publicara a primeira parte. Em algum momento eu vi essa primeira parte e foi daí que tirei a informação de se tratar de um folhetim. Porém, perdi essa referência, penso que em Luanda. Fecho aqui o parêntesis e retomo o fio da narração.
Cordeiro da Mata foi sem dúvida um amante profícuo do seu país, de que estudou duas
línguas (quimbundo e português), muitos costumes e algumas tradições, danças, provérbios
e lendas. Assim acompanhava a sequência, também, da evolução da cultura
europeia que se virava para a etnografia e a identidade popular. O facto não
desmerece em nada o seu labor, ao contrário do que faria supor o
fundamentalismo banto e neonativista na Angola de hoje. Ele sublinha, pelo
contrário, que era Cordeiro da Mata um homem do seu tempo, atualizado e não atrasado,
que tinha formação acima do que podia fazer supor um quase total autodidatismo
naquela Angola.
Constituía, no século XIX (e ainda muito no século XX), nos mais
variados países do mundo, prova de patriotismo, espírito científico, tradição e
identidade a recolha do vínculo comum guardado por contos e provérbios. Nesse
sentido, por exemplo, Fauriel recolheu os Contos populares da Grécia moderna, Garrett coligiu o Romanceiro e é por aí também que passa boa parte das Lendas e narrativas (de Alexandre
Herculano) – bibliografia que encontrei nas nossas fontes, ou seja, que deve
ter sido lida em Angola durante o período de formação literária e cultural de Cordeiro
da Mata. É de se ler, igualmente, o
artigo do português Augusto Soromenho publicado no Rio de Janeiro, em O futuro, em 1863 e chamado «Poesia
popular». O filósofo Sílvio Romero, no Brasil, fez uma recolha com idêntico
sentido: Cantos populares do Brasil, em vários volumes, o segundo dos quais disponibilizado pela brasiliana da USP. A recolha teve prefácio e “notas comparativas” de
Teófilo Braga, não por acaso. Com as novas correntes críticas partilhadas por
ambos, Teófilo Braga fez algo parecido e, quando leu Fauriel, achou que veio
“mostrar à consciência do nosso tempo como a unidade política de um povo e a
sua liberdade se funda e renova sobre o vínculo comum da tradição” (Braga, 1880 p. 77). O puro mito romântico da nacionalidade foi, portanto, continuado pelo Realismo,
de que um dos desenvolvimentos (atingido igualmente em Angola) se tornou
etnográfico.
Parece-me este o sentido exato, nacionalista e globalizado, com que “o
poeta negro do rio Quanza” fez a recolha do folclore angolense e do património cultural
quimbundo (v. Philosophia popular em provérbios angolenses, 1891; Cartilha racional para aprender a
ler Kimbundu, escrita segundo a cartilha maternal de João de Deus, 1892 (de que há exemplar na Sociedade de Geografia de Lisboa, cxª 4, nº 87); Ensaio
de diccionário Kimbundu-Portuguêz, 1893; v. ainda os manuscritos 114
contos angolenses e Repositório das coisas angolenses). Deve
ter sido vocação precoce (a do estudo social da angolanidade), pois Carlos da
Silva garante que em 1876 Cordeiro da Mata já tinha escrito O luandense da alta e baixa esfera: estudo
crítico e analítico.
Nestes ambientes e comércios, de livros e de
‘escolas’, a vinda a lume dos “anexins” de D. Francisco Manuel de Mello reforçava
o interesse pela sabedoria popular. Recorde-se que só em 1875 saiu (na Parceria
A. M. Pereira, de Lisboa) essa “obra póstuma”, editada, “dirigida e revista por
Inocêncio Francisco da Silva” – uma garantia de rigor no que se chama hoje a
crítica textual. O livro que vi no Arquivo Histórico pertenceu ao [P.e?]
António M. Basílio Ferro, se li bem o nome, que o assina no “Dondo, 18=8=1896”.
Não sei se o Pe António Moreira Basílio, prefaciador de Porque se escreve Luanda com U, de
Lourenço Mendes da Conceição (Conceição, 1943) , andaria já pelo
Dondo nesse tempo. Sei que foi nomeado professor de quimbundo para lá em 1907.
