Três poetas no rio Quanza


Podemos pesquisar que títulos seriam lidos em Angola, também, a partir da biografia de alguns dos nossos autores, filhos da terra ou residentes de longa data, aclimatados portanto. Pelo menos de Cordeiro da Mata sabemos, pelos seus contemporâneos, ter possuído uma significativa biblioteca, havendo condições para levantarmos os títulos de alguns dos livros e escritores que terá lido, quer através de citações que fez, quer através do conhecimento de bibliotecas de amigos ou conhecidos. Num primeiro momento – este – resumo a biografia de Cordeiro da Mata e de dois dos seus amigos do rio Quanza e de Pedro Félix Machado; elas completarão a nossa representação mental do grémio histórico-social envolvente e que já comecei a retratar ao resumir as biografias de Eugénio de Salles Ferreira, Urbano de Castro e Alfredo Troni (v. capítulo anterior). Num segundo momento (a partir da secção «Leque angolense de leituras literárias») retomo a análise das obras que podiam ter sido lidas pelos nossos autores do século XIX.

Joaquim Dias Cordeiro da Mata

O que faço aqui relativamente a Cordeiro da Mata é um mero resumo biográfico, alargado a notas contextualizadoras. A apreciação e contextualização da lírica do poeta já a fiz no primeiro volume de Kicola (Soares, 2012) e para lá remeto o leitor interessado, pois estas notas e este livro têm aquele primeiro volume como pressuposto.

Entre os referidos poetas do Quanza este foi, sem dúvida, o poeta. Os outros dois (ou mais) terão sido bissextos com momentos de inspiração, mas de forma nenhuma se aproximaram, nem tentaram aproximar, da vocação e da concreção poética e intelectual de Cordeiro da Mata. Ao juntar as referências a eles às do poeta de «Kicôla!» sigo só a sugestão da própria época, perseguindo uma eventual convivência literária que se teria formado no Dondo nesse tempo, ainda então um entreposto comercial significativo e, na prática, sede de boa parte das famílias crioulas do hinterland de Luanda – as de A casa velha das margens (Santos, 2010) e as das margens da casa velha. Tome-se crioulas no sentido em que uso e conceituo a palavra, já definido por mim várias vezes, pois esse termo é descritivo e não prescritivo. Para quem não compreenda, descritivo é um termo que se regula e se limita pela sua referência, não pretende criar nenhum regulador ou condicionador do pensamento, como fazem vários intelectuais neonativistas e xenófobos com o que chamam de ‘nativo’ (termo que, sem dúvida, inclui crioulos de vária estória e de vária glória) e como faziam os neorrealistas com o que chamavam de ‘operário’. Nativos foi só o termo de referência usado por esses crioulos diversificados para se demarcarem face ao avanço colonial do seu tempo, sublinhando uma origem e vincando os direitos e prerrogativas a que tal origem deveria dar espaço. O nosso poeta fez parte dessa crioulidade reivindicativa e demarcada.

Nasceu Joaquim Dias Cordeiro da Mata, sintomaticamente, aos 25 de dezembro de 1857, “no rico e ameno concelho de Icolo e Bengo” (como escreveu Mamede de Sant’Anna e Palma), cerca de três meses depois de José da Silva Maia Ferreira escrever três poemas em Lisboa, onde estivera numa visita curta para promover a sua candidatura a cônsul, ou vice-cônsul, de Portugal em Nova Iorque. Em Lisboa, Maia Ferreira convivera com poetas e políticos ligados ao Ultrarromantismo e de quem era amigo. Cordeiro da Mata iniciará (timidamente embora) a transição dessa para uma outra escola poética, onde não se chegou a definir, mas de que aproveitou soluções estróficas ou rítmicas, bem como algum vocabulário, desbravando caminhos que pisariam certos autores da Luz e crença – nome de loja maçónica e de revista protonacional. A diferença ilustra bem o destino diverso dos dois primeiros poetas angolanos a publicarem um livro de versos em Angola – de resto com uma diferença de idades assinalável: trinta anos, ou seja, duas gerações, seguindo a proposta de Pedro Lyra de contá-las de quinze em quinze anos - embora o crítico aceite genericamente a marca dos vinte anos até mudar a geração, medida que remonta a Eliot. No nosso caso, da geração de Maia Ferreira para a seguinte passaram mesmo cerca de trinta anos.

Nasceu Cordeiro da Mata no mesmo ano em que o romancista brasileiro Aluízio de Azevedo (m. 1913), dois anos depois do poeta realista português Cesário Verde (1855-1886), seis anos depois do negrista e político (liberal, abolicionista, republicano) brasileiro Manuel Raimundo Querino (1851-1923) e no ano em que se publicou no Brasil O guarani, do romântico nativista, conservador e elitista José de Alencar (1829-1877). O ano de 1857 viu nascer ainda Francisco José Teixeira Bastos (m. 1902), um poeta, médico, ensaísta e jornalista português hoje desconhecido, porém divulgador proficiente do positivismo e do socialismo em Portugal e citado por Cordeiro da Mata. Espreitemos essas e mais algumas sincronias.

Aluízio de Azevedo fez a transição brasileira do romantismo e do indianismo para a narrativa realista, vindo a ser a grande referência do naturalismo no Brasil. Ignoro se Cordeiro da Mata o leu, mesmo se foi lido em Angola no século XIX, mas esta coincidência nos permite figurar a dimensão lusógrafa da geração realista, naturalista, socialista, positivista, que assumiu contornos diversos conforme os países e rumo aos quais, entre nós, as narrativas de Pedro Félix Machado e algumas líricas de Cordeiro da Mata vieram a dar os primeiros sinais.

O guarani, por seu turno, tornou-se um dos ícones da narrativa indianista (por aí nativista) brasileira. Com ele iniciou o seu projeto literário nacionalista (e romântico) José de Alencar. O negro era, entre nós, o nativo (se esquecermos os agregados pré-banto), como o índio era no Brasil. Pela popularidade do livro de Alencar, acredito que tenha circulado na letrada colónia de Angola também. Sendo assim, contribuiu para reforçar estímulos locais ou no local. Entre eles alguns vindos de fora, como o (posterior) de Héli Chatelain (muito baseado no trabalho de Cordeiro da Mata), mas também internos, familiares até, pois sempre os mais velhos (e as mais velhas) reclamam o registo, a manutenção, se não mesmo a propagação das tradições antigas.