Terá, de qualquer modo, sido comprado o exemplar a alguém no Dondo, ou por
perto, numa zona que o nosso poeta conhecia bem – e ele próprio pode ter
possuído, ou lido, antes o exemplar. A sua circulação reforça a ideia de
circulação bibliográfica, não só comercial, em toda aquela zona.
Inocêncio Francisco da Silva, na introdução (“Preliminares”, fl. VI),
reafirma a pertinência editorial dos anexins do nobre português, tanto para
escritores quanto para tradutores, pela contribuição para o “estudo e prévio
conhecimento da língua dos seus maiores” – objetivo comum a Cordeiro da Mata se
trocarmos Portugal por Angola, ou Lisboa por Luanda. A troca é, precisamente, o
sinal libertador que vai permitir ao poeta estar, ao mesmo tempo, a recolher e
reproduzir uma sabedoria a que acedeu desde pequeno e a trabalhar, em prol do
seu país (de fronteiras ainda mal definidas), sem chocar com os novos cânones
do colonizador, ou simplesmente da cultura dominante, a da civilização europeia
– pelo contrário, rentabilizando-a. Aqui se abre o maior espaço de manobra dos filhos
da terra no próprio cerne ‘científico’ da cidade colonial ‘civilizadora’.
Cordeiro da Mata não cursou Universidades, nem nenhuma outra escola
tirando a do Bengo, tendo iniciado a sua carreira como empregado do comércio em
Luanda, aos 16 anos segundo Nelson Pestana (Pestana, 2012 p. 11) . Ao se estabelecer
na Barra do Quanza, tornou-se proprietário. Negociou por esse tempo em “madeira
e bordões do Tombo” (Pestana, 2012
p. 12) e comprou um
“Cutter” para transporte de mercadorias entre a Barra e Luanda. Foi a partir
daí, rodeado pelos seus livros, que desenvolveu o convívio literário com dois
outros nomes importantes para as colaborações angolanas do Almanach de lembranças: Eduardo Neves (contabilista, nascido em
Santa Comba Dão, Portugal) e José Bernardo Ferrão (talvez comerciante),
chamando-se aos três (e eventualmente a mais alguns companheiros, cujo nome não
descobri) “os […] vates do Quanza” (Soares, 2001) .
Morreu Cordeiro da Mata com tuberculose pulmonar, na Barra do mesmo Quanza,
a 2 de Março de 1894[2], nove meses antes de nascer Florbela Espanca em Portugal, no mesmo ano
em que nasceu o romancista francês Louis-Ferdinand Céline e em que se iniciou o
simbolismo russo. Dois meses e meio depois de morrer o poeta do Quanza, na
China, veio ao mundo Mao Tsé-Tung, cujo regime havia de acolher e punir, por
via do PCC, o nacionalista angolano Viriato da Cruz.
As leituras feitas por Cordeiro da Mata, infelizmente, não as pude
conhecer ainda com precisão. Fiz aproximações e, pela importância que tiveram
(por serem leituras dele), inseri-as na secção «Leque angolense de leituras
literárias», onde o primeiro ponto versa, precisamente, «Cordeiro da Mata e o
ambiente literário angolense». Neste passo, para aguçar a curiosidade do leitor,
apenas transcrevo os nomes apontados (entre outros) por Nelson Pestana como
intertextualizações do nosso poeta: Sócrates, Da Vinci, Rubens, Bocage,
Marquesa de Alorna, Camilo Castelo Branco.
Eduardo Neves
Se fizermos um breve escorço biográfico de Eduardo Neves, a segunda
figura mais importante entre os colaboradores angolenses no Almanach de lembranças e um amigo de Cordeiro
da Mata, repomos uma filiação literária similar à do poeta do Quanza. As
origens familiares eram, porém, de sentido oposto.
Eduardo Paulo Ferreira Neves nasceu em Santa Comba Dão em 1854,
portanto trinta e cinco anos antes de lá ter vindo ao mundo o último ditador
colonial, António de Oliveira Salazar. Ele partiu para Angola muito novo,
seguindo os seus irmãos, todos chamados por um tio que ali pouco originalmente
enriquecera no comércio, principal atividade criadora da lusofonia. Foi
guarda-livros no Dondo, não havendo certeza sobre se chegou a constituir loja
própria, a julgar pelo que diz num soneto a um dos irmãos, José Neves (casado
com uma senhora da terra), e pelo que dele retrata A. Assis Júnior em O segredo da morta (um retrato pouco
favorável, de resto). Faleceu no Dondo a 2 de Junho de 1899 (dez anos depois de
Salazar nascer), com 45 anos, tendo ainda sido pagos nesse ano emolumentos em
seu nome, no valor de $540 réis[3].
No Correio de Loanda há uma
referência ao “sr. Miguel Paulo Ferreira Neves”, nomeado “administrador
substituto do concelho do Dondo”. Provavelmente se tratava de outro irmão do
nosso poeta. Era sócio da firma Manaças, Neves e Zagury[4]. Um pouco depois, em Junho de 1890, ficamos a saber que também
exercera em substituição o cargo de administrador do Concelho de Cambambe,
sendo exonerado nesse mês[5].
Eduardo Neves era um leitor assíduo do Almanach, onde não sei bem se assinou, precisamente com o nome
“Paulo”, uma composição dedicada a Dª Alice Moderno. Foi esta uma interessante
e característica personagem feminina da cultura portuguesa da época e por isso
nos ajuda a situar o poeta. D.ª Alice Moderno veio ao mundo mui distintamente
em Paris, mas foi para os Açores com 7 ou 8 anos de idade, aí morrendo. Além
dos Açores, frequentou salões lisboetas também, possuindo nesses ambientes uma
excelente reputação. Ultrarromântica pela temática e pela maioria dos tópicos, escrevia
porém sonetos de linguagem cristalina, com alguma influência parnasiana, à
semelhança do que fez o próprio Eduardo Neves, por exemplo na série «Africanas».
Tal como D.ª Antónia Gertrudes Püsich, com quem deve ter convivido, viveu o seu
papel de mulher decididamente missionada para o ensino e para a luta pela
revalorização profissional do sexo feminino – o que, nesse tempo e na
lusofonia, não foi comum, conhecendo-se hoje notáveis mas raras protagonistas
no Brasil e em Portugal, em Angola não no campo cultural mas no económico, onde
já não constituía novidade nenhuma a fortuna feminina. Subscreveu D.ª Alice
Moderno, no Almanach, o soneto «Horas
de spleen», cujo conteúdo não remete para António Nobre, nem para Baudelaire. O
soneto localiza-a em “S. Miguel – Açores”. Contava na altura 18 anos e dizia
preparar um livro de líricas sob o título Aspirações.
Dirigiu em Ponta Delgada um semanário literário de nome (sintomático?) A folha (Silveira, 1981: 10 (Cardoso,
[1917?] p. 24) ).
Quanto a almanaques, Eduardo Neves ainda cortejou o das Senhoras, periódico de longa duração
do ultrarromantismo repassado (e feminino) português, o que o situa, mais uma
vez, por paradigmas tardios no espetro literário de referência. Recorde-se, de
passagem, que o Almanach das senhoras
foi fundado em 1871 por D.ª Guiomar Torrezão, professora e poetisa muito
respeitada nos salões elegantes do século XIX português (Cardoso, [1917?] p. 162) .
O seu nome fica bem ao lado do de D.ª Alice Moderno, D.ª Antónia Gertrudes
Püsich e outras, dos dois lados do Atlântico, entre as quais avultam o perfil e
a obra de Maria Amália Vaz de Carvalho, casada com António Cândido Gonçalves
Crespo, o excelente e cordato parnasiano lusobrasileiro. Um livro desta última escritora constava do catálogo do Arquivo
Histórico Nacional em Luanda, mas não pude consultá-lo.
Quanto aos portugueses, Neves cita Faustino Xavier de Novaes (em «Ode
ao vinho»), que largamente o influenciou, e dedica um poema a António Xavier
Rodrigues Cordeiro (1819-1896).
Faustino Xavier de Novaes, ou Novais (1820-1869), ultrarromântico da
geração de João de Lemos, referi-o já várias e há de reaparecer ainda. Foi
diretor de O bardo, periódico
literário incluído por Álvaro Manuel Machado (a par de A grinalda) na passagem do ultrarromantismo para o Porto, a caminho
da província.