Ainda nesse ano Souzândrade publicou as Harpas selvagens (e no seguinte começou a escrever os primeiros cantos do Guesa errante, a seu modo neonativista panamericano). Baudelaire publicou as Fleurs du mal no mesmo ano também. Duas referências contrastantes, ou seja, que definem melhor o que fomos nesse tempo mostrando o que não fomos e podíamos ter sido. Infelizmente a nossa poesia não seguiu pelos caminhos audazes dos dois poetas, aliás extemporâneos nos seus próprios países.

Marcando a dupla face dessa data, 1857 foi o ano, ainda, em que faleceu Glinka, o grande compositor romântico russo, ao mesmo tempo em que o anarquista Bakunine (símbolo do que viria depois) se viu deportado para a Sibéria: morria o romantismo e reprimia-se o anarquismo socialista.

Francisco Gomes de Amorim (1827-1891), talvez o primeiro neogarrettiano, com uma carta elogiosa de Castilho publicava em 1858 os Cantos matutinos, em que regurgitava uma lírica menos mecânica ou sonolenta – não menos sentimental – que a dos ultrarromânticos, com uma linguagem simples, coloquial (lembremo-nos ainda de que o autor vivera muitos anos no Brasil, emigrante pobre no interior-norte do país). Um exemplar de Cantos matutinos encontrava-se há poucos anos (quando lá investiguei) na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda e é possível que tivesse vindo para Angola nesse tempo e que fosse lido por Cordeiro da Mata, entre outros. Gomes de Amorim foi trazido ao convívio literário ultrarromântico por Luís Augusto Palmeirim, um amigo de Maia Ferreira que, junto com Bulhão Pato e outros, ajudara a aproximá-lo mais de Garrett, objeto da sua grande devoção. A biografia de Gomes de Amorim, na parte respeitante ao Brasil, esses ultrarromânticos tornaram-na mítica e elogiaram a sua lírica, sem dúvida mais viva, simples e por isso eficaz que a de muitos dos artificiosos do Ultrarromantismo (Pato, 1877 pp. 47-53). Ora, o ultrarromantismo lusógrafo, quase sem se dar por isso iniciara a busca de alívio do peso emocional e do estereótipo literário com que foi lido o primeiro romantismo em língua portuguesa pelos seus seguidores imediatos. Tímidos sinais encontravam Eduardo Neves e J. Bernardo Ferrão, tal como o poeta de Icolo e Bengo, da autossuperação, que tinha em Faustino Xavier de Novais, simultaneamente em Portugal e no Brasil, o mais popular exemplo. Ao mesmo tempo que os primeiros vagidos do realismo se escutavam na colónia, vinha esta coloquialização, vivacidade, esta linguagem mais próxima do quotidiano, acompanhada de ironia felina (sobretudo no caso de Novais), apimentar o marasmo particularista, episódico, sentimental e balofo dos anos anteriores. A síntese entre as duas escolas e, ainda, a parnasiana (de que nos dará sinais Pedro Félix Machado), realizou-se com João de Deus (1830-1896), em Portugal. Ultrarromântico por geração, foi poeta e pedagogo já para além da escola dominante entre os seus coetâneos e se aproximou, pelo rigor da forma como pelas preocupações sociais, do parnasianismo e do realismo. João de Deus constituiu, precisamente, o modelo pedagógico de Cordeiro da Mata, que tentou fazer, para Angola e o quimbundo (kimbundu), uma cartilha idêntica à do mestre.

João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1864) – uma das referências de Cordeiro da Mata – havia morrido em dezembro de 1854 e o famoso compositor alemão (romântico) Robert Schumann falecera em 1856, um ano antes, portanto, de Cordeiro da Mata nascer. Na Baía morria em 1855 o ultrarromântico (autêntico esse) Junqueira Freire, devido a complicações cardíacas. Na verdade, o Romantismo foi morrendo lentamente nos anos 50 e 60 do século XIX lusógrafo, nas mesmas datas em que se publicavam as obras dos ultrarromânticos, ou românticos de segunda geração, tendo, quase todos, entre vinte e trinta anos.

No espaço lusófono, no que ao Brasil diz respeito, a lentidão em parte se ficou a dever à popularidade das ficções de José de Alencar e da lírica de Castro Alves (1847-1871; em 1863 ele publicara o primeiro poema abolicionista, «A canção do africano», e em 1870 saíram as Espumas flutuantes), bem como à popularidade da hoje esquecida lírica de Casimiro de Abreu (1839-1860; As primaveras são de 1859, dois anos após o nascimento do nosso poeta). No que diz respeito a Portugal, anote-se a popularidade de Camilo Castelo Branco (1825-1890), de Faustino Xavier de Novaes (1820-1869), popular no Brasil também, de João de Lemos Seixas Castelo Branco (1819-1890) e de Luís Augusto Xavier Palmeirim (1825-1893), bem como o prestígio da família Castilho e do próprio António Feliciano (1800-1875). Com isso prolongou-se o ultrarromantismo serôdio que foi o nosso também, alheio (pelo que sei) à publicação, em 1859, de um livro que iria mudar o panorama cultural europeu e global: A origem das espécies, de Charles Darwin.

Num contexto mais próximo, a 29.11.1856 é criada em Luanda a Sociedade Dramática, a funcionar no mesmo espaço onde se construiu depois o Teatro Avenida, entretanto já passado à História. Em 1856 também se fundou a Aurora, com direta responsabilidade do ultrarromântico português Ernesto Marecos, que terá vivido poucos mas intensos anos em Angola (Marecos, 2018), onde escreveu vários poemas e recolheu, para produzir um livro de versos, a lenda lunda de Juca, a matumbola (entenda-se maiombola, termo mais comum). De resto, nos mesmos anos 50 (do século XIX) começou a publicar-se mais imprensa privada na colónia, que se iria desmultiplicar nas décadas seguintes, incluindo órgãos entre os ‘naturais’, ‘filhos da terra’ e seus amigos. Por sua vez, a importação de livros orientava-se cada vez mais para a Europa, com natural destaque para Portugal, que afastava cultural, económica e metodicamente Angola do Brasil com a preciosa ajuda de Inglaterra, também ela interessada em cortar os laços lusófonos no Atlântico-sul e toda a possibilidade de coligações sul-sul.