Na apresentação do periódico ele critica já os excessos da “moda
romantizada” (Machado, 1986: 73). A poesia de Novaes distinguiu-se efetivamente
pela ironia face à “moda romantizada”, característica bem mais notória na obra
de um seu cunhado. Essa ironia criava algum distanciamento relativamente ao
próprio ultrarromantismo por ele praticado, o que parece ter sido caraterístico
dos últimos poetas da escola do Visconde. O tom irónico, brincalhão mesmo, é que
mais terá influenciado Eduardo Neves. Tornou-se muito popular no Brasil (onde
pelo menos um poema seu, musicado, se mantém canção popular até hoje: “quando
eu morrer quero ir em fralda de camisa / defunto pobre de luxo não precisa”). Abandonou
o Porto a favor do Rio de Janeiro, onde publicou livros e colaborou muito na
imprensa. A sua irmã, Carolina Novaes, “acabou sendo o grande amor do maior
escritor brasileiro, Machado de Assis” (Neves, 1992: 29), que se casou com ela.
A forte ligação de Novaes ao Brasil acredito que facilitasse, tanto quanto a
ironia dos versos bem-humorados, a sua penetração no mercado angolense. Além
disso, como já reportei em Notícia da
literatura angolana, ligou-se o bardo luso à lírica dos nossos
ultrarromânticos, particularmente por via de uma composição sintomática de José
da Silva Maia Ferreira, de que fez uma versão jocosa e talvez acintosa.
Quanto a António Xavier Rodrigues Cordeiro, ele esteve profundamente
ligado ao Almanach de lembranças e à
família Castilho, sendo um ano mais velho que Faustino Xavier de Novais, como
João de Lemos. Curiosamente, F. Gomes de Amorim, numa carta a Gonçalves Dias,
noticiando-lhe a eleição de “António Xavier Cordeiro” por Leiria, em carta de
Dezembro de 1856, chama-lhe “o nosso poeta provinciano” (Biblioteca Nacional, 1972 p. 87) . Por outra carta, enviada
de “Lisboa 3 de julho de 1857”, ficamos a saber que o “Cordeiro” (pelo contexto
me parece ser o mesmo) era amigo de Gonçalves Dias também (Biblioteca
Nacional, 1972 p. 137) .
É, pois, de integrar Eduardo Neves na margem e na ganga dos circuitos
ultrarromânticos portugueses da última fase (a de Faustino Xavier de Novaes,
mas também de D.ª Alice Moderno) e, plenamente, na nossa geração de 1878 (a que se inicia no Jornal de Loanda).
Entre os seus contemporâneos angolenses, nativos e residentes,
reconhece ter lido a ficção de Pedro Félix Machado, o primeiro filho da terra a
publicar uma narrativa artística em livro e que Ervedosa incluía na geração de
1878. Como poeta lírico, Pedro Félix Machado constituiu, porém, uma alternativa
a essa geração com Sorrisos e desalentos,
um livro parnasiano – e se o parnasianismo não foi estranho aos restantes
membros da geração (sobretudo Eduardo Neves), também não era paradigmático para
eles. Mas aqui é a narrativa que é chamada, uma narrativa de enredo
labiríntico, muito bem escrita, sobrepondo dois tempos diferentes na mesma
cidade (Luanda) com laivos assinaláveis de Realismo. Pedro Félix Machado
oscilou também entre a poesia e o comércio (vendia e instalava em Benguela, ao
tempo de A semana, artigos elétricos
– no que seria inovador para o meio) (Anúncio, 1893 p. 4) .
Eduardo Neves dedicou um poema a Francisco Maria Quintella de Assis,
figura da sociedade luandense, penso que de origem portuguesa e algo
preconceituoso relativamente aos africanos negros. O poema intitula-se «A
consciência», sendo encimado por um “Adágio”, cuja moral é tão portuguesa
quanto angolana ou são-tomense: cada qual
dá o que tem. Dedica, finalmente, um soneto de motivação nativa («O olhar
d'uma africana») a Alfredo Troni, o novelista de Nga mutúri, fundador e diretor do Jornal de Loanda no qual a geração se revela a partir de 1878.
Produtivo, Eduardo Neves foi também colaborador em jornais vários da
Luanda contemporânea, como O mercantil,
o Arauto africano e O polícia africano. Ainda lhe sobrou
tempo (o Dondo dessa época!) para se tornar charadista e decifrador exímio,
como se vê pelas listas de decifradores e pelas charadas que sob o nome
“Cecílio” publicou no Almanach (ainda
com o mesmo poetónimo fez sair uma composição na «Secção de variedades» do Jornal de Loanda). Estava, nessa
prática, a par de outros colaboradores angolanos, incluindo Cordeiro da Mata e
seu pai. O facto, aliás, leva a pensar se essa prática se devia colar ao nosso corpus e, mas ainda, se o seu cultivo
não estaria adubado pelas oraturas africanas, onde as adivinhas e outras
práticas idênticas visavam desenvolver e demonstrar argúcia verbal e analógica.
Uma linha de pesquisa que fica no ar, pelo seu ineditismo e pela minha falta de
tempo para a levar adiante agora, é, precisamente, a do estudo das possíveis
relações entre a importância das adivinhas e provérbios nas culturas
tradicionais africanas e na poesia angolense do século XIX.
Da sua convivência com J. D. Cordeiro da Mata no Quanza veio a receber
dedicatórias, uma delas num poema sintomático do que aos dois foi também comum
– a lírica bilingue: «Nguibanga-kiê! (que faço!)» (Matta, 2001 p. 83) . O apoio no que diz
respeito ao conhecimento da cultura e da língua da zona deve ter sido decisivo
para os poemas bilingues de Eduardo Neves. Este bilinguismo literário
tornou-se, de resto, um timbre dos dois poetas e, portanto, do Dondo.
A dedicatória a Eduardo Neves no poema «Às mulheres» (Matta, 2001 p. 107) é também
significativa. O primeiro verso indicia desde logo o conteúdo: “eu não creio no
vosso amor, mulheres”. Ele faz parte da relativamente longa série de peças em
que J. D. Cordeiro da Mata se queixa da falsidade feminina e acusa o género
oposto (tanto quanto complementar) de oportunismo e de querer apenas dinheiro. O motivo aparecia já nas Espontaneidades de Maia Ferreira e ganhava
dimensão maior aí. Terão partilhado, Cordeiro da Mata e Eduardo Neves,
desilusões amorosas? Ou apenas confissões?
José Bernardo Ferrão
Quanto a este outro “mimoso vate do Quanza”, pertencia a uma família de
comerciantes portugueses espalhada por Angola.
Há notícia de um “J. B. Ferrão”, que viajou de Lisboa para Luanda no
“vapor inglês norfolk” e chegou à capital angolana em Março de 1865,
precisamente no ano em que saía em Lisboa o Exame
das viagens do Doutor Livingstone, feito por D. José de Lacerda para
mostrar as incongruências do escocês. É sintomático ainda que, nesse ano, se
instale em Angola o Banco Nacional Ultramarino, cuja atuação iria lentamente
reposicionar (para baixo) todo o escol crioulo do século XIX (como bem mostrou Adelino Torres).
J. B. Ferrão seguia incluído num grupo de “caixeiros” e talvez
fosse nesse ano para Angola pela primeira vez, pois a sua primeira colaboração
angolana («Melancolia») saiu no Almanach para
1868 (recordo que, normalmente, as colaborações publicavam-se dois anos depois
de enviadas). José Bernardo era irmão de Bernardo António Ferrão, António
Bernardo Ferrão e Sebastião José Ferrão, mas vivia afastado deles quando morreu,
tendo deixado de ser sócio dos irmãos em 1874[6] – portanto quando começou a
colaboração mais significativa no Almanach.
Certamente Joaquim Bernardo Ferrão seria também do mesmo núcleo
familiar (um dos irmãos ou, possivelmente, o tio com quem vieram trabalhar)[7]. Integrou, junto com outros prestigiados negociantes, uma comissão de
eleitores de “juízes jurados” e pagou 1$107 réis de emolumentos no mês de
Outubro de 1847, ano em que foi nomeado para a dita comissão[8] (recorde-se que foi neste mês
que Maia Ferreira se deslocou de Luanda para o Rio de Janeiro, onde ficaria até
1849. Ou seja: ele e Joaquim Bernardo Ferrão podem se ter conhecido).
O nosso Ferrão cultivou a amizade do comerciante e versejador Joaquim
de Jesus Ferreira, que noticia a sua morte e o considera “um dos nossos bons
poetas”. Na notícia necrológica lamenta que J. B. Ferrão não tenha chegado a
publicar as “muitissimas Poesias que
tinha escripto”. Estava anunciado “um volume de versos do fallecido”, a editar a
expensas e cuidados de António Bernardo Ferrão, que pagara de emolumentos, em
Abril de 1874, 1$107 réis[9]. Joaquim de Jesus Ferreira reconhece ainda que ele não tinha “estudos”,
ou seja, seria parcialmente autodidata como Cordeiro da Mata. O promitente editor
aparece de quando em quando nas notícias ou nos anúncios dos periódicos locais.