O avanço do colonialismo moderno e das ondas de choque subsequentes intensificava-se a partir dessa Europa. László Magyar terminava em 1857 as suas viagens às fontes do Congo e do Zambeze, largamente possibilitadas pelo casamento com uma filha do rei do Bihé. A 3.11.1856, um decreto proibira o serviço forçado de carregadores em Angola – embora sem grande sucesso no quotidiano. Por decreto de 29.4.1858, o reino de Portugal determinava a abolição completa do tráfico de escravos num prazo máximo de 20 anos. Em 1859 morria D.ª Ana Joaquina dos Santos Silva, que chegou a ser a maior fortuna de Angola no seu tempo. Também neste campo (económico, social e político) estávamos em tempos de transição, supunha-se que para um mundo melhor e, no nosso caso muito específico, melhor também para os africanos.

Fora da lusofonia e dentro do âmbito cultural, há sincronias e assincronias sintomáticas. Por exemplo, 1857 foi o ano de nascimento (com cerca de um mês de diferença) do linguista suíço Ferdinand de Saussure. As diferenças entre ele e Cordeiro da Mata resumem quase tudo o que há para dizer sobre o assunto, conjugando-se ao nascimento, ainda no mesmo ano, em Hamburgo, de Heinrich Rudolf Hertz, que viria a descobrir as ondas hertzianas. A Europa entrara, com os EUA, na febre da ciência positiva, ou objectiva, das invenções tecnológicas, enfim, das transformações que trariam a humanidade para uma fase radicalmente nova da vida quotidiana e para o século XX. Angola continuava a ser uma pequena colónia, cujo desenvolvimento se mantinha coartado pela colonização e, mais, pela colonização de tipo ibérico na África subsaariana (compare-se com a Guiné Equatorial).

Unindo os dois mundos ficaria o pensamento político, lentamente se voltando para preocupações sociais, de género e de raça (numa definição pouco rigorosa, que mesclava o tom da pele e a ascendência africana escrava). Um facto decisivo ocorreu no dia 8 de Março desse ano de 1857: para reprimir uma greve, numa fábrica de tecidos em Nova York, foram massacradas 129 mulheres (queimadas dentro da fábrica), independentemente do tom de pele. Ao mesmo tempo nascia uma grande compositora e pianista em França, que veio ocupar um lugar seguro numa actividade (a da música profissional) de que o sexo masculino detinha o monopólio. Chamava-se ela Cécile Louise Stéphanie Chaminade. Quanto à ‘raça’? Quanto à ‘raça’ tivemos, quase na mesma altura, a guerra civil nos EUA. Quero dizer: foram anos em que a humanidade passou, dolorosa mas decisivamente, para o caminho da libertação da mulher e do escravo e para a (muito lenta, também) dignificação do operário.

O nascimento de Alfredo Binet (a 8 de Julho desse ano) se, por um lado, se liga à corrente de rigor científico (levando em conta o que era tido por ciência no seu tempo), articula-se por outro lado com preocupações sociais, em particular com uma preocupação que terá marcado Cordeiro da Mata: a da Educação, para a qual o psicólogo e pedagogo francês (nascido em Nice) trouxe contributos eficazes, tanto quanto para a psicologia experimental. Infelizmente, o ainda escasso interesse do nosso pequeno tecido urbano nessa época terá levado as preocupações do nosso poeta apenas até ao método de João de Deus, que era excelente, prático, intuitivo, mas anterior à elaboração científica protagonizada por Binet e outros. Cordeiro da Mata, de resto, morreu jovem, não podendo acompanhar a evolução científica do seu tempo também por isso. Mas lamentou, poeticamente, os poucos estudos que teve (Matta, 2001 p. 69):

Passei infindas noites 
– sem tréguas – sempre a ler;
Não me prestava o pouco
Que pude n’aula aprender!

Tresloucado e bem louco
Quis a raia passar
Do pobre que na escola
Mais não podia avançar!

Quis, enfim, ser poeta […]
 
Finalmente, a morte de Augusto Comte (5-7-1857), em plena glória, contribuiu para reforçar a divulgação e o apreço pela cultura científica no resto do mundo – pese embora o descrédito em que depois caiu, graças sobretudo ao facto de o positivismo ser mais um cientismo do que, propriamente, uma teoria científica.

Os factos mencionados contextualizam bem o mundo a que veio Cordeiro da Mata: contraditório, de transição, violento, impiedoso, abolicionista e explorador, modernizante e arcaizante, concretizador e criativo, globalizando-se mas reclamando-se de identidades locais. Em boa parte foi, de resto, a visão que dele o próprio poeta nos legou no conhecido poema ao século XIX, comentado por E. Bonavena (Pestana, 2012 p. 8).

Passemos agora à resumida panorâmica da sua vida. A citação relativa ao nascimento foi transcrita de um depoimento de Mamede de Sant'Anna e Palma, datado de “Loanda, 19-5-89”, publicado em Arauto africano, numa recensão impressionista ao livro Delírios («Bibliografia / Os Delírios», 1889). Apesar de amigo de Cordeiro da Mata, Sant'Anna e Palma erra o ano de nascimento, pois aponta 1859, enquanto Mário António e Manuel Ferreira indicam 1857 (o último, por gralha, indica 1875, mas é claro que pensava em 1857). A data por que optei confirma-se em outra fonte ainda: a notícia necrológica enviada para o Almanach, baseada em cartas de A. J. Nascimento, Pedro Alexandrino do Vale e A. Nogueira da Rocha. A nota dá o poeta como tendo 36 anos em 1894, quando morreu. Tendo falecido em Março, ainda não comemorara o aniversário nessa altura, pelo que 36 deve subtrair-se ao ano anterior, 1893, para sabermos a data do nascimento – o que dá 1857. Por último, na re-edição do livro Delírios publicada pela IN-CM, mais concretamente no poema «No meu aniversário», escrito a 25.12.1884 (dez anos antes da morte), o poeta fala nos seus “vinte e sete anos”, número que, subtraído a 1884, dá o mesmo ano (1857).

Cordeiro da Mata pertence a uma típica família das terras de Icolo e Bengo. O primeiro progenitor conhecido dessa família terá sido José Agostinho Cordeiro, que em 21-6-1835 era votante no distrito de Icolo e Bengo (Mascarenhas, 2008 p. 440). Da sua relação com Catharina Lourenço Alexandre nascera o pai do poeta, Agostinho José.

Agostinho José Cordeiro da Mata foi professor, asseverando Mário António que o filho estudou na escola em que lecionava. Pitigrili afirma que lá estudaram também dois irmãos seus, embora para um deles eu não tenha encontrado referências (Mascarenhas, 2008 pp. 381-385). As inclinações literárias e as preocupações regionalistas do pai levaram-no a participar também no Almanach de lembranças, ainda que não tenha aí precedido Joaquim Dias, contrariamente ao que pensava Mário António. Possivelmente o pai sobrevivera ao filho, visto que uma portaria (n.º 561) posterior o passa de “praticante de imprensa d’este governo” para o exercício (interino) do “lugar de compositor de 2.ª classe da mesma imprensa”[1]. É possível também que fosse este último um sobrinho homónimo do pai, embora eu não tenha conhecimento da existência de sobrinho homónimo. Digo-o porque o pai de Cordeiro da Mata, como veremos abaixo, ocupou cargos tais que não me parece que o levassem a terminar a carreira, com tão proveta idade, em lugares mais humildes da Administração.

Agostinho José Cordeiro da Mata nasceu em Icolo e Bengo a 9 de Julho de 1822, sendo, portanto, cinco anos mais velho que José da Silva Maia Ferreira. Em 1850 era Escrivão (interino) na Feira de Cassange, posto comercial importante, que permitia negociar com a Lunda (no Leste) e com Luanda (no litoral). Em 1856 era “Comandante da 3.ª divisão de Icolo e Bengo e como tal cobrador do dízimo da Fazenda Publica. Depois amanuense da secretaria da administração por 10 anos sucessivos”. No ano em que nasceu Joaquim Dias, tornou-se Professor de Instrução Primária de Icolo e Bengo, nomeado por Portaria do Governo-geral de 19.9.1857. Em 1861 foi Escrivão do Julgado de Icolo e Bengo e passou para Vereador da Comissão Municipal”. Em 1863 exerceu, “muitas vezes”, a função de Juiz Ordinário substituto em Icolo e Bengo. Em 1866 foi subdelegado interino no mesmo Julgado. Em 1876 foi, por “Portaria n.º 511 de 8 de Novembro, nomeado subdelegado do Zenza do Golungo, tendo antes servido de Vereador da Comissão Municipal da Barra do Dande”. No dia 10.11.1877 foi nomeado Escrivão da Administração do Concelho de Icolo e Bengo. Dizia-se que sabia “Ler e escrever portug. Sommar, deminiuir multiplicar e repartir” (Mascarenhas, 2008 pp. 563-564). A comprová-lo, consorciou-se com Isabel Bernardo Afonso, sendo Joaquim Dias o primeiro filho dessa ligação (tinha uma irmã mais velha, filha de Laureana João, chamada Isabel também), que ainda criou mais seis irmãos e dois meio-irmãos.

O poeta gerou, por sua vez, duas filhas e dois filhos, um dos quais se consorciou com Teresa da Conceição Pinto de Andrade, cruzando assim duas grandes famílias tradicionais da zona. Um dos irmãos, o “alferes de 2.ª linha” Sebastião José Cordeiro da Mata, na sua certidão de óbito é dado como filho de Agostinho José Cordeiro da Mata e Isabel Afonso Bernardo, havendo uma troca na ordem dos apelidos. Nessa certidão, Sebastião José foi dado como “filho ilegítimo”, pelo que se pode deduzir que o consórcio dos pais não estivesse legalizado por altura do nascimento. A certidão não é, no entanto, de inteira confiança, pois também o dá como solteiro e sem filhos, tendo ele tido vários filhos (Mascarenhas, 2008 p. 571).

No conjunto, a sua família surge integrada numa vasta rede familiar e de interesses, ainda hoje presente em toda a Angola, na qual se incluem, para além dos Pinto de Andrade, os Pinheiro Falcão, os Dias dos Santos, os Palma e Aleixo de Palma, os Santos Torres, os Viegas, os Oliveira Neves, os José da Costa (lembremo-nos de Teófilo José da Costa, por exemplo) e os Piedade (Mascarenhas, 2008 pp. 381-383).

O retrato feito no “Registo Doloroso” do Almanach de lembranças para 1895 dá-nos alguns traços de carácter para Cordeiro da Mata. Dizia ele que o conterrâneo (e cónego) A. J. Nascimento definia o poeta como pessoa “afável, inteligente, extremamente reconhecido aos beneficios, caráter firme e sério, génio pouco expansivo e coração de pomba”. Estes traços psicológicos veem-se corroborados por Carlos da Silva, que escreve n’O echo de Angola (n.os 8 e 9) um “folhetim” que é, na verdade, um comentário aos Delírios (onde um poema lhe foi dedicado, «O fogo das paixões», datado de 1884 (Matta, 2001 p. 165)). Ele nos garantia que o poeta angolense “nasceu para amor e amizade” (n.º 9, 10.5.1889, p. 2) – como se diria de Gonçalves Crespo em Portugal. Estas datações e estes títulos pedem, no entanto, uma verificação. 
Analisando fotografias do exemplar, enviadas por Eduardo António Estevam Santos (Universidade Federal da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, Instituto de Humanidades e Letras), esse 'folhetim' acaba no n. 7, de 28.4.1889, e trata-se do quinzenário Arauto Africano. Por lapso escrevi O Echo de Angola, o que era impossível, pois esse periódico já não se publicava em 1889 (confirmei - que não foi retomado - nas mais diversas fontes). Aliás, em Notícia da literatura angolana o lapso não existia. Também não me parece provável que o "folhetim" de Carlos da Silva a propósito dos Delírios se repetisse nos dois números seguintes (o que não seria caso único). Só tive acesso, em Lisboa, à segunda parte, publicada a 28 de abril. Em se tratando de um quinzenário, o n. 6 teria saído a 22.4.1889 e lá se publicara a primeira parte. Em algum momento eu vi essa primeira parte e foi daí que tirei a informação de se tratar de um folhetim. Porém, perdi essa referência, penso que em Luanda. Fecho aqui o parêntesis e retomo o fio da narração. 
Cordeiro da Mata foi sem dúvida um amante profícuo do seu país, de que estudou duas línguas (quimbundo e português), muitos costumes e algumas tradições, danças, provérbios e lendas. Assim acompanhava a sequência, também, da evolução da cultura europeia que se virava para a etnografia e a identidade popular. O facto não desmerece em nada o seu labor, ao contrário do que faria supor o fundamentalismo banto e neonativista na Angola de hoje. Ele sublinha, pelo contrário, que era Cordeiro da Mata um homem do seu tempo, atualizado e não atrasado, que tinha formação acima do que podia fazer supor um quase total autodidatismo naquela Angola.