Por exemplo se sabe que ele vinha de Liverpool, ou de um dos “portos de sua
escala”, num navio para o Ambriz, onde segundo parece desembarcou, por volta de
17.02.1874[10]. Por outro anúncio lemos que J. B. Ferrão viajou no “vapor paquete inglês AFRICA”,
oriundo de Liverpool “pelos portos de sua escala”[11]. Coincidentemente, no regresso do “vapor paquete inglês” a Liverpool
(e “portos de sua escala”), seguiu, a 27 de Março, um certo (ou uma certa) M. F. Machado[12]…
A sua poesia passou de arrebatamentos exaltantes relativamente a
Portugal para a completa desilusão com o colonialismo português (que não deixou
nunca de ser a desilusão de um colono), chegando mesmo a sinalizar-se por um
vocabulário que lembra a propaganda socialista e republicana da época:
força, justiça, progressotrês centelhas redemptorasda tua [de Angola] aurora futura,que espantará os milhafrese fará das hordas cafreslegiões trabalhadoras
e também “[levará] povos vadios / a serem úteis colonos”.
O poema foi posto no
álbum de Eduardo Neves e o seu conteúdo, somado às discussões sobre a
independência de Angola, que por um amigo de Cordeiro da Mata sabemos existirem
no Dondo nessa altura, sugerem uma ambiência pouco favorável ao colonialismo - pelo menos ao colonialismo português.
Uma das últimas prestações públicas da sua poesia deu-se em um espetáculo da Sociedade Perseverança, a 15.8.1881. Tratava-se de uma "grande gala" para comemorar a "restauração d'Angola". Segundo o Jornal de Loanda (n. 113, de 28.9.1881, p. 3), "abriu o espetáculo o sr. Carlos da Silva (amigo de Cordeiro da Mata) com uma poesia alusiva à comemoração do dia, escrita pelo sr. Ferrão", a qual foi tão aplaudida (pela execução do declamador e decerto pelo próprio poema) que "a recitação" teve que ser repetida e novamente ovacionada.
José Bernardo Ferrão faleceu a 29-7-1882 em Luanda, em pleno auge do
colonialismo inglês, que dois meses mais tarde ocuparia o Cairo desterrando o
Paxá para Ceilão. Estava igualmente no auge o colonialismo bancário (devo ter
acabado de inventar o conceito…), através do qual as elites locais iam sendo proletarizadas
em razão de juros. Carlos da Silva, amigo de Cordeiro da Mata (que lhe dedica o
poema «O fogo das paixões») e de Eduardo Neves, diretor de O arauto africano e de O polícia
africano, enviou também uma nota necrológica para o Almanach, sobre o falecimento de Bernardo Ferrão, de onde extraí
algumas destas informações.
José Bernardo Ferrão foi, sem dúvida, um dos poetas da geração de 1878,
embora tivesse começado a publicar dez anos antes dessa data. Em 1874 era já
suficientemente reconhecido para recitar uma “poesia alusiva ao acto” na
cerimónia de inauguração da estátua de Salvador Correia de Sá, a 1 de Março (Castelbranco, 1932 p. 30) . Era, dos três “mimosos
vates do Kwanza” e dos amigos de Cordeiro da Mata, talvez o menos informado
sobre a cultura de língua quimbundo - ou o que menos o revela.
[1] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 49 (09-12-1899) 695. Transcreve a Portaria 561 desse
ano.
[2] Bonavena indica 4 de Março (Pestana, 2012) .
[3] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 32 (12-08-1899) 497.
[4] Correio de Loanda. 16:1
(27-04-1890) 3.
[5] Correio de Loanda. 22:1 (8-6-1890)
3.
[6] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 28 (11-07-1874) 326.
[7] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 31 (01-08-1874) 374. Pagou nessa altura 2$584
réis.
[8] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 41;44 (10-10-1874;31-10-1874) 487;524.
[9] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 17 (25-04-1874) 196.
[10] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 7 (17-02-1874) 79.
[11] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 9 (28-02-1874) 97.
[12] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 14 (04-04-1874) 166.
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