Constituía, no século XIX (e ainda muito no século XX), nos mais variados países do mundo, prova de patriotismo, espírito científico, tradição e identidade a recolha do vínculo comum guardado por contos e provérbios. Nesse sentido, por exemplo, Fauriel recolheu os Contos populares da Grécia modernaGarrett coligiu o Romanceiro e é por aí também que passa boa parte das Lendas e narrativas (de Alexandre Herculano) – bibliografia que encontrei nas nossas fontes, ou seja, que deve ter sido lida em Angola durante o período de formação literária e cultural de Cordeiro da Mata. É de se ler, igualmente, o artigo do português Augusto Soromenho publicado no Rio de Janeiro, em O futuro, em 1863 e chamado «Poesia popular». O filósofo Sílvio Romero, no Brasil, fez uma recolha com idêntico sentido: Cantos populares do Brasilem vários volumes, o segundo dos quais disponibilizado pela brasiliana da USP. A recolha teve prefácio e “notas comparativas” de Teófilo Braga, não por acaso. Com as novas correntes críticas partilhadas por ambos, Teófilo Braga fez algo parecido e, quando leu Fauriel, achou que veio “mostrar à consciência do nosso tempo como a unidade política de um povo e a sua liberdade se funda e renova sobre o vínculo comum da tradição” (Braga, 1880 p. 77). O puro mito romântico da nacionalidade foi, portanto, continuado pelo Realismo, de que um dos desenvolvimentos (atingido igualmente em Angola) se tornou etnográfico.

Parece-me este o sentido exato, nacionalista e globalizado, com que “o poeta negro do rio Quanza” fez a recolha do folclore angolense e do património cultural quimbundo (v. Philosophia popular em provérbios angolenses, 1891; Cartilha racional para aprender a ler Kimbundu, escrita segundo a cartilha maternal de João de Deus, 1892 (de que há exemplar na Sociedade de Geografia de Lisboa, cxª 4, nº 87); Ensaio de diccionário Kimbundu-Portuguêz, 1893; v. ainda os manuscritos 114 contos angolenses e Repositório das coisas angolenses). Deve ter sido vocação precoce (a do estudo social da angolanidade), pois Carlos da Silva garante que em 1876 Cordeiro da Mata já tinha escrito O luandense da alta e baixa esfera: estudo crítico e analítico.

Nestes ambientes e comércios, de livros e de ‘escolas’, a vinda a lume dos “anexins” de D. Francisco Manuel de Mello reforçava o interesse pela sabedoria popular. Recorde-se que só em 1875 saiu (na Parceria A. M. Pereira, de Lisboa) essa “obra póstuma”, editada, “dirigida e revista por Inocêncio Francisco da Silva” – uma garantia de rigor no que se chama hoje a crítica textual. O livro que vi no Arquivo Histórico pertenceu ao [P.e?] António M. Basílio Ferro, se li bem o nome, que o assina no “Dondo, 18=8=1896”. Não sei se o Pe António Moreira Basílio, prefaciador de Porque se escreve Luanda com U, de Lourenço Mendes da Conceição (Conceição, 1943), andaria já pelo Dondo nesse tempo. Sei que foi nomeado professor de quimbundo para lá em 1907. Terá, de qualquer modo, sido comprado o exemplar a alguém no Dondo, ou por perto, numa zona que o nosso poeta conhecia bem – e ele próprio pode ter possuído, ou lido, antes o exemplar. A sua circulação reforça a ideia de circulação bibliográfica, não só comercial, em toda aquela zona.

Inocêncio Francisco da Silva, na introdução (“Preliminares”, fl. VI), reafirma a pertinência editorial dos anexins do nobre português, tanto para escritores quanto para tradutores, pela contribuição para o “estudo e prévio conhecimento da língua dos seus maiores” – objetivo comum a Cordeiro da Mata se trocarmos Portugal por Angola, ou Lisboa por Luanda. A troca é, precisamente, o sinal libertador que vai permitir ao poeta estar, ao mesmo tempo, a recolher e reproduzir uma sabedoria a que acedeu desde pequeno e a trabalhar, em prol do seu país (de fronteiras ainda mal definidas), sem chocar com os novos cânones do colonizador, ou simplesmente da cultura dominante, a da civilização europeia – pelo contrário, rentabilizando-a. Aqui se abre o maior espaço de manobra dos filhos da terra no próprio cerne ‘científico’ da cidade colonial ‘civilizadora’.

Cordeiro da Mata não cursou Universidades, nem nenhuma outra escola tirando a do Bengo, tendo iniciado a sua carreira como empregado do comércio em Luanda, aos 16 anos segundo Nelson Pestana (Pestana, 2012 p. 11). Ao se estabelecer na Barra do Quanza, tornou-se proprietário. Negociou por esse tempo em “madeira e bordões do Tombo” (Pestana, 2012 p. 12) e comprou um “Cutter” para transporte de mercadorias entre a Barra e Luanda. Foi a partir daí, rodeado pelos seus livros, que desenvolveu o convívio literário com dois outros nomes importantes para as colaborações angolanas do Almanach de lembranças: Eduardo Neves (contabilista, nascido em Santa Comba Dão, Portugal) e José Bernardo Ferrão (talvez comerciante), chamando-se aos três (e eventualmente a mais alguns companheiros, cujo nome não descobri) “os […] vates do Quanza” (Soares, 2001).

Morreu Cordeiro da Mata com tuberculose pulmonar, na Barra do mesmo Quanza, a 2 de Março de 1894[2], nove meses antes de nascer Florbela Espanca em Portugal, no mesmo ano em que nasceu o romancista francês Louis-Ferdinand Céline e em que se iniciou o simbolismo russo. Dois meses e meio depois de morrer o poeta do Quanza, na China, veio ao mundo Mao Tsé-Tung, cujo regime havia de acolher e punir, por via do PCC, o nacionalista angolano Viriato da Cruz.

As leituras feitas por Cordeiro da Mata, infelizmente, não as pude conhecer ainda com precisão. Fiz aproximações e, pela importância que tiveram (por serem leituras dele), inseri-as na secção «Leque angolense de leituras literárias», onde o primeiro ponto versa, precisamente, «Cordeiro da Mata e o ambiente literário angolense». Neste passo, para aguçar a curiosidade do leitor, apenas transcrevo os nomes apontados (entre outros) por Nelson Pestana como intertextualizações do nosso poeta: Sócrates, Da Vinci, Rubens, Bocage, Marquesa de Alorna, Camilo Castelo Branco.

Eduardo Neves

Se fizermos um breve escorço biográfico de Eduardo Neves, a segunda figura mais importante entre os colaboradores angolenses no Almanach de lembranças e um amigo de Cordeiro da Mata, repomos uma filiação literária similar à do poeta do Quanza. As origens familiares eram, porém, de sentido oposto.

Eduardo Paulo Ferreira Neves nasceu em Santa Comba Dão em 1854, portanto trinta e cinco anos antes de lá ter vindo ao mundo o último ditador colonial, António de Oliveira Salazar. Ele partiu para Angola muito novo, seguindo os seus irmãos, todos chamados por um tio que ali pouco originalmente enriquecera no comércio, principal atividade criadora da lusofonia. Foi guarda-livros no Dondo, não havendo certeza sobre se chegou a constituir loja própria, a julgar pelo que diz num soneto a um dos irmãos, José Neves (casado com uma senhora da terra), e pelo que dele retrata A. Assis Júnior em O segredo da morta (um retrato pouco favorável, de resto). Faleceu no Dondo a 2 de Junho de 1899 (dez anos depois de Salazar nascer), com 45 anos, tendo ainda sido pagos nesse ano emolumentos em seu nome, no valor de $540 réis[3].

No Correio de Loanda há uma referência ao “sr. Miguel Paulo Ferreira Neves”, nomeado “administrador substituto do concelho do Dondo”. Provavelmente se tratava de outro irmão do nosso poeta. Era sócio da firma Manaças, Neves e Zagury[4]. Um pouco depois, em Junho de 1890, ficamos a saber que também exercera em substituição o cargo de administrador do Concelho de Cambambe, sendo exonerado nesse mês[5].

Eduardo Neves era um leitor assíduo do Almanach, onde não sei bem se assinou, precisamente com o nome “Paulo”, uma composição dedicada a Dª Alice Moderno. Foi esta uma interessante e característica personagem feminina da cultura portuguesa da época e por isso nos ajuda a situar o poeta. D.ª Alice Moderno veio ao mundo mui distintamente em Paris, mas foi para os Açores com 7 ou 8 anos de idade, aí morrendo. Além dos Açores, frequentou salões lisboetas também, possuindo nesses ambientes uma excelente reputação. Ultrarromântica pela temática e pela maioria dos tópicos, escrevia porém sonetos de linguagem cristalina, com alguma influência parnasiana, à semelhança do que fez o próprio Eduardo Neves, por exemplo na série «Africanas». Tal como D.ª Antónia Gertrudes Püsich, com quem deve ter convivido, viveu o seu papel de mulher decididamente missionada para o ensino e para a luta pela revalorização profissional do sexo feminino – o que, nesse tempo e na lusofonia, não foi comum, conhecendo-se hoje notáveis mas raras protagonistas no Brasil e em Portugal, em Angola não no campo cultural mas no económico, onde já não constituía novidade nenhuma a fortuna feminina. Subscreveu D.ª Alice Moderno, no Almanach, o soneto «Horas de spleen», cujo conteúdo não remete para António Nobre, nem para Baudelaire. O soneto localiza-a em “S. Miguel – Açores”. Contava na altura 18 anos e dizia preparar um livro de líricas sob o título Aspirações. Dirigiu em Ponta Delgada um semanário literário de nome (sintomático?) A folha (Silveira, 1981: 10 (Cardoso, [1917?] p. 24)).

Quanto a almanaques, Eduardo Neves ainda cortejou o das Senhoras, periódico de longa duração do ultrarromantismo repassado (e feminino) português, o que o situa, mais uma vez, por paradigmas tardios no espetro literário de referência. Recorde-se, de passagem, que o Almanach das senhoras foi fundado em 1871 por D.ª Guiomar Torrezão, professora e poetisa muito respeitada nos salões elegantes do século XIX português (Cardoso, [1917?] p. 162). O seu nome fica bem ao lado do de D.ª Alice Moderno, D.ª Antónia Gertrudes Püsich e outras, dos dois lados do Atlântico, entre as quais avultam o perfil e a obra de Maria Amália Vaz de Carvalho, casada com António Cândido Gonçalves Crespo, o excelente e cordato parnasiano lusobrasileiro. Um livro desta última escritora constava do catálogo do Arquivo Histórico Nacional em Luanda, mas não pude consultá-lo. 

Quanto aos portugueses, Neves cita Faustino Xavier de Novaes (em «Ode ao vinho»), que largamente o influenciou, e dedica um poema a António Xavier Rodrigues Cordeiro (1819-1896).

Faustino Xavier de Novaes, ou Novais (1820-1869), ultrarromântico da geração de João de Lemos, referi-o já várias e há de reaparecer ainda. Foi diretor de O bardo, periódico literário incluído por Álvaro Manuel Machado (a par de A grinalda) na passagem do ultrarromantismo para o Porto, a caminho da província.

Na apresentação do periódico ele critica já os excessos da “moda romantizada” (Machado, 1986: 73). A poesia de Novaes distinguiu-se efetivamente pela ironia face à “moda romantizada”, característica bem mais notória na obra de um seu cunhado. Essa ironia criava algum distanciamento relativamente ao próprio ultrarromantismo por ele praticado, o que parece ter sido caraterístico dos últimos poetas da escola do Visconde. O tom irónico, brincalhão mesmo, é que mais terá influenciado Eduardo Neves. Tornou-se muito popular no Brasil (onde pelo menos um poema seu, musicado, se mantém canção popular até hoje: “quando eu morrer quero ir em fralda de camisa / defunto pobre de luxo não precisa”). Abandonou o Porto a favor do Rio de Janeiro, onde publicou livros e colaborou muito na imprensa. A sua irmã, Carolina Novaes, “acabou sendo o grande amor do maior escritor brasileiro, Machado de Assis” (Neves, 1992: 29), que se casou com ela. A forte ligação de Novaes ao Brasil acredito que facilitasse, tanto quanto a ironia dos versos bem-humorados, a sua penetração no mercado angolense. Além disso, como já reportei em Notícia da literatura angolana, ligou-se o bardo luso à lírica dos nossos ultrarromânticos, particularmente por via de uma composição sintomática de José da Silva Maia Ferreira, de que fez uma versão jocosa e talvez acintosa.

Quanto a António Xavier Rodrigues Cordeiro, ele esteve profundamente ligado ao Almanach de lembranças e à família Castilho, sendo um ano mais velho que Faustino Xavier de Novais, como João de Lemos. Curiosamente, F. Gomes de Amorim, numa carta a Gonçalves Dias, noticiando-lhe a eleição de “António Xavier Cordeiro” por Leiria, em carta de Dezembro de 1856, chama-lhe “o nosso poeta provinciano” (Biblioteca Nacional, 1972 p. 87). Por outra carta, enviada de “Lisboa 3 de julho de 1857”, ficamos a saber que o “Cordeiro” (pelo contexto me parece ser o mesmo) era amigo de Gonçalves Dias também (Biblioteca Nacional, 1972 p. 137).

É, pois, de integrar Eduardo Neves na margem e na ganga dos circuitos ultrarromânticos portugueses da última fase (a de Faustino Xavier de Novaes, mas também de D.ª Alice Moderno) e, plenamente, na nossa geração de 1878 (a que se inicia no Jornal de Loanda).

Entre os seus contemporâneos angolenses, nativos e residentes, reconhece ter lido a ficção de Pedro Félix Machado, o primeiro filho da terra a publicar uma narrativa artística em livro e que Ervedosa incluía na geração de 1878. Como poeta lírico, Pedro Félix Machado constituiu, porém, uma alternativa a essa geração com Sorrisos e desalentos, um livro parnasiano – e se o parnasianismo não foi estranho aos restantes membros da geração (sobretudo Eduardo Neves), também não era paradigmático para eles. Mas aqui é a narrativa que é chamada, uma narrativa de enredo labiríntico, muito bem escrita, sobrepondo dois tempos diferentes na mesma cidade (Luanda) com laivos assinaláveis de Realismo. Pedro Félix Machado oscilou também entre a poesia e o comércio (vendia e instalava em Benguela, ao tempo de A semana, artigos elétricos – no que seria inovador para o meio) (Anúncio, 1893 p. 4).

Eduardo Neves dedicou um poema a Francisco Maria Quintella de Assis, figura da sociedade luandense, penso que de origem portuguesa e algo preconceituoso relativamente aos africanos negros. O poema intitula-se «A consciência», sendo encimado por um “Adágio”, cuja moral é tão portuguesa quanto angolana ou são-tomense: cada qual dá o que tem. Dedica, finalmente, um soneto de motivação nativa («O olhar d'uma africana») a Alfredo Troni, o novelista de Nga mutúri, fundador e diretor do Jornal de Loanda no qual a geração se revela a partir de 1878.

Produtivo, Eduardo Neves foi também colaborador em jornais vários da Luanda contemporânea, como O mercantil, o Arauto africano e O polícia africano. Ainda lhe sobrou tempo (o Dondo dessa época!) para se tornar charadista e decifrador exímio, como se vê pelas listas de decifradores e pelas charadas que sob o nome “Cecílio” publicou no Almanach (ainda com o mesmo poetónimo fez sair uma composição na «Secção de variedades» do Jornal de Loanda). Estava, nessa prática, a par de outros colaboradores angolanos, incluindo Cordeiro da Mata e seu pai. O facto, aliás, leva a pensar se essa prática se devia colar ao nosso corpus e, mas ainda, se o seu cultivo não estaria adubado pelas oraturas africanas, onde as adivinhas e outras práticas idênticas visavam desenvolver e demonstrar argúcia verbal e analógica. Uma linha de pesquisa que fica no ar, pelo seu ineditismo e pela minha falta de tempo para a levar adiante agora, é, precisamente, a do estudo das possíveis relações entre a importância das adivinhas e provérbios nas culturas tradicionais africanas e na poesia angolense do século XIX.

Da sua convivência com J. D. Cordeiro da Mata no Quanza veio a receber dedicatórias, uma delas num poema sintomático do que aos dois foi também comum – a lírica bilingue: «Nguibanga-kiê! (que faço!)» (Matta, 2001 p. 83). O apoio no que diz respeito ao conhecimento da cultura e da língua da zona deve ter sido decisivo para os poemas bilingues de Eduardo Neves. Este bilinguismo literário tornou-se, de resto, um timbre dos dois poetas e, portanto, do Dondo.

A dedicatória a Eduardo Neves no poema «Às mulheres» (Matta, 2001 p. 107) é também significativa. O primeiro verso indicia desde logo o conteúdo: “eu não creio no vosso amor, mulheres”. Ele faz parte da relativamente longa série de peças em que J. D. Cordeiro da Mata se queixa da falsidade feminina e acusa o género oposto (tanto quanto complementar) de oportunismo e de querer apenas dinheiro. O motivo aparecia já nas Espontaneidades de Maia Ferreira e ganhava dimensão maior aí. Terão partilhado, Cordeiro da Mata e Eduardo Neves, desilusões amorosas? Ou apenas confissões?


José Bernardo Ferrão

Quanto a este outro “mimoso vate do Quanza”, pertencia a uma família de comerciantes portugueses espalhada por Angola.

Há notícia de um “J. B. Ferrão”, que viajou de Lisboa para Luanda no “vapor inglês norfolk” e chegou à capital angolana em Março de 1865, precisamente no ano em que saía em Lisboa o Exame das viagens do Doutor Livingstone, feito por D. José de Lacerda para mostrar as incongruências do escocês. É sintomático ainda que, nesse ano, se instale em Angola o Banco Nacional Ultramarino, cuja atuação iria lentamente reposicionar (para baixo) todo o escol crioulo do século XIX (como bem mostrou Adelino Torres).

J. B. Ferrão seguia incluído num grupo de “caixeiros” e talvez fosse nesse ano para Angola pela primeira vez, pois a sua primeira colaboração angolana («Melancolia») saiu no Almanach para 1868 (recordo que, normalmente, as colaborações publicavam-se dois anos depois de enviadas). José Bernardo era irmão de Bernardo António Ferrão, António Bernardo Ferrão e Sebastião José Ferrão, mas vivia afastado deles quando morreu, tendo deixado de ser sócio dos irmãos em 1874[6] – portanto quando começou a colaboração mais significativa no Almanach.

Certamente Joaquim Bernardo Ferrão seria também do mesmo núcleo familiar (um dos irmãos ou, possivelmente, o tio com quem vieram trabalhar)[7]. Integrou, junto com outros prestigiados negociantes, uma comissão de eleitores de “juízes jurados” e pagou 1$107 réis de emolumentos no mês de Outubro de 1847, ano em que foi nomeado para a dita comissão[8] (recorde-se que foi neste mês que Maia Ferreira se deslocou de Luanda para o Rio de Janeiro, onde ficaria até 1849. Ou seja: ele e Joaquim Bernardo Ferrão podem se ter conhecido).

O nosso Ferrão cultivou a amizade do comerciante e versejador Joaquim de Jesus Ferreira, que noticia a sua morte e o considera “um dos nossos bons poetas”. Na notícia necrológica lamenta que J. B. Ferrão não tenha chegado a publicar as “muitissimas Poesias que tinha escripto”. Estava anunciado “um volume de versos do fallecido”, a editar a expensas e cuidados de António Bernardo Ferrão, que pagara de emolumentos, em Abril de 1874, 1$107 réis[9]. Joaquim de Jesus Ferreira reconhece ainda que ele não tinha “estudos”, ou seja, seria parcialmente autodidata como Cordeiro da Mata. O promitente editor aparece de quando em quando nas notícias ou nos anúncios dos periódicos locais. Por exemplo se sabe que ele vinha de Liverpool, ou de um dos “portos de sua escala”, num navio para o Ambriz, onde segundo parece desembarcou, por volta de 17.02.1874[10]. Por outro anúncio lemos que J. B. Ferrão viajou no “vapor paquete inglês AFRICA”, oriundo de Liverpool “pelos portos de sua escala”[11]. Coincidentemente, no regresso do “vapor paquete inglês” a Liverpool (e “portos de sua escala”), seguiu, a 27 de Março, um certo (ou uma certa) M. F. Machado[12]

A sua poesia passou de arrebatamentos exaltantes relativamente a Portugal para a completa desilusão com o colonialismo português (que não deixou nunca de ser a desilusão de um colono), chegando mesmo a sinalizar-se por um vocabulário que lembra a propaganda socialista e republicana da época: 
força, justiça, progresso
três centelhas redemptoras
da tua [de Angola] aurora futura,
que espantará os milhafres
e fará das hordas cafres
legiões trabalhadoras
e também “[levará] povos vadios / a serem úteis colonos

O poema foi posto no álbum de Eduardo Neves e o seu conteúdo, somado às discussões sobre a independência de Angola, que por um amigo de Cordeiro da Mata sabemos existirem no Dondo nessa altura, sugerem uma ambiência pouco favorável ao colonialismo - pelo menos ao colonialismo português.

Uma das últimas prestações públicas da sua poesia deu-se em um espetáculo da Sociedade Perseverança, a 15.8.1881. Tratava-se de uma "grande gala" para comemorar a "restauração d'Angola". Segundo o Jornal de Loanda (n. 113, de 28.9.1881, p. 3), "abriu o espetáculo o sr. Carlos da Silva (amigo de Cordeiro da Mata) com uma poesia alusiva à comemoração do dia, escrita pelo sr. Ferrão", a qual foi tão aplaudida (pela execução do declamador e decerto pelo próprio poema) que "a recitação" teve que ser repetida e novamente ovacionada.

José Bernardo Ferrão faleceu a 29-7-1882 em Luanda, em pleno auge do colonialismo inglês, que dois meses mais tarde ocuparia o Cairo desterrando o Paxá para Ceilão. Estava igualmente no auge o colonialismo bancário (devo ter acabado de inventar o conceito…), através do qual as elites locais iam sendo proletarizadas em razão de juros. Carlos da Silva, amigo de Cordeiro da Mata (que lhe dedica o poema «O fogo das paixões») e de Eduardo Neves, diretor de O arauto africano e de O polícia africano, enviou também uma nota necrológica para o Almanach, sobre o falecimento de Bernardo Ferrão, de onde extraí algumas destas informações.

José Bernardo Ferrão foi, sem dúvida, um dos poetas da geração de 1878, embora tivesse começado a publicar dez anos antes dessa data. Em 1874 era já suficientemente reconhecido para recitar uma “poesia alusiva ao acto” na cerimónia de inauguração da estátua de Salvador Correia de Sá, a 1 de Março (Castelbranco, 1932 p. 30). Era, dos três “mimosos vates do Kwanza” e dos amigos de Cordeiro da Mata, talvez o menos informado sobre a cultura de língua quimbundo - ou o que menos o revela.












[1] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 49 (09-12-1899) 695. Transcreve a Portaria 561 desse ano.
[2] Bonavena indica 4 de Março (Pestana, 2012).
[3] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 32 (12-08-1899) 497.
[4] Correio de Loanda. 16:1 (27-04-1890) 3.
[5] Correio de Loanda. 22:1 (8-6-1890) 3.
[6] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 28 (11-07-1874) 326.
[7] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 31 (01-08-1874) 374. Pagou nessa altura 2$584 réis.
[8] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 41;44 (10-10-1874;31-10-1874) 487;524.
[9] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 17 (25-04-1874) 196.
[10] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 7 (17-02-1874) 79.
[11] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 9 (28-02-1874) 97.
[12] LUANDA. Governo-geral da província de Angola – Boletim oficial. 14 (04-04-1874) 166.

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